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Buch lesen: «Ao de Leve»

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AO DE LEVE

O estudante que hontem, no Rocio, foi attingido por uma bala na cabeça, já falleceu.

(Dos jornaes).

Como não havia de adoral-o, se era seu filho unico!

Para mais, elle era o retrato vivo do pae, com todas as qualidades e todos os defeitos – se um filho póde ter defeitos para a mãe que o estremece!

Ficára com elle nos braços, viuva pela maior das fatalidades, quando ainda não tinham seccado de todo as flores de laranjeira que lhe tinham posto no cabello no dia do seu casamento, e nas suas faces havia ainda um pouco do rubor intenso com que as haviam tingido os beijos loucos que elle lhe dera, já seu marido, ao voltarem da Egreja.

Annos e annos chorára a sua viuvez, e mesmo quando o filho lhe extendia os bracitos gordos, muito risonho, as suas lagrimas não estancavam. Mas o sau pranto já não era só de dor; a desgraça ainda lhe escaldava a garganta com soluços que lhe vinham do coração, mas já lhe nimbava a alma a promessa d'uma felicidade remota. No filho via o marido – era como se dentro de um tumulo assistisse ao esplendor d'uma aurora.

Se não havia de adoral-o, a pobre mãe!

Quando elle lhe saiu de casa para continuar os estudos, pareceu-lhe que ficava viuva pela segunda vez. As suas cartas mitigariam a sua saudade, e ella havia de lel-as com tamanha devoção, evocal-o com tanto amor, que a leitura seria afinal uma conversa entre ambos, elle a enxugar-lhe os olhos com beijos, e ella a lavar-lhe as faces com lagrimas.

Já então elle era quasi um homem, alto e desempenado, uma pennugem leve prenunciando um bigode negro, que seria talvez farto e provocador como o do pae. Muito estudioso, e, ao mesmo tempo, muito intelligente, contava as distincções pelos exames, nunca se rebaixando a esmolar uma protecção, mantendo sempre perante os mestres uma attitude que, nem por ser respeitosa, deixava de ser altiva. Ainda n'isso elle era como o pae, orgulhoso sem presumpção, delicado sem maneirismos, altivo sem arrogancias.

Como não havia de adoral-o!

Surprehendia-se a fazer projectos de vida em commum, quando elle acabasse os estudos, e fosse, para aqui ou para além, exercer a sua profissão. Já a deixariam livre os negocios da sua casa, que a retinham agora separada d'elle, a contar o tempo pelo seu amor, e a achar os mezes infinitamente mais compridos do que dizem os kalendarios.

Talvez elle um dia casasse; mas nem assim o deixaria, humilde na casa alheia, fazendo-se util, sendo prestimosa, realizando quantos milagres fossem precisos para se tornar indispensavel. Pois se elle era a unica razão da sua vida, como poderia alguem roubar-lh'o sem ao mesmo tempo a matar?

Recebia as suas cartas em dias certos, e nunca elle deixára de lhe escrever com a mais rigorosa pontualidade. Ás vezes eram apenas quatro linhas, meia duzia de palavras que ella humedecia com os olhos, para as enxugar com os labios.

Como não havia de adoral-o, a pobre mãe, se elle era o seu filho unico, para mais o retrato vivo do pae, com todas as suas qualidades e defeitos – defeitos que para ella eram qualidades!

Ora succedeu que n'aquelle dia, estando como de costume á espera do carteiro, viu que elle passava pela sua porta, sem entrar. Era lá possivel não ter carta? Provavelmente confundira-a no maço, e só daria por ella finda a distribuição. Viria então entregar-lh'a.

Passou uma hora, passaram duas horas, passou uma eternidade, e o carteiro não voltou.

Estaria doente? Ter-lhe-ia acontecido alguma desgraça?

Distrahidamente, quasi sem intenção, pega n'um jornal. O coração deu-lhe um salto dentro do peito, como se a um leão dentro de uma jaula lhe enterrassem nas carnes uma choupa em braza.

