Hipnose

Text
0
Kritiken
Leseprobe
Als gelesen kennzeichnen
Wie Sie das Buch nach dem Kauf lesen
Schriftart:Kleiner AaGrößer Aa

2

Quando fechou a porta do gabinete, Sofia Estelar estava sentada à receção a tratar de documentação. Na verdade, fingia-se ocupada. Sofia olhou Anne pelo canto do olho e viu-a desaparecer no corredor. Não a quis cumprimentar quando ela se foi embora. Estava arrependida de ter levado Anne Pauline até Marcus Belling. “Como é que me pude enganar desta forma?” pensava para si mesma. Quando ouviu o som da porta a fechar-se, sabia que tinha de ir ter com Marcus Belling para o avisar da estranha sensação que tivera em relação àquela pessoa. Normalmente não se costumava enganar. Quando alguém pedia uma sessão com Belling, ela sabia avaliar bem essa pessoa e a ela lhe cabia a decisão se a deveria, ou não, levar até ao famoso hipnotizador. Belling contava com a intuição e a inteligência da sua secretária para levar a cabo o seu trabalho com segurança. Efetivamente, existiam motivos de receio. Muitos eram os intrusos que tentavam violar a sua privacidade, tirando fotografias às escondidas com máquinas que traziam ocultamente consigo ou, no limite, usando a chantagem para atingir certos objetivos (como, por exemplo, exigindo o pagamento de somas avultadas em dinheiro para não divulgarem certos aspetos da sua vida aos jornais). De facto, Sofia Estelar nunca se esquecia que, uma vez iniciada uma sessão de hipnose, a pessoa passaria a ter um contacto regular com o famoso hipnotizador. Durante vários meses, os pacientes ficariam a conhecer Belling, os seus hábitos, a sua forma de estar, a sua maneira de trabalhar, ou seja, um pouco da sua vida. Por essa razão, tornava-se importante saber que casos podiam ser levados ao conhecimento de Marcus Belling. Daí a importância do papel desempenhado por Sofia Estelar.

Sofia Estelar conhecia bastante bem Marcus Belling. Esse conhecimento advinha não apenas dos largos anos em que já trabalhava com o famoso hipnotizador, mas igualmente, porque ela própria já tinha sido hipnotizada por ele. De certa forma, ela tinha sido, até àquele momento, cética quanto aos efeitos da hipnose, embora nunca o tivesse confessado. Ela sabia que essa confissão iria entristecer Marcus Belling.

Essa experiência de hipnose tinha ocorrido há vários anos e nessa altura, foi ele que lhe dirigiu pessoalmente esse pedido. Há dez anos que Belling praticava a Terapia de Vidas Passadas, quando num certo momento da sua carreira, sentiu que precisava de testar com alguém de confiança, se as crenças e os mitos poderiam influenciar as lembranças que as pessoas tinham do passado. Esta ideia tornou-se um verdadeiro desafio. Tudo porque existia uma corrente interna no Conselho Nacional de Hipnose que rejeitava a Terapia de Regressão como forma de tratamento de diversos sintomas e distúrbios. Nesse aspeto, Salvaterra e Belling distinguiam-se de alguns dos demais colegas do Conselho. Os dois usavam frequentemente a hipnose na regressão, mas existiam alguns hipnotizadores que recusavam a existência do efeito terapêutico neste tipo de terapia. Esses mesmos hipnotizadores defendiam que, essas recordações das vidas passadas, mais não eram do que desconexões no sistema de memória pois o ser humano usava as suas experiências pessoais e as suas crenças para recriar imagens de um passado que nunca tinha existido.

