Os bastidores da verdade

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Alexandre não tem dado razões para preocupação de maior (enfim, o ofício de mulher impõe-lhe, ainda assim, o “alerta ciúme”). Mas sente que a relação agora com 20 anos e um filho em comum tem perdido élan. Está pelos 47 anos, bom de verdade mais para os 48 anos que (não) festejará dentro em breve. Mulher, casada e ex-divorciada, dois filhos, o João Carlos (Joca diminutivo ternurento que muito lhe agrada) e Alice, agora com 26 anos e filha de um primeiro casamento que durou 10 anos (ainda hoje se interroga como pôde durar tanto tempo).

A verdade é que o primeiro casamento nunca a satisfez. Tiago foi um namoro adolescente sempre “certinho” e “apadrinhado” pelos pais de ambos. Um namoro que não inibiu Luísa de interesses amorosos e atracções sexuais por outros rapazes, que escondia de todos e só partilhava com Eunice, sua amiga e confidente que, como só mais tarde percebeu, nutria por ela um amor sexual sublimado em carícias, abraços intensos e a partilha de detalhes íntimos do namoro com Tiago. A verdade é que a amizade rompeu de um momento para o outro quando Luísa lhe anunciou o casamento (a que Eunice não foi). Soube mais tarde que vivia em coabitação com outra amiga comum, a Nucha (curioso só se lembra do diminutivo) com quem se lembra de algumas discussões a propósito de Eunice (de quem Nucha era muito crítica, claro que depois intuiu tanto os motivos das suas exaltações enciumadas, como do desabafo consigo).

A partir daí perdeu-lhe o rasto. O relacionamento com Tiago foi um longo enfado de (quase) 15 anos. Só se lembra de alguns entusiasmos amorosos, ainda assim pouco eróticos, pelo início do namoro, tinha ela 15 e ele 17, colegas da mesma escola e quase vizinhos. Lembra-se que aquilo que mais a entusiasmava nele era a sua inteligência, e o modo paciente e diligente como a ajudava nas tarefas escolares (ela no 10º ano, aluna mediana, ele o melhor aluno do secundário a nível nacional, no 12º ano e “apontado” às engenharias).

O namoro foi sempre muito conveniente e “abendiçoado” pelas famílias de ambos. Ela aparentava a adolescente tímida, mas desenvolta, boa rapariga de boas famílias e educação esmerada, ele o jovem adulto amadurecido, sobredotado e de êxito futuro quase garantido… enfim, o “bom partido” não fora o feitio insosso e a libido mitigada, ademais sublimada para a esfera intelectual que sempre o excitou em prioridade. Consórcio matrimonial benzido pelos deuses, mas amaldiçoado pelos “demónios” da carne e do desejo sexual que nunca a largaram!

Ainda assim a gravidez e o parto de Alice foram épocas de intenso envolvimento (também diversão da libido em amor maternal) e depois os inícios da carreira docente como professora de português e francês no ensino unificado e no secundário. Três colocações relativamente próximas do local de residência em sete anos, por aí sempre se sentiu bafejada pela sorte. Tiago rumou a Harvard para Ph.D. logo após o nascimento de Alice (não o acompanhou, não tanto pela filha, como pela frustração mulheril de uma relação “doméstica” sexualmente frugal e anorgásmica).

Pelos quatro anos de Alice, Tiago regressou (tinha convites para ficar por Harvard e para algumas prestigiadas universidades da Europa e dos Estados Unidos, sugeriu-lhe que os aceitasse, mas Tiago insistiu em vir para junto dela e da filha). Andava pelos 28 anos de idade sem distracção para a sua frustração mulheril (mesmo os encontros sexuais, furtivos e efémeros, com dois colegas de profissão, um casado e outro solteiro, não calmaram o desejo sexual insatisfeito) quando conheceu (finalmente) Alexandre.

Recorda ainda tão bem o momento desse primeiro encontro, a languidez toma-lhe os sentidos, aflora um suave rubor ao rosto e um sorriso ligeiro aflora-lhe aos lábios. Está imersa nesta deambulação quando ouve troar em rajada um “Não, isto assim não pode ser, o André não vai ter positiva a EV, não participa na aula, só distrai os colegas” do seu lado esquerdo. Tinha de ser a Berta colega de feitio irascível perorando, como é seu hábito, contra um aluno da sua direcção de turma. Gerou-se discussão entre Berta e Rosário, a professora de educação física que no grupo mais se opõe ao feitio de Berta, e Luísa é obrigada a intervir com um “Talvez seja prudente deixar em aberto a recuperação deste aluno para o 3º período, os pais têm-se mostrado interessados e ele parece estar a participar mais recentemente nas aulas de apoio para recuperar as 4 negativas que se mantém do 1º período”.

