Aterrador

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Aterrador

Moreira, Renato da Silva

ISBN: 978-84-18766-57-2

1ª edição, abril de 2021.

Arte de capa: Ganjarts

Editorial Autografía

Calle de las Camèlies 109, 08024 Barcelona

www.autografia.es

Todos os direitos reservados.

É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem

prévia autorização do autor e da Editora Autografia.

Sumário

1  PLANTIO Nós, gatos, já nascemos pobres, porém já nascemos livres. 02/10/2012 1. Rei morto, rei posto. Não me venha achar ruim porque você me conheceu assim 01/11/2014 2. Os ingleses conquistaram o mundo porque não aguentavam mais a própria cozinha. Caia na estrada e perigas ver 21/03/2015 3. Persiga aquilo que ama ou acabará amando aquilo que encontra.

2  GERMINAÇÃO São as águas de março fechando o verão / é a promessa de vida no teu coração 12/04/2015 4. Se não quer que ninguém saiba, não o faça. O amor, o sorriso e a flor se transformam depressa demais

3  CRESCIMENTO 20/03/2016 5. A solidão é uma péssima conselheira 23/07/2016 6. Jogar e nunca perder não pode ser Nem vem de garfo que hoje é dia de sopa 13/03/2017

4  COLHEITA 7. Quem semeia vento, colhe tempestade Dê um chute no patrão 04/06/2018 8. Quem ri por último, ri melhor Pra cima deles passarinho! Um dia qualquer Epílogo

Dedico este livro a todos os seres, sem exceção:

aos intelectuais que o desprezarão,

às traças que o comerão sem se preocupar com seu significado,

a todas as pessoas e bichos que irão ignorá-lo por completo

e também àqueles capazes de ver o próprio reflexo.

“O que é um espelho? É o único material inventado que é natural.

Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver,

quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio...

esse alguém percebeu o seu mistério de coisa”.

Clarice Lispector


I
PLANTIO

Nós, gatos, já nascemos pobres, porém já nascemos livres.1

Sexta-feira, apareceu uma gatinha lá em casa. Gatinha mesmo, com as orelhas peludas, bigode pontudo, toda felpuda. Tão pequenininha, meu deus… Não sei como não virou comida de carcará. Ela andava toda assim, bem devagar. Passinho, passinho. Estava morta de fome a bichinha. Eu não tinha leite. O que dou pra essa gata? Ela foi logo cheirando a comida da Nega, que latiu, não gostou. Ainda mais quando peguei a gatinha no colo, fiz carinho. Dei de tudo: batata amassada (que é comida de bebê), uva passa, sardinha, quitute. Comeu, comeu, comeu. Capotou, dormiu no meu colo. Nunca vi uma gata pra gostar tanto de colo. Quando acordava me olhava assim de lado, um dos olhos bem inchado. Pinguei colírio, ui! Que aflição! Mas era só ir tocando de leve na ponta do bigode que lá ia ela de novo pros braços de Morfeu. Existe um céu só pros gatos. Sabe-se lá com o que eles sonham, nuvens feitas de lã pra eles poderem brincar. Mas na minha cama, nem pensar! Não adiantou nada. Foi só deixar ela sozinha que ela chorou, subiu as escadas, com aquele tamanho todo. Escalou meu mosquiteiro. Miou, miou. Méee. Méee. Isso é uma gata ou uma ovelha? Tá bom. Ganhou. Entra. Deita aí. Mas dos pés, ela vinha me montando, me subindo, me escalando. Pés, barriga e ombro, seu bigode no meu cangote. Pegava ela de volta, botava no pé. Não bastava: lá começava ela de novo a jornada. Dormiu agarrada. Se enroscou nos meus braços. Eu, todo bravo, cedi.

Deixei ela enroladinha em si mesma e fui pro trabalho. Recomendei pro Rafa que tomasse cuidado, não pisasse na gata, nem deixasse fugir do lugar. Não tinha esquecido ainda a história do carcará. Voltei, lá estava o Rafa. Mas cadê a gata? Olha eu bobo, todo ansioso. E o Rafa pesaroso: – Pois é… a janela aberta… partiu.

Como é que encontro uma gata dessas e deixo ela ir embora?

No começo não a queria de jeito nenhum. Já me bastava a Nega pra me dar trabalho. Mas ela foi ficando, com seus bigodes, sua orelha de ouriço. Passei o dia me dizendo que pois é, essas coisas não se escolhem. Como o Rafa, como os amigos, que aparecem na sua vida e você aprende a amar. Às vezes até os mais improváveis, com pelos na orelha e olhos inchados.