Nem Marcos Belling nem Josef Salvaterra tinham tido alguma vez a oportunidade de refutar estas teorias. Por um lado, ignoravam estes argumentos, mas por outro, quando se impunha defender o seu trabalho, perante a opinião pública, tentavam confirmar através de casos reais que a Terapia de Regressão funcionava nos seus pacientes. Existia assim um certo descrédito relativamente a esta área da hipnose por parte de alguns hipnotizadores e, por essa razão, Belling lembrou-se de realizar um teste com Sofia Estelar. O objetivo era tentar induzir um conjunto de crenças e mitos enquanto Sofia estivesse em transe hipnótico, numa primeira sessão. Na segunda sessão, usando a Terapia de Regressão, pedir-lhe-ia para se recordar das suas vidas passadas recorrendo, para tal, à chamada memória extra-cerebral. Marcus Belling teria assim a oportunidade de testar a eficácia desta terapia, embora não fosse sua intenção divulgar os resultados desta sua experiência. Ele próprio, apesar de totalmente convicto de que esta funcionava, e que não se tratava de uma falha no sistema de memória, necessitava desta última confirmação. Quando Sofia Estelar se sentou no sofá verde do gabinete para ser hipnotizada, algo de extraordinário aconteceu; sem nunca perder o contacto com o exterior, ela entrou rapidamente em transe hipnótico. De facto, ela não estava à espera de ser hipnotizada por Belling com tanta facilidade. Contudo, através das técnicas e da larga experiência do famoso hipnotizador, a sua secretária mergulhou rapidamente num profundo transe, sem que se tivesse apercebido disso. Apesar de trabalhar com ele há mais de vinte anos, ela nunca tinha pensado seriamente na questão: o que o levava a ser um hipnotizador tão reconhecido? Ela conhecia a sua dedicação à profissão, mas ainda não tinha assistido à demonstração do seu talento inato. A partir daquele dia, Sofia Estelar percebeu porque é as pessoas o procuravam com tamanha ansiedade. O teste foi um sucesso. Marcus Belling conseguiu demonstrar (nem que fosse para si mesmo) que apesar das crenças introduzidas na primeira sessão de hipnose, tal não tinha influenciado a sua secretária quando às suas reais recordações das suas vidas anteriores. Inclusivamente, ela era capaz de se lembrar de uma relação que mantivera com um homem que parecia estar ligado à tipografia e surgiu-lhe um nome na mente: “Christopher Beck”. Ao ler algumas páginas sobre este tipógrafo, Belling percebeu que a sua secretária tinha regredido a uma época de onde poderia extrair memórias concretas. Ao ouvir as suas palavras, ele apercebeu-se que tudo o que lhe estava a ser reportado era absolutamente autêntico. Não existia ali uma mácula de contaminação pelo facto de ele lhe ter introduzido um conjunto de ideias pré-concebidas que poderiam prejudicar a sua memória extra-cerebral. Esta experiência reforçou assim a vontade de Belling de continuar a praticar a Terapia de Regressão, sem deixar que o seu trabalho fosse colocado em causa por alguns colegas da sua classe profissional. Na realidade, o teste serviria apenas para reforçar as suas convicções. Uma vez mais, nunca fora sua intenção divulgar os resultados destes testes, tendo apenas comentado o sucedido com a sua mulher, Patricia Murio.

Patricia Murio tinha ficado bastante surpreendida com a coragem do marido para levar a cabo esta experiência. Ela conhecia-o bastante bem, mas jamais poderia supor que ele iria recorrer a Sofia Estelar para comprovar as suas teorias. Por outro lado, Sofia Estelar ficou marcada com esta experiência da hipnose. Deste modo, não apenas confirmou a competência de Marcus Belling, como também o efeito terapêutico da Terapia de Regressão. A verdade é que logo após esta sessão sentiu uma tranquilidade enorme. Parecia que as lembranças se tinham libertado de um mundo espiritual que sobrecarregavam a sua alma e que agora vagueavam soltas fora do seu inconsciente. Sofia Estelar considerava-se bastante racional pelo que, não tivesse sido esta sessão de hipnose com Belling, a verdade é que continuaria a alimentar o seu ceticismo relativamente à hipnose e à Terapia de Vidas Passadas. Quando ela viu Anne Pauline a fechar a porta do gabinete, lembrou-se rapidamente de todos estes episódios do seu passado. Sofia Estelar correu então para falar com Marcus Belling. Tinha um olhar impaciente. Ele não a deixou tomar a iniciativa da conversa e tomou o rumo do discurso:

– Sofia, tive uma sensação estranha com esta pessoa. Depois de me teres devolvido aquele olhar na porta posso deduzir que sentiste o mesmo? – perguntou.

