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O grupo de ciganas passou o portão que dava acesso a Birkenau e, sob o olhar de dez soldados, foram identificadas pelo kapo Abramowicz, que ao apontar os nomes na folha de papel que portava prometia-lhes, com um sorriso donairoso de cavalheiro:

— Meninas e senhoras, aqui vão ter um tratamento privilegiado. Já tenho café a aprontar e também uma refeição de pão e queijo à fartança. Vou oferecer-vos vestidos lindos e artigos de beleza para se porem bonitas e desejáveis para os nossos oficiais.

As mulheres a quem estes arrebiques eram dirigidos continuaram de catadura impassível e, num mutismo absoluto, estavam desconfiadas de tanta generosidade e fartura, tão avessas à fama maldita dos boches e dos judeus.

Os soldados que tinham assistido à peroração do kapo riram-se e abordaram o tagarela:

— Abramowicz, espero ter lugar na tua festa!

— Estejam descansados, há sempre uma goela para vocês!

O montão de vestidos estava a ser revolvido pelas mulheres. O sentido feminino não resistia ao chamariz tão atrativo e aquelas bolsas com artigos de maquilhagem como batons, rímel, lápis e cremes, excitava a sua vanidade de fêmeas.

Quando convidadas a banquetearem-se naquela mesa farta de pão, salsichas e queijo, as mulheres, que havia tanto tempo era sujeitas a rações de míngua, começaram a comer como desalmadas e serviam-se daqueles jarros cheios com aquele estranho suco adocicado que as entontecia de embriaguez e desejo. Começaram a exteriorizar a alegria sem pejo, dançando umas com as outras ao som daquela música suave e sensual que galvanizava o seu espírito jovem de mulheres sujeitas à garridice do momento.

Logo que os homens entraram carregando flores e garrafas de licor, os pares começaram a rodopiar no amplo espaço do barracão que tinha sido fechado por dentro. Sem qualquer resquício de vergonha, aquelas ciganas avassaladas pela bebida deixaram-se seduzir pelo instinto sensual já excitado com esse propósito, através da droga misturada ao estranho sumo que acompanhou a refeição. Abramowicz, que já tinha programado o seu afã pela bela Shira de 16 anos, puxou-a para um dos cubículos reservados do barracão e fechou-se com ela ali dentro, alheio ao que se passava do outro lado do tabique.

— Porque me trazes para aqui? Tu sabes que sou prometida desde os oito anos e na nossa tradição tenho que manter-me virgem para o meu Gilad!

O judeu esboçou um gesto de contrariedade e olhou nos olhos a bela ciganita. Aquele olhar negro e puro de malícia, onde o fingimento era arredio, encantou-o de tal sorte, que lhe atiçou o desejo e o rosto lindo de deusa sensual atraiu-o mais ainda para a luxúria que estava no seu pensamento e que ele desejava arrancar daquele corpo de donzela, como um troféu ao seu orgulho de predador devasso. Contemplou o corpo pequeno, mas de acentuados contornos feminis e o desejo, tal como um vulcão, explodiu dentro dele. De um puxão, arrancou os botões e o tecido azul, ao ser rasgado, deixou desnudas aquelas colinas implantadas no peito da cigana: eram lindos e sedutores, aqueles seios de mamilos castanhos e espetados, como pontas de lança. Aquela visão enlevou o desejo venéreo que dominava o seu espírito e, quando ergueu a mão para acariciar o objeto do seu fascínio, foi a calma firme da inocência que conteve o atrevimento nascido da impunidade.

— Tu podes ter-me, tens-me na tua posse e tens força para possuir-me, mas jamais terás a minha alma! És um homem lindo, embora de uma raça detestada pela nossa. Ao possuir-me, me roubarás a honra, o único valor que possuo, mas o meu nome secreto te perseguirá para sempre, porque eu perderei a vontade de viver e me matarei pelo compromisso assumido pelo meu pai, pois se viver serei amaldiçoada pela família e esse esconjuro me fará o destino maldito.