Houvera tiros, houvera espadeiradas, como n'uma batalha. Do campo tinham retirado muitos feridos, tendo lá ficado alguns mortos.

Foi lendo, lendo tudo, devorando as columnas do jornal, á procura d'um nome, na ancia d'um condemnado á pena ultima, que um indulto póde salvar.

Esse nome lá estava. Ferido com uma bala na cabeça, fôra levado ao hospital, onde os medicos verificaram o obito.

Não chorou, não soluçou, não gemeu, anniquilada por completo.

Quando voltou á consciencia da realidade, ainda tinha nas mãos o jornal.

Serena e tragica, como se debruçada sobre uma sepultura visse lá dentro o proprio coração; tragica e dolorida como se lhe pezasse n'alma todo o soffrimento humano; morta para o amor, abrazada em odio:

– Mataram o meu pobre filho! Maldito seja para sempre, na sua descendencia, o miseravel assassino!

Como não havia de adoral-o, a pobre mãe, se elle era o seu filho unico!

 
Se fores um dia ao mar,
Que a fortuna te não deixe;
Bota a rede e vae-te embora,
– Quanto mais burro mais peixe.
 

Fôra creado de medico, e como a Natureza o dotára com bastante intelligencia e um notavel espirito de observação, aprendeu mil coisas com o doutor, a ponto de se julgar apto a fazer o que elle fazia. Depois chocava-o aquella subalternidade de moço de consultorio, as pessoas que entravam nem reparando n'elle, e algumas que n'elle reparavam tratando-o sem cortesia. Farto d'aquelle viver, reconhecendo-se talhado para mais altos destinos, um dia pediu contas ao patrão, e abalou sem dizer para onde.

Mezes passados, enchia a cidade a fama de um doutor novo, que fazia verdadeiros milagres, havendo quem affiançasse que dera vista… a uns poucos de aleijados, e cegára uma meia duzia de coxos. Por acaso o doutor topou o milagrante collega na rua, e reconheceu n'elle o seu velho creado, muito correcto, muito bem posto, tal qual um intrujão com diploma. Ao outro dia, era um domingo, foi procural-o ao consultorio, curioso de saber como aquillo era feito. No largo, junto ao adro da Egreja, havia uma extraordinaria multidão.

– Quantas pessoas calcula o dr. que estejam além?

– Uns milhares.

– E quantas d'essas lhe parece que serão intelligentes?

– Algumas duzias.

– Pois essas formam a sua clientella; o resto pertence-me.

Vinha isto a proposito… a proposito… Ah! sim; a proposito da tiragem do jornal, que o administrador acha pequena.

A necessidade de equilibrar o orçamento póde obrigar o governo a impôr sacrificios aos funccionarios.

(Dos jornaes).

Era manso como um cordeiro, e leal como um velho amigo.

O general montava raras vezes; mas ia todos os dias visitar o seu Turco, limpar-lhe a mangedoira, pentear-lhe a crina, passar-lhe a mão pelo lombo, n'uma caricia que o animal agradecia, olhando-o com ternura.

Ás vezes, a caminho do tanque, encabritava-se com o impedido, dando saltos, como se quizesse fugir pelos campos fóra, no goso d'uma liberdade que não conhecia, mas que adivinhava.

Lá em baixo, na varzea, as eguas pastavam tranquillamente; e os poldros, virgens de toda a domesticidade, pulavam como cabritos, mettendo a cabeça entre as mãos, e logo desatando n'uma correria doida, bebendo os ventos, o pescoço muito extendido, o focinho alto, as narinas muito abertas, respirando com estrondo. E era então que elle se encabritava com o impedido, firmando-se nas patas trazeiras, dando grandes sacões inuteis, porque a arreata era firme, e a mão que a segurava era forte.

Que bom devia ser a liberdade!