– Tenho de confessar que da primeira vez que a vi tive logo uma sensação estranha. Não consigo deixar de pensar que sou capaz de me ter enganado relativamente a esta pessoa. Por norma isso não costuma acontecer. De alguma maneira, tenho a sensação de que já a conheço. Já me arrependi muito de lhe ter aberto a porta. – disse Sofia Estelar.

– Não vale a pena ficares assim. Não te disse isto para te sentires culpada. – respondeu Belling, tentando tranquilizá-la.

Marcus Belling e Sofia Estelar estavam seguros neste ponto. Tanto um como o outro, tinham tido uma sensação estranha quando viram Anne Pauline pela primeira vez. Os grandes olhos verdes brilhantes desta jovem pareciam esconder um passado difícil de ser revelado, ou talvez demasiado complexo e traumatizante. Inevitavelmente, colocava-se a questão. Deveria Marcus Belling prosseguir as sessões de hipnose com aquela pessoa? Os dois pensavam no mesmo, mas foi Sofia Estelar que avançou com a pergunta:

– Acha uma boa ideia ela regressar cá mais vezes?

A pergunta de Sofia Estelar exigia um rápido esclarecimento da situação por parte do famoso hipnotizador, mas por outro lado ela sabia que o estava a colocar num dilema complicado de decidir. Talvez não fosse mesmo justo. De qualquer forma, foi o seu sentimento de responsabilidade naquela situação que lhe impulsionou a pergunta. Belling tinha a sua própria ética profissional, nunca se recusando a continuar uma sessão de hipnose a um paciente que o procurasse no seu gabinete da Avenida do Sol. Efetivamente, fazia parte dos seus princípios profissionais não negar a ajuda a quem dela precisasse. Desta forma, a decisão estava tomada. Ele iria até ao fim. Nunca tinha acontecido durante a sua carreira recusar o auxílio a um paciente e, apesar da estranha sensação que Anne Pauline lhe tinha provocado, Belling decidira assumir o risco da sua tomada de posição. Sofia Estelar compreendeu o seu dilema pessoal. Afinal de contas, ela era a sua secretária pessoal ainda que existisse uma relação de cumplicidade entre ambos de vários anos. A decisão final pertencia sempre a Marcus Belling.

 

Neste quente dia de julho, o dia ficara assim marcado por dois importantes acontecimentos. Por um lado, o aparecimento da misteriosa Anne Pauline, por outro, o teste final às convicções pessoais de Marcus Belling. Sofia Estelar sabia-o com segurança. Belling queria continuar a terapia com Anne Pauline, libertá-la dos seus dramas e dos traumas e, assim, através da hipnose, levá-la por um caminho de felicidade que ela nunca tinha experimentado. Como sempre, sem exceção, ele encarava o seu trabalho com espírito de missão pública, mas como toda a equipa já sabia através de situações anteriores, existiriam consequências para esta forte tomada de posição. Todavia, nada os podia preparar para o que estava prestes a suceder nos próximos meses.