Cadê essa gata?

E toma procurar. Eu na corrida contra o carcará.

Peguei a chave e deixei tilintando, que os bichos gostam desses barulhos. Os grilos se puseram logo a cantar. Era tlim tlim tlim pra cá, cri cri cri pra lá. E eu psss psss a chamava pelo nome: [ ]! – foi o nome que lhe dei. A essa altura já devia conhecer minha voz. Mas uma gatinha tão pequena, numa escuridão tão imensa. Tlim tlim, olhava debaixo do carro. Pss psss, dentro do saco. O lixo, todo revirado. Um cachorro bravo latindo. Você comeu minha gata, seu bobão? Deixa ver se você está com bafo de gata, abre a boca e diga ahhhhhhhhh.

Quem me via achava que eu era doido. Sozinho na praça, andando bem devagar, quase não respirando pra poder ouvir qualquer choro. Tlim tlim. Nada. Ia quase parando, olhando pro chão. Era só ouvidos. Quem é esse? Um perguntava. É doido – outro dizia. Só eu e a lua, que alumiava. Eu já miava, e os grilos cri cri se compadeciam. Será que ela se escondeu? Faz bem. Um bichinho tão frágil, pra virar lanchinho da madrugada é fácil, fácil.

Por que será que ela fugiu? Deve ter ficado com medo, sozinha. Com sede. Faminta. Foi só à porta ver se me encontrava, aí passou aqueles flocos de palha, tão irresistivelmente divertidos... Tomara que alguém a tenha pego e levado pra casa. Pelo menos não escutava qualquer gemido. Ali de noite, espreitando o quintal das casas. Assobiando. Cantava com esperança que ela me escutasse. Fazia tempo que não vagava assim. A noite me envolvia. Me sentia um bicho, um vira-lata. Pra onde eu iria se fosse um gato?

Pra onde é que foi essa gata?

Foi quando você me ocorreu, Kyara. Como encontro uma gata assim e a deixo escapar? Como deixei você partir?

Metáforas. Ainda me deixam louco. Agora procurava a gata como se encontrá-la fosse o mesmo que lhe encontrar.

Será que você sentiu fome e saiu por aí procurando o que comer? Tanta coisa boa por aqui, pra que tombar lata, rasgar saco? Gatas são assim mesmo, e não sei? Ainda mais se forem geminianas.

E me dizia, desencana. Não adianta pedir pra alguém gostar de você. No máximo dar bons motivos e deixar a natureza agir. Quem gosta, gosta de cara. Desde antes de te conhecer. Pra que perder tempo tentando convencer? Já era.

E já ia voltando pra casa. Fazia um tlim e um psss mais por desencargo de consciência.

Mas aí ouvia um miau. Será que é ela? Passava batido o portão de casa e ia procurar do outro lado.

E dizia a mim mesmo: que é isso! Deixa de frescura! Que nesse mundo nada nunca foi de graça. Ela só está distraída, ainda não lhe viu. Se abre! Com sinceridade mostra o que lhe vai no peito. Se vira do avesso, seja você mesmo. Que toda natureza humana é linda e apaixonante. Basta ter coragem pra ser e sensibilidade pra notar. Vá, e diga que você não quer prender, quer soltar. Ser testemunha. Cúmplice. Em qual travessura?

Teve que a gata sumir pra que eu voltasse a andar por aí. Fazia tempo que não vagava assim, errante, pixo reto, grafite torto, cola e barbante. Feito bicho. Cheirando. Pego uma flor do chão, deixo sobre a gangorra do parque. Brincar de catapulta com os ratos. Chutar a água que corre na sarjeta, circular os postes de luz.

 

Teve que você sumir, pra que eu voltasse a escrever. Essas palavras que já vão formando um texto que me saí pelos cotovelos. O que você vai pensar? Nasci na época errada. Quem você conhece hoje em dia que faz esse escarcéu por causa de uma gata? O que não falta é felino. Quem é que corre atrás, tlim tlim, psss psss, de uma gata que vem na sua casa, foge e não lhe deixa nem um bilhetinho azul? Selecionar tudo, deletar. Mandar o texto pro limbo, pra junto das juras que Rimbaud queimou na luz de uma vela, que jogou feito aviãozinho pelo ar, pro céu dos gatos.

Fiz a seleção. Mas não deletei. Porque essas palavras vieram de você. São suas. Você entrou dentro de mim e saiu feito letrinhas.