— Abramowicz fitou-a com respeito e aquele sentir novo pela primeira vez apoquentou a sua consciência e o levou a sentir saudade pela sua irmã, cujo paradeiro ignorava, ela também uma donzela linda, de uma beleza nívea e imaculada na sua virgindade. A imagem dela, como se de uma visão ilusória se tratasse, apareceu no rosto impassível da gitana e aquela diáfana figura pairou por fugaz instante ali mesmo, entre ele e ela.

— Explica-me, Shira, o que é isso do teu secreto nome?

— Eu explico-te: quando uma criança cigana é batizada, é-lhe dado um nome para escrever nos registos da terra onde vai habitar, também o nome verdadeiro pelo qual será chamada dentro da nossa comunidade e ainda um terceiro nome, que é murmurado ao ouvido da mãe. A partir daí, é ela quem depois do primeiro mês de vida sussurrará todos os dias esse nome secreto ao seu filho e fará isto até os doze anos de idade. Depois, nunca mais será pronunciado. Este terceiro nome servirá como talismã e defesa, pois caso tenha morte violenta por agressão ou até por suicídio, o nome servirá como vingança contra o culpado ou culpados.

— Então, qual o verdadeiro nome por que devo chamar-te? Shira riu-se e, mirando o seu rosto, murmurou:

— Aqui chamo-me o que escreveste no papel, mas sou Kalila para os meus.

— O teu prometido ainda é vivo?

— Não sei, mas embarcou no mesmo comboio.

— Queres que eu o procure?

— Sim, te ficarei eternamente grata!

— Farei isso por ti e te protegerei!

— Obrigada, meu amigo. Vejo que afinal não és sionista!

— Não saias daqui enquanto eu não te vier buscar.

O barracão tinha deixado de ser pista de dança, a música continuava a girar no gramophone, mas sobre as enxergas havia um pandemónio de corpos semidesnudos e suados que rendiam culto a Eros.

Abramowicz estranhou não ver ali o seu amigo Berger Stein e resolveu procurá-lo. Não demorou muito, uma silhueta à contraluz de um holofote denunciou o companheiro.

— Olá, Stein! Porque estás aqui?

— Queres mesmo saber?

— Sim. Achas que devo?

— Matei aquela edomita estrangeira, como fazia nas experiências do Anjo da Morte!

— Mas que raio te deu? Já pensaste como vou desenrascar-me com a falta dela?

— Ora, a puta era uma coisa impura, negou-se a fazer sexo comigo, porque era virgem e estava prometida. Assim a expedi diretamente para o Inferno, como manda a Torá!

— Maldito animal! Tu não podes pensar assim, isto vai dar para o torto, aquele Wolfgang é um boche maldito que vai querer contar as mulheres que entraram. Eu dei-lhe a lista com os nomes delas.

Voltou para dentro do barracão, bateu as palmas e fez-se ouvir:

— Meus senhores, o baile acabou, agora é hora de recolher e é melhor assim, antes que venha por aí o senhor tenente!

Não houve reclamações e um dos sargentos, que foi o primeiro a sair, murmurou ao ouvido do judeu:

— Depois mando-te tabaco e uma garrafa!

No dia seguinte, logo após o desjejum, reuniu todas as mulheres e falou-lhes:

— Preciso de escolher dez de vocês para trabalhar no Comando. As outras serão entregues à Debra Luski, que é a dona da casa de diversão do Campo. Ali terão comida, algum dinheiro e tratamento privilegiado. Neste ínterim, enquanto as mulheres estavam agrupadas, chegou o tenente Wolfgang, que se dirigiu diretamente ao judeu e inquiriu:

— Já escolheste as mulheres para trabalhar na administração do Campo?

A um gesto de Abramowicz, o grupo das dez filhas de Eva saiu da formação e o oficial deu ordem a dois soldados para acompanhá-las ao seu destino. O oficial começou a contar as restantes e disse.

— Faltam duas. Onde estão, Kapo?