Enquanto tudo isto se passava no n.º 27, a Avenida do Sol fervilhava em movimento e vida. Anne Pauline saiu do gabinete de Belling calcorreando a larga avenida que, de um lado e do outro, estava repleta de restaurantes, cafés e esplanadas decoradas num estilo vitoriano. Ao longo da avenida existiam ainda imensas fontes de água que, no verão, faziam as delícias das crianças. O prédio onde estava localizado o gabinete de Marcus Belling ficava quase exatamente a meio do percurso da conhecida avenida. Tratava-se de um magnífico prédio antigo do século XVIII, de linhas brancas e robustas, com tetos pintados e paredes recortadas com figuras da época barroca. Quando Anne Pauline desceu pela avenida naquele dia, Marcus Belling e Sofia Estelar não demoraram muito tempo a descer as escadas do prédio para irem almoçar num dos restaurantes na bela Avenida do Sol.

Recuando ao gabinete de Belling, este conservava na sua biblioteca um extenso espólio de livros sobre hipnose, como Anne Pauline tinha reparado. No entanto, ele não se interessava apenas pela hipnose, pois era um homem multifacetado, curioso por vários domínios do saber. Ao longo dos últimos anos, ele tinha vindo a interessar-se por temas como a ligação entre a medicina e a astrologia, o efeito terapêutico e medicinal das plantas, o poder curativo da fé, a alquimia e a ciência experimental. De uma maneira geral, ele considerava que o conhecimento sobre os minerais e as plantas poderiam providenciar com a sua utilização prática um efeito terapêutico que não deveria ser menosprezado. Marcus Belling encarava a medicina natural e homeopática como uma forma de terapia, não menos válida do que a própria hipnose. Por essa razão, considerando que as duas serviam os mesmos propósitos, começou a estudar meios de as aplicar simultaneamente em benefício dos seus pacientes. Por outro lado, dado ter iniciado a sua carreira no campo da hipnose clínica, Belling decidiu aproveitar a sua experiência profissional desses anos para praticar a Terapia de Vidas Passadas com um outro nível de saber e especialidade. Assim sendo, era possível encontrar na sua biblioteca particular livros sobre experiências químicas, receitas experimentais de alquimia, fitoterapia, regressão e poder curativo do corpo e da mente, medicina, zodíaco e botânica oculta. Todos estes livros constituíam uma fonte de inspiração diária para o seu trabalho diário (o que nem sempre era compreendido por Sofia Estelar).

Marcus Belling era igualmente apaixonado pela literatura mundial e não apenas por livros técnicos: a ele interessava-lhe qualquer tipo de literatura desde que pudesse recorrer a esta para se tornar num melhor hipnotizador. Por essa razão, chegou a passar algumas temporadas na biblioteca municipal da cidade, onde inclusivamente trocou algumas palavras com Georgine Gunderson. Alguns dias mais tarde, a bibliotecária seria destacada para trabalhar na antiga biblioteca nacional. Na realidade, através da leitura de diversos livros, de ficção ou técnicos, ele podia sempre reter uma boa ideia que às vezes utilizava nas suas sessões de hipnose, sobretudo nos casos mais complicados. Por vezes, o estudo teórico não era suficiente para resolver certos traumas das vidas passadas: era preciso viajar pelo mundo e por diversas experiências, ainda que por vezes apenas através dos livros. Um bom exemplo disso era o livro de Aldous Huxley intitulado, “O Admirável Mundo Novo”: com ele Belling desenvolvera o seu espírito crítico, fundamental ao longo da sua carreira. Através desta leitura ele questionava agora as técnicas padrão usadas na hipnose e sugeria novas abordagens. A paixão por este livro em particular, que começou na adolescência, fascinava-o pela sua oposição aos ideais de construção de uma sociedade padronizada, regida pela ilusão do progresso, sem noções do passado e de conceitos fundamentais como a moral e a família. Uma sociedade que era dividida em castas e os seus membros regidos pelos mesmos aspetos genéticos e psicológicos, permanentemente condicionados pelas mesmas regras sociais. Pouco a pouco, enquanto se interessava cada vez mais hipnose, teria sempre a tendência, naturalmente, para pensar neste livro. Como Belling nunca esquecia um bom livro e usava todas as ideias dos escritores para perceber melhor qual era o seu papel no mundo, foi percebendo com os anos que, a hipnose em si, constituía uma forma muito valiosa de as pessoas olharem para si próprias sem estarem condicionadas às convenções sociais. A hipnose era assim sinónimo de liberdade. A noção de liberdade neste campo foi assim sendo trabalhada por Marcus Belling ao longo de mais de vinte anos de prática profissional onde, para além da confiança, a destacava como valor fundamental da sua deontologia.