Aguarda o impacto da sua intervenção, ouve um “Hummmm” agastado ao seu lado esquerdo, um “parece-me bem” ao seu lado direito, seguido de um assentimento tácito das outras colegas pelo que dá por encerrado o incidente. Depois de algumas instruções à colega que secretaria a reunião, volta “ao assalto” da memória do encontro com Alex.

Foi emocionante e inesperado, ao modo de um coup de foudre que a chocou de tão silenciosamente aguardado. Recorda que tinha sido convidada para um jantar de antigas colegas, algumas delas suas amigas da Faculdade de Letras (uma menagem saudosa que hesitou muito em integrar) quando deu “de caras” com a paixão da sua vida. E de modo bem acidental (como convém aos romances de amor) como veio a saber mais tarde.

É que Alexandre tinha ido acompanhar a mulher a esse jantar, e esta nem sequer era colega de curso, antes amiga de uma das colegas (Raquel de seu nome, de que quase não se lembrava e de que nunca tinha sido amiga) e, como tal, convidada-extra do jantar-convívio. Trocaram olhares por um momento, mas foi tão intenso. Recorda o porte altivo de um quase quarentão elegante, pelo metro e oitenta, silhueta firme e olhar penetrante de um azul profundo, num rosto triangular bem definido e encimado por um cabelo espesso castanho escuro, com uma mecha elegante caindo sobre a testa alta e bem desenhada. Que encanto de homem e que troca de olhares tão intensa.

Lembra-se que o coração bateu acelerado e que, na atrapalhação do momento, deixou cair o guardanapo, que Alexandre de pronto recolheu e lhe entregou em pose sedutora. Nada mais recorda desse jantar, só o alvoroço em que ficou. Arranjou uma desculpa qualquer para ligar a uma colega amiga sua, a Inês, que lhe parecia dar-se bem com Raquel, e inventou uma historieta de interesse pela ida a um determinado espectáculo teatral (já que se lembrava das conversas trocadas à mesa que a amiga de Raquel era produtora teatral, ou pelo menos alguém ligada ao teatro) para pedir o contacto desta última à Inês.

Logo que o soube tratou de ligar à Raquel, a quem verteu o mesmo “conto”, que esta aceitou em primeira instância e, munida desse precioso número de telemóvel, “engenhou” a estratégia para contactar Samanta, a mulher de Alexandre, o “alvo” da sua cilada. Com o nervosismo à flor da pele, o suor a perlar-lhe o rosto e o coração a bater descompassado, marcou o número, não sem antes desimpedir a voz de qualquer incidente fonatório comprometedor.

Marcou o número, esperou o que lhe pareceu ser uma eternidade e, do outro lado, ouviu uma voz de homem cava e bem colocada perguntar “Quem é?”. Porra! Por esta é que não estava à espera (mesmo se o desejava ardentemente, reconhece agora) e, apanhada na surpresa do seu desejo, balbuciou atrapalhadamente um “Não sei se lembra de mim, sou a Luísa a quem apanhou tão gentilmente o guardanapo há dois dias e…”.

Do outro lado, uma voz que lhe pareceu divertida e entusiasmada retorquiu “Como está? Acertou no interlocutor, sou mesmo o marido da Samanta e já agora apresento-me, Alexandre, mas acontece que ela não está em casa e nem lhe costumo atender o telefone, e só por ela me ter pedido para o fazer por estar à espera do contacto de um encenador seu amigo lhe estou a responder. Então o que deseja?”.

Durante o tempo curto em que Alexandre proferiu estas palavras mil pensamentos lhe cruzaram a mente como aviões no céu de uma metrópole populosa ou estrelas cadentes em todas os sistemas solares das nebulosas do cosmos… decidiu ser ousada “Que se lixe”, pensou. “É agora ou…”. Estava nestas cogitações febris quando ouviu do outro lado a mesma voz masculina e intensa (lembrou-se logo da profundidade do seu olhar sedutor) dizer-lhe “A não ser que seja comigo que quer falar.”

Que alívio e que prazer intenso a invadiu, que calma súbita a habitou, que estranha ousadia a impulsionou a responder “Tem toda a razão, quero muito voltar a vê-lo de novo, encontrar-me consigo logo que puder”. A resposta positiva não se fez esperar, que a urgência era muita de ambas as partes, e o encontro foi marcado para daí a dois dias, um café ao fim da tarde de uma 6ª feira, 22 de Setembro (que bem se lembra da data) que se tornou em jantar (prolongamento que ambos tinham previsto em segredo, sem disso terem consciência) e o arrebatamento foi tal que a noite culminou num encontro sexual arrebatador e inolvidável num motel nos arrabaldes próximos da cidade.