— Uma está ali dentro, estava maldisposta e deixei-a ali a recuperar. A outra…

Não foi necessário responder. Berger adiantou-se e confessou:

— Senhor, a outra sofreu um acidente, está ali no bosque de abetos, eu matei-a!

O tenente não fez qualquer comentário, olhou o assassino severamente e fez sinal a dois soldados:

— Levem-no para a prisão, lá será interrogado, a justiça alemã funciona! Quanto à outra, vai buscá-la e junta-a a estas, para cumprir o mandado!

Foi junto a Debra Luski, a governanta que estava à frente daquele departamento de prazer, e conseguiu a sua proteção para Shira (Kalila).

Debra Luski era uma judia estudante de história antiga quando foi enviada para Auschwitz. Como era bonita e culta, depressa conquistou a graça de um major engenheiro químico e trabalhou como sua assistente. Quando o major foi transferido, conseguiu-lhe um lugar num departamento de gestão e depois, logo após a formação do prostíbulo de Birkenau, ela foi nomeada secretária da alemã Olga Müller, que tinha sido nomeada pela administração.

Abramowicz conseguiu a promessa de Debra para que a bela Shira nunca fosse prostituída. Ela faria, isso sim, outros serviços e bem disfarçada para camuflar a sua beleza natural.

Foi logo após a comemoração das festas de Natal e Ano Novo que Levy Cross, um judeu que trabalhava como intérprete na administração de Birkenau, lhe disse à boca pequena:

— Amigo Abramowicz, a guerra está por um fio. Em breve, os russos vão tomar isto. Não gostava de estar na pele dos boches. — e quando lhe perguntou por Berger, este disse-lhe, com intonação compungida:

— Humm, esse está em maus lençóis. Os alemães são muito rigorosos com a justiça, mormente aqui, em que os juízes são militares. Parece que o conselho de sionistas lhe arranjou um advogado. Oxalá se safe!

Quem ficou sumamente feliz foi a ciganita Shira, que trabalhava como servente de limpeza no prostíbulo, quando o kapo lhe comunicou que o seu Gilad estava de boa saúde a trabalhar em Auschwitz III e, numa manifestação de amizade, beijou-o no rosto. Foi nesse encontro que Shira, depois de informada sobre o destino da guerra, lhe propôs:

 

— Amigo, nós, os ciganos, somos veteranos na passagem de fronteiras. Primeiro atravessamos e depois apresentamo-nos! Se vieres a precisar, nós te ajudaremos, porque tu também me ajudaste, assim como esta amiga que é a minha chefe.

— Obrigado, querida. Oxalá tudo aconteça pelo melhor. Eu desejo terminar o meu curso de medicina e vou ter que chegar à Suíça.

Despediram-se com outro beijo e Levy Cross, que tinha assistido àquela manifestação de amizade, inquiriu-o:

— Como conseguiste a amizade da cigana?

— Ora, amigo, ajudei-a a manter a virgindade!

— O quê? Tu, que tens fama de devasso?

— Sim, amigo. O nosso conceito sobre os goyim tem de mudar.

Levy abanou a cabeça em concordância e expressou:

Tens razão. Nós temos que aprender o que é a igualdade e a fraternidade!

Foi em fevereiro de 1945 que a assistente social da Cruz Vermelha, de visita ao campo de Birkenau, o informou:

— Isto está mal para os alemães e vocês vão começar a apertar o cinto, porque os comboios de abastecimento a estes campos começaram a ser destruídos pela aviação aliada e os russos estão prestes a entrar na Polónia.

— Senhora Golda, pode fazer-me mais um favor?

— Sim, se é acerca da sua conta, tenho aqui um extrato e você já sabe o seu número secreto.

— Sim, só queria que a senhora me fizesse mais um depósito com este dinheiro.

A voluntária olhou para a quantia com admiração e confirmou:

— Esteja descansado. Este dinheiro será enviado ainda hoje com o nosso correio para Zurich.