Na visão de Belling, a hipnose era uma ferramenta de poder para poder ver mais além da própria alma. De facto, mais para além dos limites da sua própria sociedade, da ilusão do progresso e das normas sociais estabelecidas. Ao longo dos anos, o hipnotizador começou assim a transmitir às pessoas uma ideia poderosa que às vezes poderia colocar em causa a sua própria carreira: a ideia de que as pessoas são responsáveis pelo seu destino e que têm a capacidade de mudar a sua trajetória de vida, ainda que com a ajuda de um hipnotizador. Nesse sentido, Belling foi pioneiro na sua área ao reconhecer às pessoas que elas podiam ser detentoras de um instrumento de poder e de mudança que estava totalmente ao seu alcance. O hipnotizador apenas ajudava nesse processo de descoberta. No fundo, era disso que se tratava. Todos quanto procuravam Belling vinham à procura da felicidade e Anne Pauline não era uma exceção.

Mas o Conselho Nacional de Hipnose não aprovava totalmente a mensagem e a postura de Marcus Belling face ao seu próprio papel profissional. Alguns colegas hipnotizadores mais envolvidos no Conselho já o tinham avisado de que ele estaria a criar falsas expectativas nas pessoas, fazendo-as incorrer no erro de que um hipnotizador era dispensável no seu processo de tratamento. O Conselho encarava assim esta atitude como uma forma de menosprezar o crucial papel desempenhado pelos profissionais que representava e, por várias vezes, pediu algum refreio a Belling nas suas palavras. A este propósito, várias vezes, tinham-lhe chamado a atenção: «Daqui a pouco as pessoas começam a fazer auto-hipnose em casa. Já ninguém consulta um hipnotizador, se continuar a dizer essas coisas». Embora respeitando a recomendação do Conselho, Marcus Belling continuava firme na sua forma de trabalhar.

A abordagem de Marcus Belling não incomodava apenas o Conselho Nacional de Hipnose, mas também Josef Salvaterra. Na realidade, num programa de rádio há vários anos, Salvaterra desferiu um duro golpe a Belling ao afirmar que o colega andava a enganar as pessoas com discursos proféticos. Para ele, o papel do hipnotizador não era substituível, «pois por vezes as pessoas precisam de alguém que as guie». Esta última frase foi dita num programa de rádio sobre hipnose e originou uma avalanche de chamadas de pessoas que exigiam falar com Salvaterra. «Devem ser fans loucos de Belling», disse Salvaterra em tom de brincadeira para o locutor de rádio.

Neste sentido, também em parte pelo seu distanciamento em relação à postura defendida por Belling, Salvaterra possuía um estatuto diferente dentro do Conselho; este era mais interventivo, apesar da sua imagem ter ficado enfraquecida durante vários meses com o “caso Salvaterra”. Gradualmente, Marcus Belling foi criando os seus próprios métodos de trabalho, cada vez mais distantes e inovadores face ao que era recomendado pelo Conselho, para grande entusiasmo dos seus pacientes.

