Hipnose

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Era consensual que o carisma e o encanto de Marcus Belling não deixavam ninguém indiferente. O famoso hipnotizador era um homem de quarenta e cinco anos, relativamente alto, de cabelo escuro e olhos grandes castanhos: olhos esses que brilhavam quando discursava acerca da hipnose fosse na televisão ou nas palestras organizadas pelo Conselho Nacional de Hipnose. Com estas aparições, o seu glamour costumava espalhar-se pelo país todo. Também as mulheres de um modo geral deliravam com estes momentos. Todavia, não eram apenas os seus encantos próprios que ajudavam ao seu mediatismo, mas igualmente a sua reconhecida competência nacional e internacional no campo da hipnose e da regressão: a sua especialização dizia sobretudo respeito a duas grandes áreas, hipnose clínica e hipnoterapia. Belling tinha estudado Terapia de Vidas Passadas nos Estados Unidos onde adquirira uma grande parte dos conhecimentos sobre o tema. Apesar de todo o seu mérito, ele estava longe de constituir uma figura consensual.

No início da sua carreira, Marcus Belling era visto pelo público mais como um vendedor do que como um hipnotizador: ele era um vendedor que sabia vender bem o seu produto, como acontecia com todos os profissionais mais comerciais. Várias vezes tinha sido acusado disso mesmo! Era sua convicção de que a medicina convencional não era a resposta para a cura de todos os sintomas do Homem: apenas na procura de uma cura holística seria possível providenciar às pessoas aquilo que elas procuravam. Não raras vezes ele tinha sido considerado um charlatão. Por essa razão, ele tivera dificuldade em assumir-se como um reconhecido profissional na área, sobretudo nos primeiros anos. A superstição e o preconceito assombravam a carreira de Marcus Belling. Para isso, ele contava com o apoio inestimável da sua mulher, Patricia Murio, uma fisioterapeuta dedicada à família.

Por tudo isto, os primeiros dez anos na carreira de Marcus Belling foram difíceis de percorrer e nem a sua capacidade de criar rapidamente empatia com as pessoas facilitou o processo de adaptação a novos tempos. Ele queria transmitir a mensagem de que a hipnose poderia ser aplicada em diferentes contextos traumáticos, fisiológicos e emocionais. No entanto, com o decorrer dos anos, as pessoas foram-se apercebendo de que Belling era de facto um estudioso sério nesta área e que as suas investigações eram exaustivas e rigorosas. A ideia de charlatão e de vendedor foi-se desvanecendo. Por outro lado, era inquestionável o sentido de responsabilidade com que desempenhava diariamente a sua profissão. Assim foram sendo desmistificadas crenças em torno da hipnose e, nisto, assistiu-se a uma ascensão gradual, mas sólida, de um reconhecimento nacional de Marcus Belling. Alguns anos mais tarde, ele seria conhecido como o mais famoso hipnotizador do país.

Existiam muitas pessoas à espera de uma sessão de hipnose com o reputado Marcus Belling. Efetivamente, pode-se afirmar sem exagero, que estas mesmas pessoas podiam ser distinguidas na Avenida do Sol, das restantes, que eram apenas transeuntes. O rosto dos “escolhidos” ficava subitamente iluminado, como se tivessem acabado de ter tido uma clarividência acerca do mundo. Mas o mais importante é que Belling também conseguia distinguir entre alguns destes curiosos que chegavam ao seu gabinete, daqueles que apenas pretendiam vender imagens do interior do seu local de trabalho a revistas e jornais sensacionalistas e daí ganhar muito dinheiro. Tornava-se assim necessário filtrá-los a partir das centenas de pessoas que o procuravam para serem ajudadas com os seus problemas: estas pessoas sim, eram uma prioridade na sua carreira.

Tal como o seu pai, Elias Belling, o famoso hipnotizador queria servir as pessoas com a sua profissão. A hipnose era usada como um instrumento de missão pública, sendo esta a marca distintiva no perfil de Marcus Belling. Assim, procuravam-no pessoas que se queixavam de dificuldades no sono, peso excessivo ou magreza extrema, ansiedade, dores crónicas, emocionais ou físicas, ou de uma forma geral, influenciadas por inquietudes da alma. Quanto a estas últimas, a regressão ajudava a compreender o que existia no substrato do inconsciente, permitindo resolver traumas das vidas passadas e contribuindo, desta forma, para o desfrutar de uma vida mais plena.