Devolvo-as, pois.

Será que ainda encontro essa gatinha?

Psss psss psss

1 Trecho da música História de Uma Gata de Sergio Bardotti e Luis Enrique Bacalov. Versão em português de Chico Buarque.

02/10/2012

Jorge me escreveu hoje me comparando com uma gata. Ele é todo mágico e cheio de metáforas. É a primeira vez que alguém escreve um texto de verdade para mim, fora as cartinhas do ginásio. E que texto! Quando disse que era escritor esperava, não sei, algo mais rebuscado. Nunca conheci um escritor antes e o título soa tão imponente. Não sei porque, esperava algo mais complicado, intelectual, difícil de entender, como um desses textos que obrigam a gente a ler na faculdade. Acho que a gente está tão traumatizada por ter a leitura enfiada goela abaixo que já espera por enfado. Ledo engano! Pois Jorge escreve exatamente como fala, cheio de onomatopeias e quase cantando, surgem rimas e nunca sei se é de propósito, às vezes parece um repente. Quebrou a imagem que tinha do escritor sério diante da tela. Parece mais [ ]. O vejo como um menino debaixo de uma árvore brincando com um lápis. Com a sabedoria ingênua que só as crianças têm.

E é isso que me confunde e encanta, por um lado parece um menino e por outro já viajou tanto, sabe tanta coisa, tantas histórias, sabe o nome de cada artista, de cada música, de cada filme, de cada diretor. Sou uma desgraça para essas coisas. Ele fala francês! Morou na França. Meu sonho é ir para lá, aprender a língua, tão linda. Mas ele não é do tipo que fica cagando cultura, se exibindo, fazendo listas do que sabe. Está sempre esmiuçando uma ideia e para torná-la clara usa todos os recursos que têm, sai citando deus e o diabo buscando o melhor exemplo, mas soa honesto, sincero, como se de verdade quisesse se fazer entender e não mostrar que sabe. E interrompe a conversa para brincar com um cachorro que passa, para no meio da rua para olhar uma joaninha. E canta, canta, canta…Não que seja assim um cantor desses oh, mas canta com vontade, dá gosto de ouvir.

E é aqui que entram minhas dúvidas, parece que esse doidinho canta até demais. Lima me disse que ele está sempre cantando uma menina diferente. Não é de se admirar, um rapaz sensível só pode mesmo fazer sucesso nessa terra de jagunço, cafuçu e tabacudo. O que Recife tem de mulher falta de homem.

A carta de Jorge deixou clara sua intenção de um novo encontro, mas vale a pena? Por um lado seria bom ter alguém determinado como ele ao meu lado. Pela sua história de vida, ele é o tipo de pessoa que realmente vai atrás do que acredita e com disciplina consegue o que quer e é justamente isso que preciso aprender. De boas intenções o inferno está cheio. Vou deixando para amanhã, que vira depois de amanhã. Está na hora de começar a me virar se não quiser ficar mofando aqui em Hellcife. Mas por outro lado, será que esse vira-lata não é faceiro demais? Será que é capaz de parar quieto com uma mulher só? Porque levar gaia2 na cabeça é foda!

2 Do pernambuquês “chifre”, ser traído.

1. Rei morto, rei posto.

Tive o mesmo sonho outra vez. Devo parar de comer antes de dormir, ou deixar de dormir depois de comer. Ideia: fazer uma lista relacionando os ingredientes ingeridos na última refeição do dia e os sonhos consequentes. Noite anterior: fettuccine al tartufo – enterro de meu pai.

Como em todo funeral de filme, chovia. Tanto na lembrança real como no sonho. O lugar estava lotado. Guarda-chuvas negros obrigavam as pessoas a manter certa distância umas das outras. Leila chorava copiosamente para fazer-se digna da herança. As lágrimas podem ser falsas, mas a alegria que ela proporcionou ao meu pai foi verdadeira, portanto ela merece. Tio Gildo é o mestre de cerimônias. Posta-se ao meu lado como uma esfinge protegendo minha paciência. Posso adivinhar suas três perguntas internas antes de deixar qualquer engravatado se aproximar de mim: 1. Qual o cargo do indivíduo dentro da empresa? 2. Quais são suas chances de ascensão depois do falecimento do presidente? 3. Esta ascensão, fortaleceria a mim ou ao meu sobrinho? Seguindo esta lógica simples, tio Gildo só deixa se aproximar de mim os seus puxa-sacos, não os meus.