O kapo judeu tinha um método seguro de conseguir dividendos: os alemães jamais suspeitaram que muitos dos mortos que enviavam para serem incinerados em Birkenau guardavam os seus tesouros no esfíncter do ânus e ele, que tinha o encargo de fazer a coleta dos dentes de ouro, ou outros valores dos cadáveres, porque era finalista de medicina e porque tinha sido instruído por um prisioneiro romeno de quem foi amigo, começou a fazer a procura no ânus dos mortos e tinha assim amealhado um bom pecúlio de endereços, pedras preciosas e dinheiro. Ainda não havia muito tempo, num corpo vítima do tifo, tinha encontrado no seu canal esfincteral seis notas de 500 francos suíços metidos num tubo plástico. Outro o tinha surpreendido com cinco pedras de rubi e um endereço para a restituição: Henis Kramer — Friedrich Strass — Duisburg. Tinha colhido também diamantes e até duas esmeraldas. Só o dinheiro é que entregava às assistentes voluntárias da Cruz Vermelha para abrir contas no Banco Popular, onde tinha já uma avultada quantia.

Foi na última semana de janeiro, quando grassava a penúria de alimentos em todos os campos de Auschwitz, que o tenente Wolfgang lhe confiara:

— Kapo Abramowicz, você é judeu e finalista de medicina. Se um dia adquirisse a liberdade, para onde iria?

— Ai senhor, já perdi a esperança, mas com os russos a norte, não sei mesmo se iria convosco!

— Pois não perca essa noção de future. Muito em breve iremos propor aos prisioneiros essa opção!

Ali estavam eles. Tinham seguido o conselho do oficial alemão, só que na barafunda da debandada, porque os russos estavam a montar o cerco a Varsóvia, Gilad, o cigano noivo de Kalila, que na liberdade trocara o nome de Shira, lhes pôs a hipótese de seguir para sul, em direção à Áustria, que, embora ocupada pelos nazis, lhes dava melhor acesso à Suíça.

Quando começaram a subida daquele monte, que já fazia parte dos Alpes austríacos, Levy Cross murmurou no ouvido de Debra Luski:

— Esta gente parece conhecer todos os carreiros do mundo!

— Meu caro, nos meus estudos de história, é obrigatório reconhecer neles os judeus errantes!

Já o dia definhava, era o quarto depois da fuga, Gilad falou:

— Abramowicz, tens dinheiro?

— Sim, amigo, precisas?

— Então, vem comigo. Vamos procurar comida nestes lugarejos isolados.

— Mas não é perigoso?

— Sim, é, podemos ser denunciados! É por isso que não vamos todos. O tempo é a nosso favor. É a altura de conseguir comida. Kalila já sabe como é. Até podemos regressar só amanhã. Como vamos longe, podem acender uma fogueira para aquecer. Nós temos as anoraques que surripiamos aos boches. Não esqueçam que os ramos de abeto são bons cobertores e a lenha não falta. Isto é deserto, mas tenham cautela!

— Andaram cerca de uma hora e quando atravessaram um riacho, já no lusco-fusco, avistaram luz numa casa de madeira logo acima do carreiro pedregoso que seguiam. Um cão ladrou, um homem já de idade saiu a investigar e foi nesse instante que o cigano, imitando o gutural sotaque da língua romanche, se fez ouvir.

— Desculpe-me, senhor. Somos viajantes a caminho da Suíça e precisamos de alimentos. Temos dinheiro para pagar.

O austríaco olhou para eles, sem compreender, e foi Abramowicz quem, em perfeito alemão e exibindo notas de banco suíças, explicou o que necessitava. Os olhos do homem piscaram de cobiça e expressou:

— Os senhores sabem que estamos em tempo de guerra e temos muita dificuldade em dispor de comida, mas neste momento posso dispor de algum queijo e pão. Claro que é caro, mas como a caminhada até à Suíça requer alguns dias, vocês não têm muitas oportunidades de se abastecerem e tenham cautela, porque os boches fazem muitas patrulhas na fronteira.

— Ofereceu-lhes de jantar e a mulher dele, uma senhora já perto dos 60, desabafou as suas mágoas por ter dois filhos deslocados ao serviço dos alemães. Conseguiram três queijos e seis pães caseiros por 220 francos e a senhora ainda lhes ofereceu uma sacola com avelãs. Cedeu-lhes dois cobertores e puderam pernoitar num anexo junto da cavalariça.