Por certo o tratavam bem; mas aborrecia-lhe aquella vida ociosa do quartel, todos os dias a mesma coisa – comendo e bebendo por toques de clarim, n'um automatismo de machina, com uma regularidade pendular. Mas era manso como um cordeiro, leal como um velho amigo, – uma creança faria d'elle o que quizesse. Ora succedeu que um dia foram dizer ao general que o seu Turco tinha rebentado o impedido com uma parelha de coices. Não acreditou, mas entrando na cavallariça, viu o pobre diabo extendido, soffrendo horrivelmente.

– Tu que fizeste ao cavallo!

– Nada, meu general.

– É mentira. Eu conheço-o muito bem. Que lhe fizeste?

– Saberá V. Ex.ª que elle estava a comer a ração, e vou eu, por brincadeira, mexi-lhe na barriga.

– Pois ahi está. Não se mexe na barriga de quem come.

Era um grande philosopho, o general.

Uma sogra nem de barro á porta.

Andava elle pelo Algarve a tratar de negocios, quando o chamaram a Lisboa, por telegramma, com a maxima urgencia. Não lhe diziam do que se tratava; mas, como era o medico quem lhe telegraphava, ficou n'um susto de morte, calculando que ou a mulher ou o filho se encontrasse gravemente doente. Pouco habituado a ser feliz, imaginou logo o peor.

O primeiro comboio partia d'alli a doze horas e, como ainda pudesse servir-se do telegrapho, correu a pedir informações. Disseram-lhe que era a sogra que adoecera no mesmo dia em que elle deixára Lisboa, e que a doença se aggravava de momento para momento, receando-se um desenlace fatal. N'um grande ah! de allivio e satisfação, como precisava de assignar uma escriptura dahi a tres dias, foi-se deixando ficar, pedindo que o informassem, por via telegraphica e postal, dos progressos da doença.

Receava elle, pouco habituado a ser feliz, que a doença não fosse em progresso, e por isso queria receber noticias amiudadas, se fosse possivel a toda a hora. A doente peorava a olhos vistos, e dizia o medico que a pneumonia degenerava em typho, sendo possivel que houvesse meningite á mistura. Elle tinha uma enorme confiança no doutor, que já lhe assistira á morte de toda a familia, e a quem elle conservára o partido, não para o tratar a elle, á mulher ou ao filho, mas tão sómente para a sogra. Rematados os seus negocios, metteu-se no primeiro comboio, com o coração aos baques, como quem aguarda uma sentença. Descia o medico a escada, quando elle a subia esbodegado, e com bagas de suor perlando-lhe a vasta fronte.

– … Vi-a morta, meu caro amigo. Lancei mão de todos os soccorros, e posso dar-lhe a boa nova de que passou todo o perigo. A crise fez-se hoje mesmo, e agora é só questão de tempo.

Subiu o resto das escadas a cambalear, como um ebrio, e atirando-se para cima do sophá que havia na sala de entrada, n'um abandono de quem se vê irremediavelmente ludibriado:

– E eu que tinha tanta confiança n'esta besta do doutor!..

A policia, ajudada pela guarda municipal, fartou-se de espancar os cidadãos pacificos, realizando muitas prisões.

(Dos jornaes).

A estrada, larga e poeirenta, passava junto á porta sempre aberta do jardim, marginada de choupos e eucalyptos.

Toda a gente das aldeias proximas por alli fazia caminho, no giro da vida ordinaria, homens, mulheres e creanças, alguns descalços, e outros rotos, a maior parte sem pau nem pedra, gente pacifica como bois de trabalho, muito pacifica e muito humilde.

Aos domingos, nos dias santos, quando havia festa n'alguma egreja do sitio, por alli passavam ranchos de moças garridas, em cabello, cantando e rindo, cada qual pelo braço do seu namorado, parando aqui e além, aos abraços e beijos, como numa kermesse flamenga.

Pois era n'esses dias que o Pandorga, locatario do jardim, quasi escondido por detraz de uma parede de buxo, atirava os cães para a estrada, açulando-os ás canelas de quem passava. Csi, csi, e arregalava o olho, guardado no seu esconderijo, rindo muito, sem fazer barulho, quando os cães rasgavam as saias das raparigas ou as calças dos homens, e muito mais quando lhe appareciam de rojo, após a lucta, levando ainda nos dentes boccados de carne em sangue.