Chovia. Gotas copiosas caiam sobre o féretro. Padre Agostino fazia o elogio de meu pai: santo Amauri, protetor dos fracos e oprimidos. Um gigante entre os homens, capaz de erguer um império apenas com o engenho de sua mente e a força do seu braço, duas dádivas que Deus ofereceu-lhe para trazer prosperidade à vizinhança. Meu pai sorria dentro do caixão. Cada pingo de chuva era uma afirmação: você é bom, você é bom. Da minha parte nunca vi meu pai usar “a força do seu braço”: sempre havia algum empregado disposto a fazê-lo no seu lugar. Claro, padre Agostino fala de maneira figurada. Nota mental: nunca levar um padre ao pé da letra.

A chuva compensa a ausência do choro entre os diplomatas. Eraldo espreme os olhos em busca de lágrimas. Aproveita um dos fios d’água que escorre do guarda-chuva para molhar os dedos e levar aos olhos em um gesto disfarçado.

Nunca vou saber se meu pai teve algum amigo de verdade. O velho era cativante, possuía um carisma natural. Lembro de uma de suas excursões anônimas que fizemos juntos. Inspirado pelo califa Harun al-Rashid, o velho se disfarçava de pobre para lidar com o povo. E mesmo nessa situação, supostamente sem ter nada de material para oferecer, meu pai tinha uma presença marcante. Quando falava, a gente ouvia-lhe e tratava-lhe com respeito e admiração. Mas de que valiam suas qualidades em meio a uma trupe de sangue-sugas? A diretoria da empresa é um ninho de víboras. Só querem saber de tirar proveito e são capazes das maiores acrobacias em busca de recompensa. E divirto-me com isso como se desse comida aos macacos. Veja o Eraldo. Aí está ele molhando mais uma vez os olhos com a água da chuva. Se o fizer uma terceira vez sem que ninguém mais perceba dar-lhe-ei uma promoção.

Mamãe não gostava que agisse assim. Dizia que anel de ouro não é para focinho de porco. Que quem compra afeto acaba sem teto. Santa mãezinha! Ela com certeza saberia uma medicina para espantar meus pesadelos. Em seu funeral também chovia, mas então eu chorava de verdade. Sequei com o tempo. Há onze anos, nos meus tenros dezesseis, tudo me emocionava. Agora resta-me uma máscara de alegria, uma postagem sorridente nas redes sociais e a satisfação digital de muitas curtidas.

Tio Gildo arranja logo uma saída para minha falta de lágrimas. Comenta para um grupo ao redor em um tom perfeito entre discreto e relevante:

– O pobre Enzo já sofreu tanto que nem chora mais... Primeiro a mãe, agora o pai. Sofrimento maior deixa a gente assim, perplexo. Queria poder emprestar minhas lágrimas para ele. Mas as lágrimas de quem perdeu o irmão não valem o lamento de um filho que perdeu o pai.

Esse é o tio Gildo que conheço, um mestre em massagear o ego alheio enquanto pontua sutilmente suas próprias qualidades e resignação. Sua estratégia só não funciona muito bem quando se trata de Luigi. O amor que tem pelo seu filho é tão grande, que ele não pode evitar de elogiá-lo descaradamente sempre que pode. Ele sabe que a melhor estratégia seria deixar Luigi ganhar respeito por si próprio, por isso sempre faz um adendo forçado depois de exaltá-lo:

– Luigi não pôde vir. Está doente. Colheu febre depois de passar uma noite ao relento, trabalhando como voluntário. Esse rapaz é mesmo um anjo, não sabe mais o que fazer para ajudar na nossa organização beneficente! Digo para ele, filho, você é sobrinho do presidente, não precisa se esforçar tanto. Mas ele não quer saber e diz: pai, se não trabalhar tanto ou mais que você ou o tio, ninguém nunca me respeitará. Esse menino vale ouro. Ouro!

E vale mesmo. Cada vez que Luigi decide fazer uma das suas viagens beneficentes milhares de euros são desviados, lavados, passados por debaixo da mesa e por dentro da manga. “Noite ao relento trabalhando como voluntário” – até parece que ele estava entregando sopa aos moradores de rua. Sua “febre” se chama “gonorreia” e seu serviço voluntário foi espalhar seu sêmen aos úteros de incontáveis meninas sulistas miseráveis.

Chove lá fora. Chove na minha lembrança e nos meus sonhos. Observo o contorno dos prédios através da janela do meu escritório, na cobertura da nossa sede em Milão. Tudo parece cinzento. Chamo Zeleide pelo viva-voz, peço que desmarque meus compromissos para essa semana e que prepare o Tappeto Magico. Cansei dessa chuva, vou dar uma volta pelo sul. Tenho um império para administrar e preciso estar de bom humor para tanto.

