Hipnose

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Quando Anne Pauline toca, neste dia, à campainha do consultório de Marcus Belling, ela desconhece todas estas histórias de vida. Também ela própria tem a sua, por vezes dividida entre o presente e o passado. Por um lado, ela não sabe que existe uma equipa leal e dedicada que trabalha com Belling, que Marbella e Salvaterra possuem uma acérrima disputa com o famoso hipnotizador há vinte anos, e que Sofia Estelar e Maria de Burgos desenvolveram um esquema operativo bastante bem elaborado no consultório da Avenida do Sol. Por isso, nem a própria Anne Pauline tem consciência do que está prestes a desencadear com o seu aparecimento.

O consultório de Marcus Belling funcionava num prédio antigo, entre os muitos que tinham sido construídos durante o século XVIII na principal avenida da cidade. Ao longo de dois quilómetros existiam aqui inúmeros cafés e restaurantes, esplanadas repletas de pessoas, e sobretudo, muitas fontes de água que eram verdadeiras preciosidades arquitetónicas. Para além de tudo isso, não muito longe do n.º 27, ficava localizada a estátua da Fénix que tinha sido mandada erigir no início do século XX: um enorme pássaro parecia levantar-se do chão, para depois levantar voo. Ao seu lado, numa espécie de pia, encontravam-se as suas cinzas, que significavam o seu renascimento. Há muito tempo que a jovem Anne Pauline andava à procura da sua identidade e precisava desesperadamente de saber o que tinha acontecido no seu passado. O homem que lhe aparecia todas as noites há muitos anos em sonhos, quase que lhe tinha exigido que ela regressasse ao seu passado. Por outro lado, ele tinha-lhe destruído a sua confiança interior, fazendo-a duvidar da pessoa que ela era realmente. Ela precisava de se reerguer, tal como o pássaro da Fénix.

Desta forma, ao caminhar em direção ao consultório de Belling, Anne Pauline parou em frente à estátua para admirar a sua arquitetura. A pintura que cobria o pássaro já se tinha desvanecido com o tempo, tendo permanecida intacta apenas a força da pedra, uma metáfora para mostrar que era sempre necessário confiar num futuro melhor. A jovem respirou fundo e encontrou ali alguma esperança para si mesma, tal como quando observava a “Ilha dos Pássaros” na sua praia.

A Avenida do Sol, larga e esplêndida, era a principal artéria da cidade. Sendo uma avenida entusiasmante, repleta de cafés e restaurantes, era frequente ver aí sentados Belling e Sofia Estelar a conversar. As mulheres que reconheciam o famoso hipnotizador aproveitavam esta sua aparição para pedir autógrafos e tirar fotografias, o que apenas incomodava ainda mais a sua secretária pessoal. Sofia Estelar era mais do que uma confidente próxima. No fundo, a sua relação próxima com Belling tornou-a quase como uma amante dissimulada que não podia expor os seus verdadeiros sentimentos, ainda que quisesse. A verdade é que Marcus Belling não imaginava que algo de intenso a pudesse estar a consumir, mesmo que trabalhasse com ela diariamente.

Talvez por tudo isto, Sofia Estelar exagerava nos pedidos que dirigia às mulheres que pretendiam ter uma sessão de hipnose com Belling. «Tudo isto tem caráter obrigatório», dizia ela obrigando-as depois a preencher papéis intermináveis quase para as fazer desistir dos seus propósitos. Existia nela algo de manipulador, difícil de controlar. Apesar de tudo, ela conseguia filtrar os casos prioritários, distinguindo os casos urgentes daqueles que não o eram, apercebendo-se sobretudo, dos meros curiosos que vinham apenas saciar o seu gosto pela fama. Mas a astúcia de Sofia Estelar não era verdadeiramente conhecida por Belling que se escondia por detrás da sua característica capa de ingenuidade, para justificar o seu desconhecimento relativamente à abordagem que existia no consultório, por parte da sua secretária.