Ora succedeu que um dia havia festa alli perto; como o Pandorga açulasse os cães —csi, csi– contra um bando alegre de camponezes, rapazes e raparigas que iam passando a cantar, pacificos como bois de trabalho, ouviu-se um estalo sêcco, como um rebentar de escorva, e o baque d'um corpo que cae, lá adeante, por detraz da parede de buxo. Soube-se depois que tinha morrido o Pandorga, e os cães nunca mais assaltaram as gentes que passavam pela estrada, larga e poeirenta, e de quando em quando paravam, abraçando-se e beijando-se, como n'uma kermesse de Rubens.

Hontem, na praça de touros, houve uma ligeira manifestação de desagrado á Familia Real. O rei não assistia ao espectaculo.

(Dos jornaes).

Falava-se muito das suas valentias, embora ninguem citasse d'elle uma façanha authentica, com testemunhas de vista. Era volumoso, e d'ahi concluiam que era forte; era gabarola; muita gente acreditava que elle tivesse nos musculos tanta força como na lingua. Contava elle que d'uma vez matára um boi com um sôco, e n'um dia em que passava rente a um acampamento de ciganos, armados de cacetes e espingardas, como percebesse que lhe faziam troça, desatou aos pontapés a toda aquella malta, pregando com o mais atrevido no alto d'uma azinheira que estava longe d'alli uns poucos de metros.

Os que melhor o conheciam, mofavam das suas farroncas; mas não faltava quem acreditasse nas proezas de Ferrabraz, intrepido até ao sacrificio da vida, sem lhe bulir um cabello. Ora succedeu que um dia, vindo com a familia a caminho do arraial, n'uma aldeia da visinhança, alguem o preveniu de que se preparava uma emboscada, lá adeante, n'um cotovêlo da estrada antes de chegar á ribeira. E vae elle então, muito volumoso, pallido como se todo o sangue lhe refluisse ao coração, os cabellos em pé, como se visse deante de si a guela escancarada d'um leão com fome, apalpa-se como quem procura alguma coisa, e batendo no hombro da companheira:

– Vão lá andando, vão lá andando, que eu não me demoro; esqueceram-me os charutos.

Não voltou, está bem de ver, e no outro dia, quando lhe contaram o succedido, ameaçou o céu e a terra, espumando como um javali ferido.

– Se lá estivesse, rachava-os.

E pregou tamanho murro no cinzeiro de barro, que o fez em boccadinhos.

Hontem o sr. Marquez de Soveral teve com El-Rei uma conferencia de duas horas.

(Dos jornaes).

– Franqueza, franquezinha, ó coiso, essa historia da intervenção…

– Era pela certa. Hoje a politica é só de interesses, quem governa é a finança.

– Bem sei, governa a finança; mas olha que isso de intervir sem mais nem menos em negocios por assim dizer caseiros…

– Peço perdão; mas não se trata d'um negocio caseiro, nem mesmo d'um negocio exclusivamente nacional.

– Hom'essa! Queres então dizer…

– Quero dizer que em torno d'este negocio se formou uma atmosphera de interesses internacionaes…

– Olha que não tens publico, e essas lerias, cá para mim…

– Cumpro o dever que me impõe a minha posição, e testemunho assim, dizendo a verdade inteira, sem restricções, a minha sympathia pessoal…

– Sim, senhor, és um artista. Vocês, os diplomatas, são como os homens de theatro – mesmo quando estão fóra do palco, representam.

– Julgava-me com direito a maior consideração da parte…

– Tambem eu julgava que me tivesses na conta de menos tolo. Não me conheces d'hoje nem d'hontem, para saberes que ninguem me faz o ninho atraz da orelha.