O mesmo sucedia com Anne Pauline. Foi a inquietude da sua alma que a levou a procurar Marcus Belling, embora, por norma, os pacientes que faziam a regressão fossem os mais descrentes quantos aos efeitos terapêuticos da hipnose. Por isso, estes procuravam primeiro a orientação de um psicólogo para compreender o seu estado de alma e apenas quando os sintomas se mantinham inalterados durante vários anos é que recorriam a um hipnotizador. A Terapia de Vidas Passadas era então a única solução para os casos mais complicados.

Marcus Belling não trabalhava sozinho. Esta era uma parte da sua receita para o sucesso. Para evitar que os simples curiosos prejudicassem a sua carreira, o famoso hipnotizador trabalhava há muitos anos com uma pequena equipa que lhe era extremamente leal. Era esta mesma equipa que lhe filtrava os casos por ordem de prioridade e que conseguia avaliar as reais intenções daqueles que procuravam a sua ajuda.

Belling não seria famoso e rico sem a ajuda de Sofia Estelar, a sua secretária pessoal de há muitas décadas. Alta, de olhos joviais, ela era sua secretária desde o início da sua carreira, tendo assistido ao afastamento de Elias Belling da sua profissão, à medida que o filho ia ganhando maturidade e mediatismo. De aproximadamente cinquenta anos, Sofia era casada e mãe de dois filhos e mantinha por Belling uma relação maternal, porque quem nutria um enorme sentimento de proteção; eles já trabalhavam juntos naquele gabinete há mais de vinte anos, pelo que se tornara impossível não desenvolver uma relação de enorme proximidade emocional. Essa mesma proximidade era óbvia todos os dias, em todas as circunstâncias. Inclusivamente, existia no gabinete de Belling uma fotografia antiga dos dois, ampliada, que tinha sido registada quando o consultório abrira pela primeira vez as suas portas naquele preciso local há duas décadas. Desde essa altura, já Sofia e Marcus Belling tinham mudado as suas feições e um pouco o seu temperamento. Ambos sabiam que o tempo era sempre implacável com o Homem.

Um dos traços mais marcantes da personalidade de Sofia Estelar era a sua extrema desconfiança. Isto era algo que já tinha nascido com ela, que fazia parte da sua natureza, e que a ajudara a superar as dificuldades dos primeiros tempos, quando Marcus Belling tentou, de forma inovadora, apresentar a hipnose às pessoas como uma forma de tratamento da alma. Desde logo, que a sua figura chamou a atenção do famoso hipnotizador, que admirava o seu carácter forte e marcado, de alguém que não desiste perante as primeiras dificuldades; o sorriso ciumento que ela tantas vezes esboçava, era apenas a confirmação de que entregava toda a sua dedicação a algo em que acreditava. Por essa mesma razão, Belling soube desde o início que ela era a pessoa indicada para desempenhar aquela função para o novo consultório situado na Avenida do Sol. Teria de facto de ser alguém que, ao contrário do famoso hipnotizador, concentrava todas as suas atenções a detetar possíveis motivações menos éticas de alguns que apenas procuravam um breve momento de mediatismo.

Era difícil e exigente gerir a agenda profissional de Marcus Belling. O tempo era sempre curto para todas as solicitações e por isso tornava-se necessário identificar rapidamente as prioridades. Belling fizera uma escolha acertada quando escolheu Sofia Estelar para aquela exigente função. Por essa razão, há mais de vinte anos que trabalhavam unidos para trazer a hipnose para junto daqueles que mais precisavam dela. Ambos estavam conscientes de que este era um trabalho de missão pública.

Para além disso, Sofia Estelar assistira à primeira década bastante dura de Belling em que este tivera de se afirmar no panorama nacional como um reputado hipnotizador: a partir daí, deu-se a ascensão da sua carreira. Ela sempre fora um grande apoio e por isso não era exagerado afirmar que o sucesso de Marcus Belling estava ligado, de forma inevitável, aos esforços desenvolvidos pela sua secretária pessoal para o proteger de malícias e de esquemas que lhe pudessem ser prejudiciais. Sem exagero, também se podia afirmar, que a sua desconfiança natural tinha ajudado no processo de construção de uma estável carreira. Os dois eram, por isso, eternos confidentes. Existia assim da parte de Sofia Estelar um juramento que ela tinha feito há muitos anos: ela iria proteger o famoso hipnotizador de todos os ataques exteriores (que eram os mais variados e provinham de várias frentes de ataque). Isto porque, mais do que ninguém, conhecia o exaustivo trabalho de bastidores que existia por detrás da gestão da sua imagem e da sua carreira. De facto, durante mais de vinte anos ela concretizou o seu juramento com sucesso, exceto quando Anne Pauline entrou na vida de Marcus Belling. Neste caso, nem mesmo a sua personalidade desconfiada e a sua afiada intuição poderiam evitar que as suas vidas mudassem para sempre.