Anne Pauline tocou ao meio-dia à campainha do n.º 27 da Avenida do Sol. Perante o silêncio, tocou uma segunda vez. O sol e o calor pareciam ter amolecido as pessoas que agora caminhavam de forma dolente pela avenida, quase como se pressentissem a revolução que estava prestes a ocorrer. Naquele momento, as cores vermelha e dourada que ainda resistiam da estátua da Fénix acentuaram-se como se o pássaro quisesse tomar vida e voar. Seguidamente, como acontecia duas vezes por dia, o mecanismo elétrico que existia dentro da estátua fez acionar o movimento das placas onde se encontravam as cinzas, de onde agora corria uma água límpida e fresca. Subitamente, a estátua tinha-se transformado numa fonte de água.

Entretanto, enquanto Anne Pauline esperava que Sofia Estelar lhe abrisse a porta, algo de muito importante para a sua vida estava a acontecer, naquele preciso momento, numa outra zona da cidade.

Georgine Gunderson era bibliotecária há muitos anos e, naquele dia de verão, tinha sido chamada pelo diretor de arquivos da biblioteca municipal. Não medindo mais de um metro e sessenta, de olhos verdes escuros e rosto oval, recebeu a informação que tinha sido destacada temporariamente para a antiga biblioteca nacional, já extinta. Seria assim a única funcionária permanente daquelas instalações, abandonadas há mais de sete anos. O antigo edifício da biblioteca, do século XIX, albergava agora encomendas e livros que, por motivos logísticos, não podiam ser guardados noutros locais da Câmara por falta de espaço. Era um espaço antigo que tinha funcionado como repositório dos mais importantes catálogos da cidade e que se encontrava fechado há vários anos.

Georgine Gunderson não compreendia a razão pela qual tinha sido colocada naquelas funções, extremamente solitárias e aparentemente inadequadas à sua experiência profissional. Por momentos, pensou que o seu segredo mais íntimo tinha sido revelado. Sim, ela tinha um segredo. Existia ainda outra hipótese; talvez as suas investigações fora do horário de expediente para descobrir a verdadeira história da Avenida do Sol, tivessem incomodado as suas chefias, sendo esta a forma encontrada, de se voltar a concentrar no seu trabalho. A verdade é que, neste dia, ela era oficialmente a única funcionária destacada pela Câmara para arquivar livros na extinta biblioteca.

– É apenas um espaço temporário. Precisamos de alguém que, por agora, nos possa ajudar a dar alguma arrumação ao que ainda lá se encontra naquela biblioteca. Hoje chegou uma encomenda importante. Preciso que a Georgine vá até lá e ajude a arrumar os livros que vieram hoje. Vai lá ficar durante os próximos nove meses. Depois disso, volto a colocá-la como funcionária permanente na nova biblioteca, prometeu-lhe o chefe.

Ela nada podia fazer. Relutantemente, Georgine Gunderson foi naquela manhã para a rua onde ficava localizado o edifício da biblioteca antiga. À sua espera, num pequeno camião, estavam várias caixas de livros que foram trazidas para dentro das instalações. Com cuidado, todas as caixas foram colocadas em cima de uma antiga mesa, hoje coberta de pó. Algo naquele espaço a assustava. Georgine não gostava de ser a única pessoa a trabalhar naquele lugar inóspito, atualmente fechado ao público.

Cuidadosamente, a bibliotecária abriu todas as caixas que lhe tinham chegado naquele dia. Todas elas tinham sido numeradas pela Câmara. Não sabia de onde vinham aqueles livros e essas explicações nunca lhe foram dadas. Foi assim, com bastante alívio, que após duas horas de trabalho, abriu a última caixa daquele carregamento: a BO18. Lentamente, com muito cuidado, começou a colocar os livros nas prateleiras. Georgine Gunderson não sabia, mas naquele dia, fora destacada para guardar um segredo. Segredo esse que ela teria de manter em segurança durante os próximos nove meses, de acordo com as orientações dadas pelo seu chefe. Entretanto esperava-lhe muito trabalho.