Salvaterra e Belling começaram a distanciar-se um do outro, mesmo dentro do próprio Conselho. Josef Salvaterra, ao contrário de Belling, tinha outras ambições que não apenas tornar-se no mais conceituado hipnotizador do país. Ele almejava um novo estatuto no seio do Conselho Nacional de Hipnose que lhe pudesse conferir uma vantagem no meio da sua classe profissional. Por essa razão, na última reunião, ele candidatara-se a Presidente da Assembleia Geral; Salvaterra pretendia gerir os destinos da organização e, com isso, afastar Belling do seu protagonismo. A única forma de isso acontecer passava por controlar a gestão da organização o que internamente significava deter o poder sob todo o Conselho. Contudo, Salvaterra teve poucos votos aquando das eleições o que gerou, da sua parte, uma enorme indignação. Foi conturbada a situação que se seguiu. Josef Salvaterra demonizou todos os seus colegas chamando-os de “ignorantes” e prometeu dirigir uma reclamação para o Comité Internacional da Hipnose alegando que existira fraude nas eleições. Uns dias mais tarde, para espanto de todos, Marbella apareceu nas instalações do Conselho, durante uma das reuniões da Assembleia geral, tentando nessa altura imiscuir-se em assuntos de gestão interna: ela pretendia saber qual o valor das receitas arrecadadas com o pagamento das quotas anuais ao Conselho.

A ganância de Marbella era conhecida por todos. O referido episódio com as quotas foi contado entre todos os hipnotizadores, dando conta que nesse dia a mulher de Salvaterra fora colocada no exterior das instalações do Conselho perante a sua própria indignação. Por essa razão, Marbella Gorey era conhecida como a “toupeira” porque conseguia cheirar o dinheiro onde quer que ele se encontrasse e a larga distância. Era um facto, que ela era capaz de se munir de todos os recursos possíveis se estivesse em causa dinheiro e algo não deixava de a incomodar: o marido não ganhava uma fortuna. Marbella e Salvaterra viviam razoavelmente bem, mas sem grandes luxos e, por essa razão, a única forma de atingir certos objetivos era recorrer a meios pouco éticos. Para prejudicar Marcus Belling e afastá-lo dos meios de comunicação, ela estaria disposta a fazer quase tudo. Por mais de uma vez que o tinha tentado. Contudo, a intervenção rápida de Maria de Burgos evitara a publicação de notícias caluniosas acerca do famoso hipnotizador. Mas, desde há meia dúzia de anos atrás, que Marbella contava com a ajuda de um cúmplice chamado Alfonso Rúbio, o filho de uma prima que se via sempre constantemente envolvido em furtos e na pequena criminalidade. Tinha apenas vinte e três anos, mas um cadastro completo nas mais variadas atividades de delinquência. Considerado como um “caso perdido”, Alfonso por vezes aceitava colaborar com Marbella (por um “preço económico”) para difundir algumas informações que ela achava fundamental para acabar com o mediatismo de Belling ou para outro tipo de atividades de ética duvidosa. Alfonso deixava-se comprar por pouco, o que era um excelente negócio para Marbella que o considerava ideal para a concretização de alguns dos seus planos. Contudo, esta cumplicidade já não existia no dia em que Anne Pauline tocou à porta do gabinete de Marcus Belling, pois Alfonso tinha desaparecido há algum tempo.

Marcus Belling parecia imune a tudo isto. Talvez porque se encontrava rodeado de uma equipa leal que tinha montado um aparelho logístico complexo que lhe permitia viver exclusivamente dedicado à sua profissão. Um dia, numa conferência internacional, alguém lhe dissera:

– O Belling acredita na hipnose. É quase como se tivesse uma espécie de fé dentro de si, quase inabalável. Também já tive esse tipo de ilusões.

«Não julgue que seja possível saber tudo acerca de um mundo a que apenas acedemos através da nossa mente», disse-lhe uma vez um colega.

– Acredito no meu trabalho. – limitou-se a responder Belling.