Nota mental: trocar o nome do jato particular. Só meu pai mesmo com seu sonho de califa para pensar em algo tão antiquado como Tappeto Magico. Ideias:

Força Aérea 66: subverter o Força Aérea 1 com um conceito beatnik.

Pégaso: batido, mas classudo.

Fênix: hmmmm...

Holandês Voador: yeah!

Millennium Falcon: por que não?

[ ]: gostei. Acho que vou ficar com esse.


JorgeKyaraEnzoLeitor
PlantaLótusOrquídeaNarciso
BichoCigarraBorboletaFormiga
Parte da VilaBanhoBorboletárioJardim
Rosa dos VentosSulLesteNorte
Divindade GregaDionísioDafneApolo
Personagem do PinocchioGrilo FalantePinocchioGeppetto
Energia BloqueadaRaivaMedoTristeza
Emoção SuplenteTristeza no lugar da raivaVergonha no lugar do medoRaiva no lugar da tristeza
PráticaMeditaçãoDesenhoYoga
NotasMiSol
SílabasME HUNGOM MANI PE
CoresVermelho e azul marinhoBranco e verdeAmarelo e ciano
PurificaçãoCobiça e iraOrgulho e invejaDesejo e estupidez
Paramitadana paramita: generosidade, doaçãoshanti paramita: paciência, tolerância, auto domínio, aceitação, resistênciadhyana paramita: meditação, concentração, contemplaçãovirya paramita: energia, diligência, vigor, esforçosila paramita: virtude, conduta apropriadaprajna paramita: realização direta do vazio e da interdependência
SabedoriaDiscernimento e espelhoEquanimidade e disposiçãoSabedoria primordial e realidade absoluta

Não me venha achar ruim porque você me conheceu assim3

Vai, Dionísio. Faça seu elogio ao prazer e à loucura! Defenda o indefensável, o ilegal, o imoral e o que dura pouco. Que oco vai o interior da gente. Que mente e finge que engana. Vai, sublime boêmio. Transforma em sagrada a alma profana. Lá vem mais um milênio. E nós aqui, bebendo cana...

Tentei. Expliquei. Demonstrei. Que existe um amor maior, sem propriedade ou fronteira. Que o ciúmes é a maior besteira, filho do silêncio e da ignorância, pai do apego e do ódio. Faço o que posso. Mas como dar uma cara, corpo de palavra ou efeito, a [ ] que me vai no peito?

A gente sabe que um só alimento não traz satisfação. Que a paixão exclusiva envelhece, tem idade, enquanto a vida é infinita em sua diversidade.

Nosso costume é uma camisa de força. Penduraram na forca todos que tentaram liberar o amor. Não é à toa, que ele virou um bem privado. Tudo nesse mundo foi rotulado, privatizado e vendido. E enquanto as monoculturas destroem a terra sob nossos pés, a monogamia apodrece o coração da gente.

 

Acredito que duas pessoas possam se amar e se bastar uma para outra até o fim da vida. Conheci um ou dois casais assim. Um ou dois, de quantos? São flores raras, pinguins que no futuro devem ser protegidos da extinção. Mas daí todo esse aparato midiático de princesa e príncipe encantados... Por favor! A gente cresce sendo convencido de que nosso instinto está errado. Que todo o desejo deve ser controlado em prol da relação “ideal”. Ligue o rádio. Acenda a TV. Você verá quantas vezes se fala desse amor daninho entre só eu e você. “Só quero que você me aqueça nesse inverno e que tudo mais vá pro inferno!”4

Dói, é... dói. Ninguém quer bulir o assunto. Ninguém quer lidar com defunto. E depois de montar sua armadura, lá vai o homem seguindo os passos do pai, continuando o que não entende, macacos se espancando sem banana e sem necessidade de castigo. Um dia o homem olhou pro céu e viu um Deus separado de si. Vestiu a máscara do ego. Botou-se à parte da natureza e esqueceu como se ama. O abraço genital5 virou sexo, prazer simplório carregado de frustração. Agora Deus está morto. Mas a máscara tomou o lugar do rosto. E desde pequeno a gente aprende que tem que ser fiel que nem os nossos pais. Amém.