Os nove meses significariam muito, tanto para Anne Pauline, como para Georgine. Sem que as duas pudessem ainda adivinhar, os seus destinos acabariam por se cruzar. Isto porque, embora Georgine Gunderson não estivesse habituada a guardar segredos porque ninguém os confiava (não por falta de confiança, mas porque ela era uma pessoa invisível aos olhos dos outros), a verdade é que ela guardava agora uma verdade inconveniente acerca da nova paciente de Marcus Belling. Sem o saber ainda, fechou a caixa BO18 e, com um sentimento estranho, regressou a casa.

O Mistério de Anne Pauline

1

A PORTA ABRIRA-SE. Finalmente era dada autorização a Anne Pauline para conhecer Marcus Belling.

Para quem conseguia entrar no consultório de hipnose, isso significava que já se tinha passado pelo rigoroso crivo de seleção de Sofia Estelar. A secretária do famoso hipnotizador tinha um ritual, que mantinha há muitos anos. Sempre que alguém iniciava as sessões de hipnose com Belling, ela ficava à espera da pessoa na porta para a cumprimentar pessoalmente, para provar a si mesma que sabia escolher as pessoas certas. As “pessoas certas” eram aquelas que precisavam realmente da ajuda de Belling para ultrapassar os seus traumas ou quebrar hábitos prejudiciais e não apenas as que tinham interesse em aproveitar-se do seu mediatismo. Sofia Estelar sentia alguma vaidade e orgulho, nestas suas funções.

Quando Sofia Estelar viu Anne Pauline, apercebeu-se que era muito mais bonita do que a fotografia que vinha colada no impresso. Impresso esse que era enviado, em forma padrão, para todas as pessoas que solicitavam uma sessão com Belling. Como ela bem sabia, existiam mulheres muito pouco fotogénicas que, no entanto, deslumbravam quando apareciam na Avenida do Sol e estes eram casos a que ela tinha de se manter atenta. Este esquema de ilusão da mente era enganador e não permitia a Sofia Estelar confiar na fotografia que vinha com o papel de registo na consulta. No caso de Anne Pauline, à medida que ela chegava cada vez mais perto, a secretária sentiu um tremor estranho dentro de si. “Não gosto desta sensação”, pensou ela para si mesma. Naquele momento, ela percebeu imediatamente que tinha escolhido a pessoa errada para ter sessões de hipnose com Belling e que, excecionalmente, o seu método de seleção que era uma mistura de intuição, astúcia, inteligência e perspicácia, não tinha funcionado. Alguma coisa tinha falhado naquele processo. Sofia Estelar ficou subitamente amedrontada com aquela constatação. “Estar-me-á a faltar o talento para isto?”, pensou imediatamente.

 

Era raro a secretária pessoal de Marcus Belling duvidar do seu talento para as funções que desempenhava no consultório há mais de vinte anos. A sua intuição dizia-lhe agora que Anne Pauline Roux era uma pessoa diferente, daquela que inicialmente tinha julgado. Mas já não havia nada a fazer. Anne Pauline percebeu o desconforto que a sua presença causou em Sofia Estelar, mas as duas cumprimentaram-se cordialmente. A secretária de Marcus Belling acompanhou-a então, corredor dentro, até uma das portas onde a esperava o famoso hipnotizador. Sem ainda ter perfeita consciência disso, Sofia Estelar tinha acabado de iniciar, para sempre, a mudança na vida de todos aqueles que trabalhavam na Avenida do Sol. Anne Pauline era uma presença misteriosa. Conseguia sentir isso mesmo de cada vez que falava ou olhava para ela. Naquele instante, arrependeu-se de lhe ter aberto a porta. “Devia ter ficado lá fora”, voltou a pensar.