Sofia Estelar sempre fora leal a Marcus Belling. O juramento, verbalizado em palavras indecifráveis à noite, ao pé da sua cama, ditava-lhe a regra de que teria de proteger o famoso hipnotizador, independentemente do que acontecesse. Ela não era apenas a sua secretária. Ela era sua confidente e amiga. Assim, quando a vida profissional do famoso hipnotizador era assolada por escândalos com o objetivo de o descredibilizar, Belling procurava conforto junto dela e recebia, com prazer, a sua compreensão. Por vezes, a cumplicidade que existia entre os dois criava a aparência de uma relação ambígua que nem sequer era percetível a Patricia Murio. Ao longo dos anos, a relação foi-se tornando cada vez mais difícil de caracterizar, criando a ideia de se tratar de um casal de amantes, mas ainda assim apenas amigos. De facto, eram precisas novas palavras para descrever a sintonia que existia entre ambos, mas com o aparecimento de Anne Pauline os dois acabarão por descobrir que as suas vidas estão igualmente ligadas através do passado.

 

No início, Sofia Estelar trabalhava sozinha com Marcus Belling no seu consultório da Avenida do Sol, mas ao longo do tempo ela foi-se apercebendo que o seu amigo precisava de alguém que pudesse trabalhar a sua imagem. Belling era bastante ingénuo no que tocava à sua relação com os outros, não alimentando por ninguém qualquer tipo de desconfiança, o que por vezes o prejudicava, tendo em conta a sua posição. Desde cedo, a sua relação conflituosa com Josef Salvaterra lhe trouxe amarguras profissionais difíceis de gerir que, por vezes, desenvolviam pequenos escândalos que Sofia Estelar teve de ir resolvendo ao longo dos anos. Ao longo de duas décadas, e de forma inevitável, as personalidades de Sofia e de Belling foram-se alterando e definindo para acompanhar o passo do progresso, e as suas múltiplas facetas; desta forma, os dois eram pessoas diferentes quando olhavam agora a fotografia (pendurada numa das paredes) que lhes tinha sido tirada no primeiro dia em que abriram o consultório no nº. 27 da Avenida do Sol.

Por várias vezes, Sofia Estelar tinha pedido a Belling para ser uma pessoa mais desconfiada, tendo em conta a sua carreira e as suas responsabilidades, mas os elementos da sua personalidade dificilmente eram alterados por recomendação. «Tem de prestar mais atenção às pessoas que o rodeiam», dizia-lhe ela frequentemente. Contudo, estas palavras raramente surtiam efeito, pelo que os conflitos com Salvaterra acabaram por se agudizar ao longo dos anos. Tendo a situação se tornado insustentável, Sofia Estelar rapidamente percebeu que era necessário contratar alguém que pudesse gerir a imagem do famoso hipnotizador e, por esta via, veio a conhecer Maria de Burgos, uma mulher de trinta e oito anos, inteligente e perspicaz, filha de pais espanhóis e com sangue latino a correr-lhe nas veias. Carismática, já tinha trabalhado com outros profissionais que também lhe tinham solicitado os seus serviços para gerir a sua imagem pública. Desde o início, que existiu uma verdadeira empatia entre ela e Sofia Estelar e assim, foram compondo o começo de uma equipa de trabalho, que haveria de ser bastante leal a Marcus Belling. Maria de Burgos aceitou imediatamente o convite para integrar o grupo na Avenida do Sol. A equipa em si estava lentamente a formar-se e, através dela, vinha o inevitável sucesso de Belling.