Já era quase meio-dia quando avistaram o acampamento improvisado e, depois de recolherem água de um ribeiro que tinham atravessado a pé descalço, todos se sentaram para comer pão e queijo. Com o velho mapa na mão, Levy Cross olhou o sol e apontou:

— É nesta direção que temos de seguir.

Num reflexo de espiritualidade espontânea, todos baixaram a cabeça e recitaram a oração shema com grande concentração:

— «Escuta, ó Israel, o Eterno é nosso Deus! O Eterno é Único. Bendito sejam o nome e a glória do seu Reino por todo o sempre…»

O casal de ciganos respeitou o momento e, quando terminaram, Gilad pronunciou:

— Que o Deus de Israel nos proteja, porque vamos mesmo precisar da sua ajuda para entrar na Suíça. Vou fazer uma aliança entre o vosso Deus e o meu engenho para alcançar a meta que desejamos.

Abramowicz deu-lhe uma palmada nas costas e animou-o:

— Tenho a certeza que conseguiremos, amigo!

Estava um dia bem luminoso quando ao longe avistaram aquela torre que guardava a fronteira e o cigano, logo que o crepúsculo deu sinal, acalmou-os.

— Eu vou fazer uma batida na fronteira e estudar o melhor local para a passagem. Não saiam daqui, porque quero entrar na Suíça ainda esta noite. Despediu-se de todos e Shira, abraçando-o, sussurrou no ouvido:

— Tem cautela, meu amor!

Já o breu da noite tinha coberto com o seu luto a paisagem rústica que os cercava, ouviram o silvo do assobio conhecido e, logo após, o murmúrio:

— Eu vou à frente, logo a seguir o Levy, depois as mulheres e tu Abramowicz, irás atrás de todos e não permitas nem um cochicho. Caminhar sempre com precaução e alerta aos meus assobios. Encontrei um sítio que me parece propício para a passagem. Cautela com os pés e o restolhar de folhas e ramos secos. O braço do cigano se ergueu e todos pararam, esperaram alguns minutos e novamente o assobio para recomeçar. Foi Abramowicz quem ajudou as mulheres a ultrapassar a barreira de arame farpado que se interpunha no seu caminho, já Levy e Gilad se encontravam do outro lado. Seguiram em silêncio, sempre na mesma ordem estabelecida, na direção indicada pelo cigano, até divisarem na linha do horizonte o alvorecer da aurora e lá em baixo uma povoação que Levy, ao pesquisar no mapa, disse ser Sevelen. Os quatro se sentaram e Shira aventou:

— Precisamos de roupas decentes para não levantar suspeitas, portanto sugiro que o façamos por etapas: agora vou eu mais o Abramowicz e procuramos uma loja de roupas. Daqui a mais ou menos uma hora irás tu, Gilad, mais a Debra e fazem o mesmo.

— Na esplanada da entrada da estação ferroviária, os quatro tomaram o almoço em amena cavaqueira, como se fossem um grupo de turistas esperando o comboio que os levaria a Walenstadt, junto ao lago do mesmo nome. Dali seguiriam para Zurich e o judeu, para convencer o funcionário da bilheteira que era um turista endinheirado, puxou por um grosso maço de francos suíços. Depois de quase quatro horas de comboio, onde fizeram uma refeição no vagão-restaurante para impressionar alguma autoridade que os vigiasse, chegaram à importante estação da cidade dos bancos. Para testar o número da sua conta bancária, Abramowicz entrou no banco, identificou-se e fez mais um depósito de 2000 francos, ao mesmo tempo que comprava um livro com 20 cheques de viagem de 50 francos cada. Estavam em abril de1945 e pela primeira vez em três anos se sentiam livres. Respiraram a plenos pulmões a paz de uma democracia pluralista, num país que tinha sabido manter-se neutral no conflito que tinha arrasado toda a Europa.