Quando Anne Pauline entrou no consultório de Marcus Belling, ela deu-se conta que o charme dele era maior do que aquilo que julgava. “Na televisão parece mais alto”, pensou ela para si mesma. Ele recebeu-a com um sorriso agradável e com um gesto afetuoso. Sofia Estelar virou os olhos. Nunca se habituaria ao encantamento das mulheres por Belling, mas fechou a porta atrás de si e deixou-os sozinhos para a sessão de hipnose que estaria prestes a começar.

Quando Marcus Belling viu Anne Pauline mais de perto teve imediatamente um sentimento estranho. A sua afetuosidade e abertura rapidamente se transformou em desconfiança. Era raro isso acontecer pois ele era uma pessoa que estabelecia uma grande confiança com os seus pacientes e, por causa disso mesmo, tinha sido avisado por Maria de Burgos para se resguardar um pouco mais. Isso raramente acontecia. Naquele momento, percebeu imediatamente o significado do olhar que Sofia Estelar lhe deixara antes de fechar a porta. Anne Pauline não tinha reparado, mas aquele olhar angustiado da secretária parecia querer dizer-lhe: “Eu enganei-me”. Belling voltou a repetir a memória deste olhar na sua cabeça: “Esta pessoa pode não ser de confiança”, pensou para si mesmo. Devia, portanto, ter cuidado com ela.

Ainda em silêncio, Marcus Belling estendeu a mão a Anne Pauline e cumprimentou-a de forma cordial. Depois, articulou-lhe pela primeira vez as suas palavras:

– Sente-se, por favor. Bem-vinda ao consultório de hipnose na Avenida do Sol. Neste dia, começa o seu caminho para descobrir o seu passado. – disse, sorrindo.

Naquele momento, a sua paciente continuava em silêncio, quase como que a recordar mil vezes na sua mente aquele breve discurso de Marcus Belling. Aquela voz era-lhe muito familiar, mas tinha dificuldade em perceber de onde lhe vinha aquela sensação. Desta forma, sentou-se no “sofá dos hipnotizados”. Marcus Belling começou por se apresentar a Anne Pauline. Tinha estudado nos Estados Unidos e no Reino Unido, era membro efetivo há mais de quinze anos do Conselho Nacional de Hipnose, uma organização que difundia e promovia as práticas de hipnose no país, e costumava frequentar conferências e palestras sobre hipnose pelo mundo inteiro. Com esta apresentação pretendia, como sempre, desviar a atenção do paciente do seu drama pessoal para aquela sessão, preparando-o assim para construir uma relação de confiança. «A confiança é um pilar fundamental desta relação», costumava dizer Marcos Belling às pessoas que o procuravam. Ele, enquanto hipnotizador, procurava ir ao fundo da alma de cada um, conhecer o outro de uma maneira mais profunda como nunca ninguém tinha experimentado. Talvez, por essa mesma razão, apesar da oposição de Sofia Estelar e de Maria de Burgos, recusava-se por isso a ser menos autêntico do que aquilo que era ou do que demonstrava ser. Do outro lado, algumas vezes nem sempre encontrara a compreensão que esperava receber por parte da equipa que dirigia. «Às vezes pede às pessoas o impossível, Belling. Hoje em dia já ninguém é tão autêntico como pretende que as pessoas sejam», disse uma vez Sofia Estelar cheia de coragem. Lá no fundo, Belling sabia que ela tinha razão.

É verdade que Marcus Belling tinha como principal função descer o mais profundo possível à alma de cada, como jamais ninguém tinha tentado. Por essa razão, tornava-se tão importante construir uma relação de confiança com os seus pacientes. O mesmo não sucedia com Josef Salvaterra que apenas se preocupava com o momento da indução em estado hipnótico, escapando da profundidade do espírito das pessoas que o procuravam. Ao contrário, Belling queria conhecer os seus medos, as suas mágoas, as tuas tentações e os seus castigos interiores; de facto, em muitos casos, os seus pacientes recorriam à hipnose para se perdoarem a si mesmos. Esta era uma realidade que Marcus Belling conhecia bastante bem, sobretudo porque era muito bom observador e bastante perspicaz. Desta forma, as pessoas procuravam algumas vezes o seu contacto para partilhar esta sua culpa com outro, acima de tudo alguém que não as julgaria.