Maria de Burgos passava agora então a gerir todos os assuntos relativos à imagem do famoso hipnotizador perante os meios de comunicação e o público em geral. Ela aconselhava-o quanto à postura a ter na sua relação com as pessoas, dando-lhe preciosas sugestões de como gerir este mesmo contacto e evitar demonstrar uma confiança excessiva. Por outro lado, a relação de Belling com Josef Salvaterra também se alterou, agora mais controlada e sem grandes escândalos. Mas, ao longo dos anos, Maria de Burgos compreendeu também, que não conseguia impor, totalmente, a sua forma de trabalho a Marcus Belling, pois ele insistia em manter uma proximidade demasiado grande (nem sempre recomendável, do seu ponto de vista), com o seu público. Tal implicava, por vezes, um risco para a sua carreira que, nem ela, nem Sofia Estelar, estavam de acordo, pois corriam o risco de ver o esquema logístico montado no consultório da Avenida do Sol colapsar. Agora, algo de bastante revolucionário estava prestes a suceder quando Anne Pauline entrou na vida do famoso hipnotizador. Para este, contudo, exercer aquela profissão significava aceitar que o risco fazia parte da mesma, embora isso nem sempre fosse óbvio.

Passada a primeira década da sua carreira, Marcus Belling trabalhava agora com mais confiança. O apoio de Sofia Estelar e de Maria de Burgos tinha mudado totalmente a configuração da imagem do seu consultório na Avenida do Sol. No entanto, a equipa não poderia estar completa sem ter alguém responsável pela cobrança das sessões de hipnose. A pessoa responsável por este cargo chamava-se Ruben Mortsel. O jovem contabilista trabalhava há poucos anos com Marcus Belling depois de ter substituído o seu antigo contabilista, Vicente Torquay. Este trabalhara com o famoso hipnotizador durante mais de duas décadas. Por outro lado, Mortsel desempenhava um papel fundamental no gabinete ao controlar todas as receitas que eram geradas pelo trabalho diário de Marcus Belling.

Vicente Torquay, o antigo contabilista do consultório da Avenida do Sol, tinha ensinado tudo a Ruben Mortsel, antes de se ter reformado. As novas funções de Mortsel exigiam agora um espaço diferente para o departamento e faturação, que passou assim a funcionar no prédio ao lado do n.º 27. Aqui, Torquay e Mortsel ainda trabalharam juntos um ano, informando o famoso hipnotizador acerca do dinheiro gerado com as suas sessões. Mas os relatórios de faturação sempre pareceram importar pouco para Marcus Belling, que não duvidava da honestidade profissional dos dois contabilistas. Ele sabia que ganhava muito dinheiro com a sua profissão, mas durante muito tempo decidiu desconhecer os reais valores das receitas geradas com as suas sessões de hipnose. Para além disso, o acesso ao gabinete de contabilidade do famoso hipnotizador era restrito, passando primeiro pelo crivo exigente e desconfiado de Sofia Estelar. Tudo parecia estar sob controlo até ao súbito aparecimento de Anne Pauline. O mesmo não se passava com Josef Salvaterra, que conhecia com detalhe toda a sua contabilidade.

Estava assim composta a equipa de trabalho de Marcus Belling. Todos eles tinham feito o juramento coletivo de defender o hipnotizador e o seu trabalho, lutando ao mesmo tempo pelo espírito de missão que os acompanhava: a hipnose servia para ajudar as pessoas a encontrar o seu caminho para a plenitude e felicidade interiores, embora nem todos acreditassem com a mesma intensidade neste lema de trabalho. No entanto, era este o mote para que o consultório na Avenida do Sol continuasse de portas abertas. Nesse aspeto, apesar de ser um pouco ingénuo, Marcus Belling era extremamente rigoroso quanto à atitude que esperava dos seus colaboradores e amigos: não tolerava egos inflamados pelo mediatismo e pelo sucesso, ataques de arrogância ou vaidade, e a ignorância acerca da própria prática da hipnose era rapidamente elucidada por ele ou por colegas para combater os preconceitos instalados. Existia, por isso, uma espécie de lema filosófico na sua vida profissional que ligava todas estas pessoas entre si e que tinham assinado um contrato de lealdade de trabalho para com o famoso hipnotizador. Ainda que os níveis de lealdade não fossem todos idênticos, a verdade é que esta existia em toda a equipa que promovia e defendia o trabalho do filho de Elias Belling.