Para se sentir plenamente realizado, só lhe faltava cumprir o compromisso assumido com o tenente Kaufman Wolfgang e comunicar com sua esposa, que morava em Mulheim, uma pequena cidade no sul da Alemanha. Estudou o mapa com Gilad e este comentou:

— A única dificuldade está na tua apresentação à senhora, porque nestes tempos de guerra a vizinhança se torna uma arma de informação para a polícia, mas para sorte tua tens a via fluvial pelo Reno e isso, se bem explorado, te facilitará a fuga com a senhora e o filho.

— Como assim, Gilad?

— Ora, tu tens um visto passado pelo tenente. Assim, em vez de bateres na porta da senhora Rena Wolfgang, deixas um bilhete por debaixo da porta, com as indicações para um local propício de encontro.

Capítulo 2

Nos campos de Auschwitz, no início de 1945, era mais premente o desmantelamento do equipamento sofisticado das fábricas que ali laboravam ou até a destruição de documentos comprometedores, do que a aplicação da justiça comum alemã. Isto provocava o desleixo nos tribunais que estavam relacionados com este tipo de delitos. O maior problema do momento era a falta de víveres. Desde que os Aliados começaram a atacar os comboios que forneciam a alimentação aos campos de trabalho, a produção baixara muito e o esforço de guerra da máquina alemã quase estagnara. A má nutrição, aliada às péssimas condições de acomodação dos prisioneiros e trabalhadores — porque existiam e eram bem pagos — tornava-os vítimas fáceis das doenças infeto-contagiosas. Além desta grande dificuldade, alastrava também o nervosismo patológico fomentado pelo medo que afetava os próprios soldados: a presença do exército russo junto à fronteira norte da Polónia provocava esse temor e desmoralizava todo o sistema defensivo nazi. Foi fruto dessa desorientação e da oferta de alguns valores do pecúlio reunido em comum com o seu amigo Abner Abramowicz, que o sargento das SS se deixou corromper e lhe permitiu a fuga em segurança, durante uma leva de prisioneiros para trabalhar na floresta. A visão e o oportunismo jornalístico nele inculcados durante os estudos dessa profissão levaram Berger Stein a conseguir um visto para a Suécia, salvos condutos esses que estavam a ser facultados em Budapeste por Raoul Walenberg, um diplomata acreditado daquele país. Aquela nação que soube manter-se neutra, durante a guerra que tinha devastado a Europa, recebeu cerca de 70.000 judeus durante o conflito.

Em Estocolmo, por intermédio de outros estudantes judeus, soube da existência de uma instituição sionista que arregimentava ex-prisioneiros e refugiados e lhes prometia emigração segura para a Palestina. Ficou surpreendido, para não dizer chocado, quando durante a entrevista com os responsáveis sionistas, em vez de o interrogarem acerca da sua vivência no Campo de Birkenau, o confrontaram com uma realidade desde há muito programada e o aconselharam a subscrever uma declaração em que ele, na qualidade de kapo, tinha ajudado a incinerar os cadáveres das vítimas das câmaras de gás. Quando pretendeu dar uma explicação cabal acerca do que de fato acontecia, argumentou:

— Meus senhores, eu nunca vi em Birkenau uma câmara de gás!

— Não importa isso, só precisamos da sua declaração assinada e do seu número de prisioneiro. Você, como estudante de jornalismo, sabe que de muitas mentiras se constrói uma grande verdade!

 