Marcus Belling preparou as condições para que Anne Pauline pudesse começar a falar de si e o que a tinha levado a procurá-lo. Foi precisamente essa a primeira pergunta que lhe colocou. Seguiu-se então a resposta.

– Toda a minha vida, desde a minha infância, que sinto que tenho um passado que não compreendo. Durante muitos anos tive lembranças de uma vida que me pareceu ser minha. – explicou Anne Pauline.

– O que me está a dizer, se a compreendo bem, é que a Anne sente que teve várias vidas passadas e que as imagens dessas vidas lhe chegam por exemplo em sonhos? – perguntou Marcus Belling.

– Sim, é isso que estou a dizer. – respondeu.

– Pode parecer-lhe estranho, mas sabia que alguns dos sonhos que a maioria das pessoas têm em vida estão normalmente relacionados com episódios das suas vidas passadas? A maioria nunca chega a saber isto. Apenas quando a vida passada é cheia de eventos que marcaram a nossa memória é que é possível relacionar esses sonhos com uma vida passada, disse Belling.

Anne Pauline mostrava-se interessada e surpreendida com aquilo que Marcus Belling lhe acabara de dizer. Queria isso então dizer, que pelo menos uma fração daquilo que sonhara durante a vida estava intimamente relacionado com as suas vidas passadas. Todavia, ela tivera muitos sonhos durante a sua vida e por isso, tornava-se difícil especificar quais aqueles que se relacionavam com o seu passado desconhecido. Belling percebeu o entusiasmo da jovem pelo tema e prosseguiu.

– Isso acontece a muitas pessoas. A maioria não chega sequer a saber que alguns desses sonhos estão relacionados com vidas passadas. Se no seu caso é capaz de se recordar dessas imagens é porque, de alguma maneira, isso lhe causa uma sensação de desconforto. A Anne Pauline sente esse desconforto porque viveu experiências tão intensas que ficaram guardadas no seu subconsciente. Talvez haja algo no seu passado que ainda esteja pendente para ser esclarecido no seu futuro? – perguntou Belling.

Anne Pauline ficou, por momentos, a pensar naquela questão de Marcus Belling, mas ela não era nenhuma especialista. Não sabia quais as razões por detrás das suas inquietações. Talvez existissem vidas passadas, com momentos traumáticos ou situações que exigiam que ela retomasse a esse mesmo passado. O que era certo é que a sua a angústia era permanente. Queria viver em paz. Belling percebeu que ela não iria responder à sua pergunta. Na realidade, nem pretendia uma resposta. O famoso hipnotizador tentou tranquilizá-la e, para isso, numa tentativa de ganhar a sua confiança, voltou a formular uma nova pergunta:

– Sempre se sentiu assim? – perguntou.

– Sim, sempre vivi num estado permanente de ansiedade e de inquietação. Acho que através da hipnose vou conseguir descobrir o meu passado. – disse Anne Pauline baixando o olhar.

– Por isso veio ter comigo. A Anne Pauline decidiu que quer iniciar a Terapia de Vidas Passadas e pretende encontrar a tranquilidade que precisa para a sua alma. – acrescentou Belling.

– Sim, é precisamente isso. – respondeu a jovem ainda de olhos baixos.

– Gostaria ainda que me pudesse dar alguns exemplos do que acaba de me dizer. Vejo que existe um passado, ou vários passados, que tentam chegar até si, talvez recorrendo ao seu subconsciente. Essa forma de libertação concretiza-se, pelo que me diz, através dos sonhos. Será que me pode contar alguma experiência que tenha tido? – perguntou Marcus Belling.