Marcus Belling, por seu lado, era como uma espécie de cacho de uva que todos adoravam ver envelhecer e transformar-se num bom vinho. Nos tempos de estudante nos Estados Unidos, ele recorrera várias vezes à Clínica da Universidade para usar a hipnose como forma de aliviar as ânsias dos alunos durante o seu percurso académico. Estes foram tempos de uma intensa aprendizagem. Embora especializado em hipnose clínica, foi aqui que Belling tomou pela primeira vez contacto com a utilização da hipnose aplicada à regressão a vidas passadas. No início, também ele tinha os seus próprios preconceitos no que se referia à Terapia de Vidas Passadas que, no seu país, ainda era relativamente desconhecida. A partir desta experiência no estrangeiro, Belling começou progressivamente a deixar os hospitais, onde também despendia uma parte considerável do seu tempo, para se dedicar à investigação da hipnoterapia e da regressão. Com este novo interesse, foi a partir daqui que começou a crescer o seu sucesso junto do público.

Após se ter formado em Terapia de Regressão nos Estados Unidos, Marcus Belling veio a casar-se com Patricia Murio, uma fisioterapeuta que também tinha o seu consultório privado no centro da cidade, mas distante da Avenida do Sol. Tinham dois filhos e viviam nos arredores da cidade.

O famoso hipnotizador considerava-se agradecido pela sua vida, que era bem-sucedida, de uma maneira um pouco inesperada, mais calma do que em tempos anteriores, mas ainda assim turbulenta. Nesse aspeto, Maria de Burgos tinha o trabalho diário de afastar pessoas incómodas, algumas vezes sem êxito. Entretanto, Salvaterra vivia obcecado com o sucesso do colega, alguns anos mais novo do que ele e que se iniciara na carreira mais tarde, tirando-lhe assim todo o protagonismo. Para além de ambos possuírem personalidades distintas, existiam também diferenças no método de trabalho que criavam clivagens profundas entre ambos. De facto, muitos pacientes de Marcus Belling afirmavam que ele dispunha de uma maneira mais democrática de trabalhar do que o seu colega Josef Salvaterra: este identificado com uma linha mais tradicional da prática da hipnose em que se recorria à chamada indução hipnótica clássica. Nestes casos, o hipnotizador obrigava o paciente a entrar em estado hipnótico segundo as suas palavras e orientação sem lhe dar a liberdade de escolher como entrar nesse mesmo estado. Para outras pessoas, pacientes de Salvaterra, isto era apenas um detalhe sem grande importância.

Apesar de serem muito diferentes na sua forma de trabalho, Belling e Salvaterra sabiam que era a confiança que estabeleciam com os seus pacientes que trazia a verdadeira cura para a alma. A eficácia dos seus tratamentos tinha algo de “efeito placebo”. O efeito placebo não criava ilusões menos verdadeiras, não sendo este o propósito; na realidade, ajudava as pessoas no processo de construção de um “convencimento interior” de que as técnicas empregues poderiam de facto intervir na alma e curar os seus piores traumas. Estes métodos funcionavam realmente com sucesso, mas os mais céticos tinham dificuldade em aceitar esta ideia, pelo que era importante criar a aparência dessa mesma eficácia. O que efetivamente importava nesse processo é que o efeito pretendido funcionava muitas vezes e, por essa razão, era utilizado pela maioria dos hipnotizadores que integravam o Conselho Nacional de Hipnose. A confiança com os pacientes era assim o elemento fundamental para uma carreira de sucesso na área da hipnose.

Marcus Belling e a sua equipa de trabalho tinham há muito tempo conhecimento dos métodos de trabalho de Josef Salvaterra. Este possuía uma postura de maior autoridade e de arrogância que assustava todos aqueles que já estavam habituados à relação democrática e aberta que mantinham com Belling no seu gabinete. Sem surpresa, os dois hipnotizadores faziam parte de duas escolas diferentes de hipnose que defendiam posturas distintas na relação entre hipnotizador e hipnotizado. O passado dos dois homens explicava também a sua opção pelo recurso a técnicas tão diferentes.

Vale por isso a pena conhecer agora um pouco melhor Josef Salvaterra. Tendo mais alguns anos de prática do que o seu concorrente, teve uma infância difícil, embora sempre acompanhado pelo seu tio rico. Um pouco mais velho do que Belling, de olhos e cabelos castanho escuros, tinha a alcunha de “batata” quando era pequeno devido à forma achatada do seu nariz que muitas vezes fazia lembrar uma verdadeira batata. Salvaterra foi na realidade o primeiro grande hipnotizador conhecido do público. Também nessa altura pouco se sabia acerca da hipnose, apenas que se tratava de um método terapêutico muitas vezes complementar da medicina convencional. Neste aspeto, o uso da palavra correta tinha-se tornado fundamental: há vinte anos, a hipnose era complementar, não alternativa aos métodos existentes, no que respeitava ao tratamento de hábitos de vida nocivos e de diagnóstico das doenças. A diferença na terminologia empregue tinha influência no processo de credibilidade da prática da hipnose.