Mas quem é “a gente”? O povo? A humanidade? Todos nós? Que pretensão a minha botar todos no mesmo saco, querer que você seja o mesmo que eu. Posso chamar de “nós” meu eu, fruto do agora, e o leitor de um futuro distante? Pois de agora em diante irei me referir somente a mim. Sou eu quem leva essa armadura e essa máscara. Sou eu quem carrega essa farsa. Eu que, sem querer, imito meu pai e sonho com a princesa. Eu, que não me satisfaço com uma só beleza.

Kya, Kya, Kya.

Kya se assusta com a mordida, que nem machuca, nem é ardida. Imagina o que seria se fosse morder a sério. Que doces impropérios me diria? Que sou tolo? Bobo? Envolto em sonho sexy e suado de desejos córneos e alados? Kya se deita na cama e quer que o mundo se exploda. Sem versos, sem loas. Quer que tudo acabe em lua cheia. Vira de lado, disfarça o embaraço, expande suas veias. No seu sangue corre sede e preguiça. Seu quadril empinado me conquista, me emaranha em suas teias. Kya não liga a mínima se o verso vai dar em rima. Mal sabe que presencia o futuro num bêbado vadio e casmurro que em vão solta fumaça. Come meus papéis feito traça. Acha graça na minha desgraça. Desconversa meus versos. Quer minha batuta de maestro e não minha fala desbocada.

Pois aqui estou com minha princesa tão desejada. Mas como diria Wilde, no mundo há apenas duas tragédias: uma é não conseguir o que se quer e a outra é justamente consegui-lo. Para dizer bem a verdade, não era uma princesa que queria. Era uma parceira. Alguém com quem dividir o amor livre. Pois posso resistir a tudo, menos à tentação. E “a única maneira de libertar-se de uma tentação é entregar-se a ela. Resista, e sua alma adoecerá de desejo das coisas que ela a si mesma se proibiu, com o desejo daquilo que suas leis monstruosas tornaram monstruoso e ilícito”.

Mas Kya não quer saber de amor livre. Para ela, isso é monstruoso e ilícito. Como algo que dá tanto prazer e traz tanto bem-estar pode ser mal? O amor cura. Quer dizer que para fazer o bem a uma pessoa, tenho que me privar de fazê-lo a muitas outras? Onde está o bem nisso? Confortar o medo que Kya tem de me perder? Pois é justamente assim que ela me perde, ao querer me prender. A mim não me resta alternativa senão aquiescer. Pois a amo e não quero me separar. Prometi, tentarei acalmar meu facho. Mas acho que não será fácil. O amor é meu tudo, meu Yin, meu Yang e meu Jung. Meu aquilo, meu isso, meu vício. Me abster completamente da diversidade me deixará louco. Talvez... reduzindo... pouco a pouco...

E quem sabe com o tempo, Kya mude de ideia.

Desde que viemos morar juntos ando mais tranquilo. Enquanto termino mais um livro de contos, minha primeira novela, escrita anos atrás, está a ponto de ser lançada. Impressionante como acabo publicando sem me preocupar em publicar. Conheci o editor por acaso. É que acho que a arte tem pernas próprias. O tempo que tenho entre um trabalho e outro, entre ganhar o pão de cada dia, prefiro aproveitar escrevendo ao invés de correr atrás de publicação. Não escrevo por glória, riqueza ou reconhecimento, mas por devoção e autoconhecimento. Sinto pena dos escritores que perdem o sono pensando em publicar ao invés de irem dormir (e despertar) com seus escritos.

E com mais um livro saindo do forno, deixo para trás mais uma pele de serpente. Me liberto das dores do parto. Mas um livro não é um filho, já nasce independente, não necessita do cuidado do pai. Cai no mundo sobre suas patas e segue seu próprio caminho. Sozinho, encontra quem tem que encontrar. E saio mais uma vez de banda. “Há quem sambe diferente noutras terras, outra gente, um batuque de matar”.6

Dessa vez, não parto só. Kyara vem comigo. Andiamo in Italia que mi fará piaccere conoscere il bel paese.7 Minha papelada está pronta, foi reconhecida minha cidadania portuguesa. Agora só falta resolver o que toca a Kyara. Sem lenço, sem documento, quem diria, nos resta o casamento.

3 Trecho da música “Tem Dó” de Baden Powell e Vinicius de Moraes.

4 Trecho da música “Quero que Vá Tudo pro Inferno”. de Erasmo Carlos e Roberto Carlos.

5 Termo utilizado por Wilhelm Reich.

6 Trecho da música Brasil Pandeiro de Assis Valente.

7 “Vamos à Itália que terei prazer em conhecer o belo país”.