Nem todos os hipnotizadores estavam convencidosque a hipnose constituísse uma terapia eficaz para as pessoas, muito embora fizessem dela a sua carreira. Parecia uma contradição, mas alguns profissionais na área não acreditavam naquilo que faziam. Ao contrário, Marcus Belling era um inconformado. O famoso hipnotizador tentava manter-se fiel a si mesmo. Este não tinha sido, contudo um trajeto fácil e com o passar dos anos, de forma quase inevitável, começaram a surgir dúvidas acerca de si mesmo, do seu trabalho e da sua missão na vida. Por isso mesmo existiam alturas em que ele precisava de todo o recolhimento possível para voltar a acreditar nas suas convicções. Sem elas, não existia Marcus Belling nem uma carreira. Ele sabia por outro lado que existiam muitas crenças limitativas em torno da hipnose que eram simplesmente inventadas através da difusão de mitos supersticiosos ou pelos meios de comunicação. Nestes casos, era difícil desmontar o engano. O famoso hipnotizador ainda não sabia, mas Anne Pauline iria marcar a sua vida. Antes mesmo de ela entrar no consultório da Avenida do Sol, Belling recordava-se de um dos casos mais marcantes na sua carreira que lhe devolvera a segurança interior de que a prática da hipnose teria de ser encarada com um espírito de missão pública.

 

Um dia, uma mulher chamada Carla veio ter com Belling relatando distúrbios de sono. Com o passar dos anos, sem tratamento à vista, esses mesmos distúrbios evoluíram para o sonambulismo, para grande receio do filho que a ouvia à noite, sozinha, a caminhar pela casa. Sendo mãe solteira, raramente tinha um trabalho estável, vivendo num anseio constante, que não lhe permitia adormecer, durante dias seguidos. Foi então que Carla pensou em recorrer à hipnose e, portanto, a Marcus Belling. Ela sabia que era difícil conseguir uma sessão com ele, tal era a fila de espera que existia e que era do conhecimento público. Decidiu, contudo, tentar a sua sorte. Sofia Estelar considerou-a um caso prioritário e, devido às suas dificuldades económicas, após confirmação da sua situação pessoal, o preço das sessões foi diminuído para ela prosseguir o seu tratamento. De facto, o consultório praticava uma tarifa especial para estas situações e tinha sido Belling a instruir Sofia Estelar para ter em consideração este tipo de circunstâncias na sua tabela de preços. Pragmático por um lado, caridoso por outro, o famoso hipnotizador era sensível às situações de carência económica de quem o procurava e tinha montada uma logística para dar apoio e uma rápida resposta aos casos mais sensíveis.

Carla confessou a Marcus Belling, que tinha medo de recorrer à hipnose para curar o seu problema de sonambulismo. Será que ia ficar também sonâmbula durante o transe hipnótico? Ele tranquilizou-a. Este era apenas um mito e ela não tinha razões para ter medo do que pudesse acontecer durante esse período pois ela encontrava-se num ambiente controlado. Com o tempo, Carla foi tendo cada vez mais confiança com Belling e sentindo-se mais confortável, deixou-se levar para um estado mais profundo de transe. O famoso hipnotizador começava sempre por lhe dizer:

– A Carla imagine agora que está numa posição muito confortável... respire profundamente... sinta o seu corpo a descontrair... feche os olhos... imagine agora que é Robinson Crusoe e que está numa ilha deserta... o mar bate nos seus pés e as ondas trazem consigo o cheiro da maresia... respire profundamente e sinta os seus olhos a fecharem-se lentamente...

Uma vez mais, Marcus Belling auxiliava-se da literatura para ajudar os seus pacientes a ultrapassar os seus problemas internos usando para tal passagens ou personagens desses livros. Era assim que funcionava o poder da sugestão. Neste caso, a leitura da obra de Daniel Defoe ajudou-o a criar uma poderosa metáfora com Carla, sugestionando durante o transe hipnótico, que ela era Robinson Crusoe, que se encontrava sozinha numa ilha deserta, tendo de usar os recursos disponíveis para reconstruir a sua vida. Tratava-se acima de tudo de lhe devolver a confiança que tinha ficado abalada durante a sua vida.