– Uma noite sonhei com três portas. Decidi abrir uma dessas portas onde estava escrito “Destino desconhecido” e fui puxada para dentro; senti uma enorme sensação de paz e tranquilidade, que apenas conheço dos tempos quando ia viajar no Argo com o meu pai. Quando acordei, tinha a cama cheia de ramagem, ervas e folhas, como se efetivamente já tivesse estado naquele lugar, que me pareceu tão familiar. Era uma planície dourada extensa. – disse Anne Pauline visivelmente emocionada.

- O que é o Argo? – perguntou Marcus Belling.

Marcus Belling não sabia o que era o Argo, mas pôde deduzir que se tratava de uma embarcação de pesca. Pouco ainda sabia acerca do passado da sua nova paciente. Por outro lado, ela manteve-se em silêncio durante algum tempo sem responder à sua questão e o hipnotizador percebeu que o Argo era muito mais do que um barco. Depois, ouviu a resposta de Anne Pauline:

– O Argo é embarcação de pesca da minha família.

Quem iniciava sessões de hipnose com Marcus Belling sabia, desde logo, que aceitava manter uma relação de lealdade com ele. A confiança era um elemento fundamental naquela relação e foi essa mesma ideia que Belling tentou reforçar junto de Anne Pauline. Tinha de existir entre dois uma ligação aberta e transparente. Ao mesmo tempo, Marcus Belling parecia adivinhar tudo o que Anne Pauline pretendia dizer. À medida que ela falava mais sobre si e sobre o “seu” mundo desconhecido, Belling ia sentindo uma inquietação interior cada vez maior. Uma vez mais, voltou a lembrar-se do olhar angustiado de Sofia Estelar. Até àquele momento a conversa com Anne Pauline tinha decorrido com toda a naturalidade. Era uma jovem de vinte e cinco anos que precisava da sua ajuda para compreender se o passado tentava de alguma forma enviar-lhe uma mensagem através da sua mente.

Anne Pauline ainda não conhecia bem a história profissional do famoso hipnotizador, mas a verdade é que apenas nos últimos doze anos de carreira, é que ele se tinha dedicado à regressão. Na realidade, ele era especialista em hipnose clínica, mas ao longo dos anos foi desenvolvendo o seu interesse pela Terapia de Vidas Passadas: a partir daqui, compreendeu que era igualmente possível tratar sintomas graves, tanto físicos como psicológicos (depressões e outros distúrbios) recorrendo à regressão. Mas alguns colegas hipnotizadores continuavam a duvidar do sucesso desta terapia, o que por vezes tinha gerado algumas convulsões de ideias e teorias dentro do Conselho Nacional de Hipnose.

Era agora pouco o tempo que Belling dedicava à hipnose clínica. Tendo começado a afastar-se da investigação nesta área, mantinha algum acompanhamento junto das crianças nos hospitais. Através da hipnose, o famoso hipnotizador ajudava-as a ultrapassar os seus traumas e as suas ansiedades. Belling deixou então o seu pensamento para trás. Estava na altura de explicar a Anne Pauline quais os propósitos, as condições e os métodos terapêuticos usados nas suas sessões de hipnose:

– Antes de mais, para que saiba, a hipnose é um estado mental que é usualmente induzido por um procedimento conhecido como indução hipnótica, já deve ter ouvido falar. O estado hipnótico corresponde às chamadas ondas alfa que estão associadas a um estado de calma e de recetividade. É por isso que, durante o transe, as pessoas se sentem bastante mais calmas. É isso que vamos fazer nas nossas sessões Anne Pauline. Vou induzi-la num estado hipnótico, mas sempre num ambiente controlado.

Anne Pauline ouvia atentamente o que Belling tinha para lhe dizer. O famoso hipnotizador prosseguiu:

– No caso específico da Terapia de Vidas Passadas, que pressupõe o uso da hipnose, a Anne Pauline irá regressar a um passado ou a vários passados que estão para além do limiar da sua vida atual. A partir daqui nós conseguiremos chegar ao que apelidamos de “memória extra-cerebral”. Ao atingirmos este reservatório de memória, será possível chegar ao núcleo do seu trauma e o seu inconsciente poderá libertar o material psíquico, a chamada catarse. Poderemos, nesta fase, compreender os traumas que ficaram encerrados no seu passado e libertar essas memórias. A partir desse momento, irá sentir um alívio significativo dos seus sintomas. – concluiu Marcus Belling.