– O que? Pois…

– Qual historia!.. Acreditei todas as lerias que me impingiste, com uma seriedade á altura das tuas prosapias…

– Não o fiz por menos respeito; o uso das formulas…

– É como o uso do cachimbo – faz a bocca torta. Sempre me sahiste um gajo!..

– Espero que não fique zangado…

– Peior… Essa agora não é de diplomata, é d'alarve.

– Sempre amavel!..

– Sempre justo. Mas falando agora de coisas serias. Tu achas que eu devo…

– Ora essa! Está claro que deve. Da fama ninguem o livra, e as honras sem proveito…

– E quanto achas tu…

– Em negocio de tanta monta, nunca se pede de mais.

– Pois sim, tudo tem limites. Ahi uns duzentos contitos, mais vintem, menos vintem… Que te parece?

– Parece-me que, pedindo essa bagatela, dá provas d'uma grande generosidade.

– Bem se vê que não és tu quem tem de esportular as massas. Pois está dito; faço a coisa pelos duzentos.

– É como se lhes désse a elles trezentos e vinte, o que não é barro.

– Quero ser generoso…

– Do pão do nosso compadre…

– Pois sim, canta-lhe d'essas; mas se as coisas se complicam e me põem a viola…

– Qual põem! Chego ás vezes a imaginar que tem medo.

– Tu não me digas isso outra vez, olha que te ponho os queixos á banda. Eu nunca tive medo. Já d'uma vez, n'uma feira, se ergueu tudo contra mim, sem saber quem eu era, e não arredei pé, de cacete em punho, sem ninguem pelo meu lado.

– Bem sei, bem sei; mas se amanhã houvesse qualquer coisa, em menos de nada estavam alli os cavalinhos de pau, e tudo entraria na ordem.

– E se me puzessem a andar antes d'elles cá chegarem?

– Isso então era o diabo. Uma intervenção tardia, depois do facto consumado… Mas é absurdo o suppôr…

– Será absurdo, será; mas, pelo sim pelo não, vou dobrar a parada. Os gajos repontarão?

– Que tem lá que repontem?..

– Está claro. Isto é como dizia o de Braga – ou comem todos, ou ha-de haver moralidade.

S. M. a Rainha, acompanhada da sua dama de serviço, andou hontem distribuindo esmolas no bairro de Alfama, sem se dar a conhecer.

(Dos jornaes).

Não queria que a conhecessem.

Abalava de casa, vestida como toda a gente, sem nada que pudesse chamar as attenções de quem quer que fosse. Era uma creatura como qualquer outra, e passava, como qualquer outra, no meio da geral indifferença. Os que a conheciam cumprimentavam-na – bons dias, minha senhora! – e os que a não conheciam nem sequer davam por ella. O passo meudinho, muito apressado, como quem marcha para um certo fito, sem se importar com o resto. Entrava aqui, entrava além, fazia o bem que podia, e nem esperava que lhe agradecessem os miseraveis a quem extendia a mão, deixando cahir uma esmola. Como não se sabia quem fosse, chamavam-lhe a Caridade. Envelheceu muito, como toda a gente que teima em viver e morreu um dia, encarquilhada e secca, como a maior parte das velhas. Era a Caridade Evangelica.

Tempos depois, nos mesmos bairros pobres entrou de apparecer uma creatura exotica, dando nas vistas de toda a gente, obrigando a parar quem passava, para a fixar com attenção. O passo largo, muito lento, como quem não tem pressa, e que quer por força dar nas vistas. Entrava aqui, entrava além, como quem passeia um reclame, e gostava que lhe enchessem as mãos de lagrimas agradecidas os miseraveis a quem dava esmola. Como não se sabia quem fosse, n'um dia que ella passava, o passo largo, muito lento, quasi rythmico, dois miseraveis que a viam passar, como quem passeia um reclame:

– É a Dona Caridade?

– Não; é a Exploração da Miseria.

O Principe Real faz immensos progressos nos seus estudos, causando a admiração dos seus professores.

(Dos jornaes).

Era um prodigio, o garoto.