Ao crescer, Salvaterra percebeu que a escolha da profissão era importante para alimentar todos os egos inflamados que se tinham escondido durante todo aquele tempo. O tio rico sempre tinha considerado uma boa ideia o sobrinho seguir a carreira de hipnotizador. Neste campo, começavam a florescer as primeiras formações de hipnose, pelo que existiam mais oportunidades de o sobrinho ser pioneiro em algo que as pessoas ainda não estavam ainda habituadas a lidar e a ouvir. Também já não era necessário frequentar a Universidade de medicina, cujos longos e extensos cursos contribuíam para uma maior delonga, desnecessária, numa carreira que se pretendia ser lucrativa, desde o primeiro dia. Por essa razão, desde cedo que o tio lhe começou a incutir o interesse pela hipnose, chamando-lhe a atenção que aquela carreira poderia ser o seu futuro sucesso, se tivesse a coragem de explorar terrenos que nunca tinham sido percorridos. Para o ajudar na decisão final, ele apresentou-lhe a jovem Marbella Gorey, de olhos castanhos escuros e quentes, por quem o sobrinho se apaixonou loucamente. Ele sabia que Marbella era ousada, ambiciosa e gananciosa. Com a sua astúcia e alguns encantos próprios, ela conseguiu assim convencer Josef Salvaterra a lançar-se na carreira de hipnotizador, tornando-se ela própria beneficiária desse mesmo sucesso. O tio e Marbella estavam felizes, e bem assim também Salvaterra que apesar de tudo encontrava na sua profissão o alento necessário para esquecer a sua infância difícil. Tudo estava a correr bastante bem neste percurso até Marcus Belling se ter começado a destacar a nível nacional. Ao mesmo tempo, nesta época, já o perfil de Salvaterra como hipnotizador se encontrava definido; a sua arrogância desencorajava-o de continuar a investigar na sua área de trabalho e desta forma começou, progressivamente, a usar um tom cada vez mais autoritário com os seus pacientes. Nem todos possuíam o espírito crítico orientado para duvidar que era “possível fazer diferente”. Esta abertura de mentalidades apenas surgiu alguns anos mais tarde, com Belling.

 

Marbella Gorey não ficou igualmente satisfeita com o mediatismo de Belling. Sem o confessar, este acontecimento levou-a a considerar o seu casamento com Salvaterra como um projeto falhado. Tanto ela como tio rico, jamais poderiam imaginar que iria sobressair no panorama nacional um talento inato para a hipnose, como o de Marcus Belling. Contudo, também ela se tinha apaixonado ao início por Salvaterra e por isso não questionou afastar-se dele, pelo menos durante os primeiros dez anos. No entanto, o seu espírito inquieto mandava nela e não se conformava com aquela situação. Marbella começou assim, ao longo do tempo, a atiçar a disputa entre os dois hipnotizadores e a necessidade de ganhar mais dinheiro e estatuto social orientava-lhe todos os propósitos na vida. De alguma maneira, tentava ter o controlo sob as receitas geradas com as sessões de hipnose realizadas no consultório do marido. Marbella Gorey era particularmente venenosa, para além de ser uma pessoa com quem ninguém se sentia bem. Com os anos, foi ganhando um corpo cada vez mais raquítico como se por dentro estivesse a ser devorada por vinganças pessoais que não conseguia ultrapassar.

Marbella era uma grande amiga de Jasmine, sendo esta a única pessoa capaz de controlar Marbella e de a manipular para os seus próprios fins. As duas eram amigas há muitos anos. Na realidade, Jasmine era uma pessoa única e diferente, talvez por ser orácula, vidente e cartomante o que lhe tinha permitido desenvolver fortes perceções extra-sensoriais que a tornavam uma pessoa a quem se recorria em situações de dificuldade. Assim, quando Anne Pauline entra na vida de Marcus Belling também a sua própria vida irá mudar, tanto no presente como no passado.