Só mais tarde veio a constatar o porquê daquele afã dos seus compatriotas sionistas. Foi um rabino que, apologista da criação de um estado de Israel na Palestina, lhe deu a conhecer a profecia que estava inserida na Torá e o seu significado místico: este holocausto de judeus nos campos de trabalhos forçados era de feição à criação realista do mito judaico talmúdico que prometia. — Tu retornarás à Terra que te prometi, mas com seis milhões a menos. Ora, se a II Guerra Mundial trazia as condições certas para a criação da Pátria de Israel, os judeus só teriam que fazer acreditar que no holocausto teriam perecido os tais 6.000.000 requeridos pela premonição messiânica. Assim, se tornava obrigatório publicitar o sacrifício dos judeus para que o mundo, perante tal atrocidade, sentisse remorsos e ajudasse a criar, de uma mentira, um fato histórico. Os generais russos, aliciados por Estaline, que desejava os ingleses fora da Palestina, estavam já dando o seu contributo propagandístico ao deturpar a informação colhida nos campos de Auschwitz, onde até inventaram as famigeradas câmaras de gás. Os tais 6.000.000 descritos na profecia tinham mesmo que desaparecer como vítimas das pseudo fornalhas do nazismo!

Berger Stein riu-se daquela farsa e, numa retrospetiva do que tinha aprendido na faculdade, recordou-se de ter ouvido um zunzum acerca dessa fraude: foi no ano 1900, um artigo publicado pelo jornal New York Times e copiado de um discurso do Rabi Wise, onde este afirmava — «Há 6.000.000 de judeus vivendo, sangrando e sofrendo» — como argumento a favor do sionismo.

Em 1906, um jornalista judeu, em virtude dos pogrom do rescaldo do primeiro levantamento comunista na Rússia, grita aos quatro ventos que está eminente um holocausto de seis milhões de judeus.

Também pouco depois da I Grande Guerra os sionistas invocaram um massacre de 6.000.000, só que o argumento não foi longe e ninguém acreditou na história.

Em 1921, o povo russo, já farto de ver os judeus como usurpadores bolcheviques na sua própria terra, começaram a persegui-los como bodes expiatórios da falta de liberdade e do racionamento de víveres. Estes, na vã tentativa de chamar a atenção do mundo para a chacina de que eram vítimas, recorreram novamente ao mito dos seis milhões.

Se a história desta hipotética mortandade atribuída aos carrascos nazis conseguisse mais apoio dos políticos ocidentais, do que somente de Estaline, era bem mais fácil convencer o mundo. Ora, os americanos precisavam na altura de esconder os seus erros na Europa e também os massacres nucleares de Hiroxima e Nagasáqui. Assim, estavam dispostos a satisfazer a farsa, porque além do interesse político, havia os dividendos das indemnizações a pagar aos judeus, as quais iriam potenciar a sua economia. Também ao alinharem com Estaline no embuste, conseguiam mais argumentos para impor a sua vontade ao povo alemão, que necessitava da sua ajuda para voltar a erguer-se e, como tal, seria um bom cliente da indústria americana. Também os testemunhos do julgamento de Nuremberga arranjados pelos carrascos judeus ao serviço do exército britânico, que recorreram à bestialidade da tortura para conseguir falsas declarações sobre atrozes ações que só estavam na mente dos torturadores, conseguiram o objetivo a que se propuseram. Só esqueceram que a história, mesmo a dos vencidos, vinga sempre a própria história e a declaração dos sentenciados à morte ficou na memória dos vivos!

Tal como afirmei no meu livro, O Cruel Josué, o holocausto, forjado ou não, enalteceu a religião judaico-cristã. Também a profecia da mulher heroína que no alto das muralhas de Libna, enquanto fazia holocausto dos seus filhos para não caírem vivos nas mãos dos bárbaros hebreus, comandados pelo cruel Josué, os arremedava com sanha: «Vinde, malditos adoradores de um deus cruel! Vede como ofereço em holocausto ao vosso sanguinário Javé o fruto das minhas entranhas, a carne da minha carne e sangue do meu sangue! Que a memória do tempo fixe a minha maldição: que os filhos dos vossos filhos sejam pelos homens humilhados e escarnecidos da mesma maneira que vós trespassais os corpos dos nossos velhos, mulheres e crianças. Que o sangue deles esteja sempre sobre as vossas cabeças nos tempos do advir. Sereis escorraçados de todos e apedrejados pela canalha; sereis escravos de um futuro que jamais sorrirá à vossa raça de malditos! As vossas mulheres se prostituirão por um naco de pão e as vossas crianças serão apontadas a dedo nos caminhos da vossa eterna peregrinação.»*