Contava a parteira que elle olhára para traz, quando nasceu piscando um pouco os olhitos ramellosos, como quem pretende ver melhor. Aos tres mezes, já tocava com os deditos côr de rosa nos bicos, pouco salientes, dos peitos da ama, pondo-os em erecção, para mammar melhor. Viam todos que era um pequeno muito talentoso, e um boccadinho brejeirote. Aos noves mezes dizia – bolas! – e foi essa a sua primeira palavra. Comia de tudo, antes de fazer o anno, e larachava com os creados finos, como se fosse uma pessoa grande. Era um prodigio, o demonio do garoto, d'uma precocidade verdadeiramente excepcional. Um familiar da casa perguntava d'uma vez ao medico, a proposito do fedelho —Naturalmente, um genio, doutor? E o doutor, encolhendo os hombros em ar de duvida —Naturalmente um idiota!

Aos cinco annos já sabia tudo – quantas pernas tem um cão, quantas orelhas tem um burro, quantos rabos tem um gato. Era prodigioso, e cada dia que passava como que accrescia de muitos metros aquelle talento incommensuravel. Aos nove annos era um geometra como Euclides, era um historiador como Tacito, era um philosopho como Platão, era um pintor como Raphael, era um poeta como Camões, um romancista como Balzac, um cabo de guerra como Napoleão, um estadista como o sr. Lapin. A tal ponto lhe cresceu o genio, que já não havia espaço para o conter, a dentro das fronteiras nacionaes.

Foi então que se reconheceu a necessidade de o mandar para longe, onde fossem mais largos os horizontes, que os genios, como os gazes quando os comprimem além d'um certo grau, são eminentemente explosivos.

E porque era ainda muito novinho, sem experiencia do mundo, apezar do seu immenso talento, foi a familia com elle, e por lá ficaram todos – para bem de todos nós.

«É melhor tratar d'outro oficio. O jornal ha de morrer á falta de leitores, porque você terá geito para tudo, menos para jornalista.»

(Carta anonyma).

Oh! la pauvre bête!..

Era na verdade, um animal perfeito. De côr acastanhada, a anca alta, largo dos peitos, uma estrella branca na testa, talvez demasiadamente sellado, a perna delgada e nervosa, a cauda farta e comprida, era um burro que fazia parar quem passava, admirando-o, e succedeu a mais de uma beata, ferida de tamanha belleza e correcção, estacar no caminho das suas devoções, e não poder reprimir nas arcas santas do peito esta exclamação blasphema: —Benza-o Deus, como é bonito!..

Procopio então passava horas no enlevo do seu burro, afagando-lhe o focinho e alisando-lhe o pello, não consentindo que sobre elle poisasse uma mosca, ou lhe manchasse a pelle acastanhada um grãosinho de poeira. Era uma especie de burrolatria, um culto religioso que lhe enchia a alma, dando-lhe todas as satisfações espirituaes que resultam para um crente da adoração do seu fetiche. E porque se lhe afigurasse que o burro não era, como os outros burros, uma simples cavalgadura, desatou a alimental-o com o melhor da sua mesa, dando todas as coisas boas e raras que encontrava na sua despensa ou se confeccionavam na sua cozinha. Mas nem o burro lhe pegava nos acepipes, nem ao menos se mostrava agradecido aos seus disvelos e blandicias. Procopio lamentava-se da sua má sorte, chorava a sua desdita, sempre amigo do seu burro, sempre idolatra do seu idolo, sempre adorando o seu fetiche. E como quer que um dia, desabafando n'um peito amigo, se queixasse da ingratidão dos burros, vae o outro, grande philosopho, com larga experiencia da vida, aconselha-o assim:

– A culpa é tua, Procopio, e de mais ninguem. O burro não foi feito para comer á tua mesa, como tu não foste feito para comer á mangedoura. Queres vel-o gordo, alegre, contente, a lamber-te as mãos reconhecido?

E como Procopio estendesse o pescoço, a beber-lhe as palavras.