Josef Salvaterra não tinha medo da mulher. Conhecia-lhe bem o caráter e sabia impor a sua autoridade. Amava-a profundamente. Por a conhecer tão bem, ele sabia perfeitamente quando é que ela o tentava controlar e manipular, o que raramente acontecia, pois ele não aceitava com facilidade as suas sugestões para dirigir o seu trabalho enquanto hipnotizador, numa dada direção. Isto sucedia particularmente quando ela lhe recomendava pessoas para trabalhar juntamente com ele, que normalmente serviam de espiões para controlar Marcus Belling e a sua equipa. «Tens de assegurar o lucro certo ao final do mês», dizia-lhe ela frequentemente. Marbella, por seu lado, não insistia. No fundo, ela tinha bastante receio de perder a sua “galinha dos ovos de ouro” e, por essa razão, ao longo do tempo, aquela união foi-se tornando uma relação de conveniência.

Ao contrário de Marcus Belling, Josef Salvaterra não contava com uma equipa leal que defendesse e promovesse o seu trabalho enquanto hipnotizador. Pontualmente, ele contava com a participação de pessoas escolhidas pela mulher para melhorar e controlar a parte logística da sua profissão, mas rapidamente as dispensava. Tanto Salvaterra como Marbella, tinham necessidade de dominar todas as circunstâncias daquele negócio; efetivamente, a hipnose era apenas um negócio e os seus pacientes eram seus clientes. Não existia ali um espírito de missão pública que os movia, e as receitas geradas pelas sessões de hipnose eram a principal razão para manter o consultório aberto. Este localizava-se numa zona oposta da cidade ao de Belling, longe da conhecida Avenida do Sol.

Ao mesmo tempo, Marbella tinha ainda um pequeno desejo e ambição escondidos. Desejo esse que nunca confidenciara ao marido. Na cidade existia um clube secreto que era conhecido como o “Clube da Feitoria” bastante restrito e do qual faziam parte as mulheres mais ricas do país. Tinha-se tornado uma honra fazer parte desse mesmo clube e comentava-se, em sussurro, que estas mulheres controlavam um grande número de estruturas ligadas à cultura e à educação, o que lhes devolvia ainda mais poder. Altamente privilegiado, o clube não aceitava qualquer mulher, mas apenas aquelas que demonstravam possuir rendimentos de uma certa categoria. Na realidade, Josef Salvaterra conhecia os intentos da mulher e a sua vontade em pertencer ao tal “Clube da Feitoria” embora esta ideia não lhe agradasse. Ele queria-a junto de si. De facto, ele sentia-se por vezes sufocado com a sua constante presença, mas ficava igualmente perdido quando ela desviava a sua atenção para outros interesses. Jamais Salvaterra pretendia que ela integrasse o tal Clube, com receio de ela própria se desinteressar dele. Por essa razão, várias vezes Marbella expressou a Jasmine que via um pouco Salvaterra como o destruidor dos seus sonhos; esta era uma ideia e um sentimento que ela foi alimentando de forma perigosa e que lhe fez nascer um estranho desejo de vingança em relação ao marido. Marbella e Josef Salvaterra viviam assim um casamento de conveniência, embora o hipnotizador ainda amasse a mulher. Em ambos era possível encontrar a mesma antipatia para com Marcus Belling que lhes fazia novamente despertar o sentimento de orfandade que continuava a inquietá-los.

Para agravar ainda mais esta situação, Marbella atiçava a inveja no marido e Salvaterra sentia-se encurralado neste sistema. Ele amava a mulher, mas por vezes não a compreendia. Ele estava a envelhecer e as antigas disputas com Marcus Belling já o cansavam, razão pela qual rapidamente recolhia ao seu local de trabalho sempre que a mulher vinha ter com ele. Quando Anne Pauline toca à campainha do consultório de Belling já quase não existia entendimento possível entre Salvaterra e Marbella: os dois não se compreendiam e progressivamente começaram a ter diferentes propósitos na vida. A distância entre ambos era apenas um facto visível de algo mais profundo que ocorria dentro do espírito e da alma.

A vida e as experiências pessoais dos dois hipnotizadores moldaram-lhes assim duas formas distintas de praticar hipnose. De forma inevitável, estes acabaram por estabelecer diferentes níveis de confiança com os seus pacientes. Como era conhecido, um era considerado mais democrático, o outro mais autoritário, embora nem todos tivessem a mesma perspetiva acerca do conteúdo real desta “autoridade”. Gradualmente, intensificou-se a luta pela ribalta.