Stein assinou tudo o que lhe puseram na frente e ainda se filiou a uma das organizações sionistas que lutava no Médio Oriente por mais terra para Israel: a Irgun, que tinha por fito conseguir o que a ONU não permitira na divisão da Palestina. Ele era Berger Stein. De nada lhe interessavam os métodos e tão pouco a independência dos sionistas, mesmo o acicate do nacionalismo que isso podia despertar. Ele só queria enterrar o passado para não ver enlameado o seu presente e para isso nada melhor que camuflar-se numa estrutura também clandestina. Assim, mais depressa se veria livre do pesado fardo que carregava. Descobriu mais tarde que a organização Irgun era comandada por Menachem Begin, um líder favorável ao sionismo revisionista a que o próprio Ben Gurion se opunha com firmeza.

Berger não fez comentário algum acerca da trapalhada fraudulenta. Ele só tinha que tornar-se um nacionalista e inscrever-se como voluntário para a próxima leva de judeus para a Palestina. Desejava isso, sim, e contar com o apoio da instituição para continuar os seus estudos de jornalismo ao mesmo tempo que, com serviços prestados, apagava o seu passado como kapo no campo de Birkenau.

Encarregado pelo Centro Judaico de, com a colaboração de outros estudantes da universidade, fazer propaganda junto das comunidades judaicas refugiadas na Suécia, chegou à conclusão que afinal os laços de solidariedade entre os diversos grupos sociais não eram de molde a confiar na sua cooperação para lutar por um objetivo comum. Era necessária uma união religiosa e uma coesão de esforços para conseguir um estado, uma terra de todos para todos. O conceito de raça, que devia ser um elo aglutinador, andava ao sabor das diversas nacionalidades que compunham a comunidade. Também a ideia de uma comum religião estava dispersa pelas tendências culturais, mormente as mais fundamentalistas, que tinham como prioridade a hegemonia sobre as diversas seitas. Era difícil um acordo unilateral a favor da emigração para a Palestina e a solidariedade suficiente para a formação de uma pátria comum, Israel. As diversas comunidades continuavam agarradas à continuidade do estilo de vida de onde tinham a origem. Chegou assim à conclusão que era sumamente difícil conseguir uma união invocando somente a religião e a mesma raça, para os reunir num mesmo ideal. Num relatório que apresentou no Centro Sionista, escreveu que somente um terço dos judeus asilados na Suécia estariam dispostos a emigrar para a Palestina e, como tal, aventava a hipótese de redefinir a política de relação entre a Diáspora e o novo Estado de Israel.

Para quê estar agora a preocupar-se com o seu serviço como voluntário a favor da causa sionista? Estava uma manhã luminosa e naquele sábado combinara encontrar-se com a sua companheira no grupo de trabalho a favor do Centro Judaico. Erika era uma rapariga moderna, alegre e carinhosa, que nunca fez as tais perguntas que ele temia: quem és? De onde vens? O que fazias? Como a maioria das jovens costumava fazer, as mais das vezes só para satisfazer a curiosidade que lhes estava inculcada nos genes. Erika era diferente. Com ela, encontrava uma afinidade espiritual que jamais topara em qualquer outra mulher. No entanto, havia uma coisa que não conseguia explicar — era não poder olhar para ela como pertencendo à sua raça. Não tinha maneira de entender este complexo que entrava em hostilidade com o seu sentir amavio. Era como uma aversão na forma, mas não no sentimento íntimo. Tudo nela, até os predicados físicos que eram sumamente agradáveis aos seus sentidos, lhe fazia recordar a ideia de uma valquíria das lendas nórdicas, que apagava da sua mente a imagem predefinida daquelas meninas que tinham brincado com ele no gueto de Varsóvia, onde a sua família tinha sido confinada antes da guerra. Aquelas mesmas meninas, adolescentes e mulheres que serviam de modelos de identificação aos esbirros das SS: cabelos negros, pele mate e olhos escuros. Era por esses sinais que os nazis capturavam as mulheres judias.