No caso de Carla foi Robinson Crusoe quem lhe salvou a vida. Em algum dado momento, pensou Belling para si, o herói desta história que se havia salvo a si próprio da morte e da privação, teria um destino maior: o de salvar outros que estão na mesma situação. «Que outro destino, melhor do que este, poderia ser dado a esta personagem?», pensou Marcus Belling para si próprio. Assim, durante meses sucessivos, Carla imaginou que se encontrava numa ilha deserta e no meio do silêncio recuperou finalmente dos seus anseios. Foi assim, com esta poderosa metáfora, que ela superou os seus distúrbios de sono ganhando uma qualidade de vida que nunca tinha tido. Na última sessão, Marcus Belling aproveitou então a oportunidade para lhe dizer:

– O que eu espero daqui para a frente é que possa encontrar a sua felicidade e plenitude interiores. A nossa alma apenas se compreende a ela própria quando começamos a olhar para dentro de nós. – finalizou Belling.

Carla tinha acabado de acordar. Na realidade, ela foi acordando para a vida e foi assim que os problemas de sonambulismo acabaram por desaparecer. O sono era agora repousante e revitalizante. Sendo um dos casos de maior sucesso da sua carreira, ela acabaria por se tornar uma amiga próxima de Sofia Estelar, e era visita frequentemente do consultório na Avenida do Sol.

Na sua última sessão de hipnose, e quando saiu do gabinete, Carla percorreu a pé a avenida, curada dos seus sintomas. Procurou ali perto, imediatamente, um alfarrabista onde viria a comprar uma versão antiga do livro de “Robinson Crusoe”, de Daniel Defoe e lendo-o até à exaustão, retirou bons ensinamentos que a ajudaram, nos anos vindouros, a manter e a conservar a sua felicidade. Junto a este alfarrabista, que há mais de quinze anos vendia livros antigos na Avenida do Sol, encontrava-se um antiquário. O proprietário chamava-se Argus Dubois. Quando Carla passava junto à sua loja sonhava em ter um guéridon: uma espécie de mesa diminuta, arredondada, coberta por um tampo em mármore. No final do dia, ela deixaria o livro de Robinson Crusoe em cima da mesa. O dia seguinte seria mais uma descoberta, mais uma jornada.

Não foi apenas Carla que aprendeu alguma coisa com Belling. Com este caso, o famoso hipnotizador descobriu o verdadeiro poder da imaginação e da sugestão, embora já o tivesse praticado noutros casos, embora não com tanto sucesso. As chamadas “imagens âncoras”, como lhes costumava chamar, eram utilizadas por alguns pacientes para lhes dar uma maior sensação de conforto e de segurança durante o transe hipnótico. Consequentemente, Belling aprendeu que essas imagens estão ligadas ao poder dos símbolos. Existia, portanto, uma área muito importante ligada à hipnose que nunca tinha sido devidamente investigada e que agora, com o exemplo de Carla, não podia continuar a ser ignorada. Foi desta forma que Belling inovou uma vez mais, face ao saber que era transmitido pelo Conselho Nacional de Hipnose e em comparação com outros hipnotizadores. A simbologia passou assim a ser um tema de interesse neste campo de trabalho.

O estudo dos símbolos tornou-se, assim, para Marcus Belling uma ferramenta fundamental para compreender melhor o caso particular dos seus pacientes. Na realidade, para se tornar um melhor hipnotizador. Nas suas investigações, Belling apercebeu-se de que o estudo acerca da origem, interpretação e da arte de criar símbolos era mais relevante do que aquilo que julgava para a vida de um hipnotizador: aliás, foi sempre através dos símbolos e da representação simbólica que o ser humano aprendeu a apropriar-se do mundo. Todos os mitos, crenças, factos e ideias são expressos através de símbolos e são eles que representam a realidade. Como seria possível que, durante todos aqueles anos, pudesse ter ignorado esta realidade?