 

– E tudo o que eu contar aqui, o que acontece a essa informação? – perguntou Anne Pauline.

– Nas minhas sessões de hipnose eu comprometo-me a manter a confidencialidade de todos os assuntos que são discutidos com os meus pacientes. Neste sentido, eu e os meus colegas hipnotizadores trabalhamos dentro do âmbito da lei; que, neste caso, é o Código de Ética do Conselho Nacional de Hipnose. – respondeu Belling.

Anne Pauline tinha ouvido e compreendido perfeitamente tudo o que Marcus Belling lhe tido dito. Sem confessar, ela nunca tinha acreditado verdadeiramente nos efeitos terapêuticos da hipnose. Contudo, ao longo dos anos, à medida que a medicina tradicional não lhe conseguia providenciar uma solução para os seus anseios, ela começara a ver na hipnose uma alternativa para a sua cura. Naquele dia, ao ouvir Belling falar sobre a Terapia de Vidas Passadas compreendeu, imediatamente, que tinha tomado a decisão mais acertada. Marcus Belling era a única pessoa que a podia ajudar. Ainda assim, quando pensava em ser hipnotizada, não conseguia deixar de não se sentir assustada. Eram muitas as questões que tinha na sua cabeça. Como seria estar hipnotizada? Será que entraria noutra dimensão? Será que se podia chamar ao transe hipnótico uma experiência de quase morte? E se Belling morresse durante uma das sessões, seria ela capaz de acordar do transe? Como muitas pessoas, Anne Pauline tinha as suas superstições e os seus receios. Por um lado, ela tinha medo de que os segredos do seu passado fossem revelados. Sem filtros, tudo ficaria a descoberto. Por outro lado, não queria que a sua história pessoal fosse do conhecimento de qualquer um. Várias vezes teve de repetir para si mesma: “Vou confiar, vou confiar”. Desta vez ia confiar. Marcus Belling disse-lhe então:

– Gostaria apenas de reafirmar que para um hipnotizador é bastante importante saber o que acontece com o seu paciente durante o transe hipnótico. Este estado é induzido através do poder da sugestão. Nesta fase, apenas o paciente me poderá dizer o que está a ver, a sentir e a ouvir. Peço-lhe por isso que confie em mim.

O pedido parecia simples. Apesar disso, como Anne Pauline iria perceber uns meses mais tarde, esta frase de Marcus Belling iria deixá-la num profundo dilema. Todavia, naquele momento, ela nada tinha a recear. O famoso hipnotizador tinha a sua ética profissional e estava obrigado ao sigilo relativamente a tudo aquilo que se passava com os seus pacientes, no seu consultório. Esta seria a primeira sessão de hipnose, uma de muitas ao longo de nove meses, de Anne Pauline com Marcus Belling. O que os dois iam descobrir daqui para a frente ultrapassava os limites da sua imaginação e, em caso algum, poderiam estar preparados para as revelações que iriam acontecer nos próximos meses.

A confiança entre hipnotizado e hipnotizador era fundamental para o sucesso da terapia. Sem a existência desta, não seria possível garantir que o paciente fosse capaz de superar os anseios causados pelas suas vidas passadas. Contudo, existia um receio compreensível por parte de alguns pacientes em reportar tudo aos hipnotizadores o que se passava durante o transe hipnótico; algumas memórias eram muito profundas e intensas. Para além disso, existiam alguns casos reportados em que a ética profissional tinha sido violada. Nestas situações, o Conselho Nacional de Hipnose aplicava os devidos processos disciplinares a todos aqueles que quebrassem a sua deontologia profissional. Um desses casos era o de Josef Salvaterra.

“O caso Salvaterra”, como ficou conhecido, parecia uma obra de ficção. Há alguns anos, procurou-o um banqueiro já reformado para compreender o sentimento de culpa que o tinha perseguido, de forma inexplicável, toda a sua vida. Tal como ele explicou, sempre tinha vivido uma vida honrada, com a família e amigos e não existia nada que o envergonhasse. Aliás, a honra era um valor fundamental que norteava toda a sua vida. Contudo, por alguma razão, considerava que ela não estava intacta na sua alma e queria perceber as razões por detrás desta sua estranha intuição.

Ao fazer a regressão a uma das suas vidas passadas, o banqueiro percebeu que tinha sido um foragido, alguém que vivia a fugir da justiça e que sobrevivia como podia. Um dia, contudo, encontrou as coordenadas para um tesouro que teria pertencido a um homem que falecera deixando uma riqueza incalculável. Uma parte dessa riqueza tinha sido enterrada num local secreto, juntamente com alguns outros pertences. O banqueiro localizou o tesouro, mas foi morto por outros que tentavam também apropriar-se do mesmo. Interessado naquela história, Salvaterra pediu então as coordenadas do dito tesouro ao banqueiro reformado, quando ele ainda se encontrava em transe hipnótico. Josef Salvaterra estava seguro de que iria encontrar aquele tesouro. Depois de obter estas informações, foi ele próprio à procura do mesmo. O tesouro de facto existia, mas já tinha sido desenterrado há muitos anos e fazia agora parte de uma coleção privada do museu da cidade. No entanto, o banqueiro tomou conhecimento das ações de Josef Salvaterra e reportou a situação ao Conselho Nacional de Hipnose. Durante três meses, Salvaterra não pôde abrir o seu consultório, perante a angústia de Marbella que julgava que tinha chegado o seu fim. Iriam os dois cair na miséria!

Nem Salvaterra nem Marbella caíram na miséria por causa desse episódio, mas o hipnotizador nunca mais tentou a sua sorte. A deontologia profissional tinha sido violada e rapidamente a história chegou aos ouvidos de Marcus Belling e de toda a sua equipa de trabalho. Como sempre, Belling não se mostrou surpreendido com a atitude do seu rival. Agora, enquanto ouvia a história pessoal de Anne Pauline, recordava-se de todos os contornos do chamado “caso Salvaterra”. Era incrível, mas já tinha passado uma hora desde que a jovem mulher tinha chegado ao consultório da Avenida do Sol e a sessão estava assim concluída. Nisto, o famoso hipnotizador disse:

– Fale com a Sofia Estelar para marcar uma nova sessão de hipnose. Lembre-se do que falámos hoje. Um caso novo é sempre um início também para mim na hipnose.

Belling jamais poderia imaginar como aquela frase continha toda a verdade acerca de Anne Pauline e si próprio. Por outro lado, a sua paciente agora olhava-o fixamente, sem compreender de onde vinham aquelas palavras. Aquele tom de voz era-lhe familiar e só agora é que tinha a certeza disso! Era cada vez mais claro que ela já tinha ouvido aquela voz em algum lado e depois de pensar um pouco, finalmente percebeu que aquela voz provinha do homem dos seus sonhos! Este era aquele homem que tinha questionado a sua dignidade e a sua honra, enquanto lhe pedia para regressar ao passado. Com esta certeza, Anne Pauline ficou assim a saber que esse homem era muito provavelmente, Marcus Belling!

Anne Pauline despediu-se de Belling e agradeceu as suas explicações acerca da hipnose e da Terapia de Vidas Passadas. Algo de muito intenso invadia agora a sua alma. Por um lado, ela estava ansiosa para iniciar esta nova jornada na hipnose, mas, por outro, não a pretendia realizar com aquele homem dos seus sonhos. Anne Pauline estava num dilema, mas sabia que, no dia seguinte, voltaria ao consultório.