Estava nervosa, mas ao mesmo tempo com o desejo sexual ao rubro e com a sensualidade “à flor da pele” tal como Alexandre. As carícias intensas, as línguas confundidas em beijos (quase) intermináveis, a sinfonia dos corpos entrelaçados num baile erótico excitante e interminável, o pénis dele forte e macio volteando a sua vulva e preenchendo a vagina húmida e aveludada de gozo, o contacto orgástico com o colo do útero, inédito para si neste modo intenso e suave, e que a fez sentir quase a perder de vez a “virgindade” sexual.

Tudo isto e mais aquilo que não tem expressão em palavras, por mais ousadas, pornográficas ou descritivas que sejam, se prolongou noite adentro. E que se manteve em todos os encontros amorosos que se seguiram, ávidos, inesperáveis e sofregamente procurados por ambos. Só quando calmou a sede de ambos pela consumação da paixão ardente começou o processo de conhecimento mútuo. Até ao imperioso desejo partilhado de uma vida em comum, a que se seguiu a coabitação, o divórcio de ambos e o casamento… um vórtice intenso que durou um pouco menos de dois anos.

 

Envolta nestes pensamentos manteve uma atenção flutuante à reunião que se foi desenrolando por mais uma hora até que, de novo, Berta a despertou da sua distracção mnésica e sonhadora com um “Então o que decidimos quanto à nota da Filipa? Acho que é uma boa aluna, mas parece que a Luísa não tem a mesma opinião”. A visada “despertou” do seu alheamento parcial pelos trabalhos da reunião avaliativa e com dificuldade tentou reatar o “fio de consciência” dos acontecimentos do último terço da reunião. Por que esta questão sobre a Filipa? Refez-se e, de um “salto” intelectual, proferiu em tom circunstancial, “Se estiverem de acordo posso subir-lhe a nota para 17 valores, embora o seu nível não seja muito bom a português. Veremos como se comporta no 3º período” e aproveitou o ensejo para dar por terminada a reunião (pressentiu algum espanto nas colegas pelo seu gesto expedito, mas aproveitou o “efeito surpresa” e concluiu a tarefa).

Antes de combinar o almoço com Beatriz (a secretária da reunião) e Ana Maria, pediu um momento, saiu da sala e telefonou a Alex. Estava excitada, sentia o sexo húmido e o desejo de fazer amor com Alexandre, de jantar com ele e de voltar a senti-lo. Será que ele iria desiludi-la? Era quase uma e meia da tarde e ela marcou o número com urgência. Ele atendeu “Olá, está tudo a correr bem? Já acabaste essa reunião chata das avaliações?”. Ela respondeu um “sim” expectante e sem intervalo ouviu um “Será que podemos jantar juntos hoje, não temos o Joca em casa e podíamos aproveitar o tempo para nós. Parece-me que disseste que tinhas de jantar fora, mas…”.

Ela nem o deixou acabar “Sim, também quero jantar contigo, já desmarquei o jantar em casa dos meus pais. Até logo, amor, chego à casa pelas 7 da tarde”. E Alexandre lesto “Eu estarei contigo pelas 20h, já disse à minha assistente que adiasse as duas últimas consultas. Um beijo forte e até mais logo”. A alquimia a funcionar de novo, sempre!

Joca

É sempre a mesma coisa! Os mesmos comentários críticos, as mesmas chamadas de atenção, críticas (mal) veladas com referência sarcástica à “bonomia da mãe benfazeja” como raiz de todos os males! Porra, chiça, só lhe apetece pensar em modo vernacular sobre as achegas repetitivas do pai, médico psiquiatra, claro! Tinha de sair-lhe na “rifa” um “médico dos doidos” como pai! Se não fosse a mãe estaria mal de vida. Como iria suportar esta “guerrilha” paterna ao quotidiano?!!

Não é que o pai o chateie com horários ou obrigações, sequer lhe imponha grandes restrições às horas de saída e de chegada das deambulações nocturnas entre pares, é mais a atitude arrogante e sobranceira. Pensa divertido nesta palavra “curtida” que aprendeu com a mãe, a quem aliás acha que deve a riqueza lexical que caracteriza o seu vocabulário, tão admirado pelos colegas, venerado pelos amigos (alguns) e invejado pelos inimigos (vários). Bom, já entrou no comboio e partilha a viagem com mais 30 parceiros “arrolados” para a visita de estudo de fim de semana. Que seca!

Ao seu lado o Xavier, a.k.a. “Carolas”, um “crânio” das matemáticas que resolve equações, derivações e cálculos algébricos complicados enquanto o “diabo esfrega um olho”, mas de resto é cá um antissocial. Agarrado ao Tablet está assoberbado na “refrega” digital dos jogos de estratégia online e não “liga meia” a nada nem a ninguém.

Felizmente que lhe calhou o assento da janela em sorte, sempre vai dando para se fingir distraído com a paisagem que desfila à velocidade do infra-som, que estes comboios rápidos, de rápido só têm o nome. Atrás de si ouve distintamente a voz da Laura, a “Lolita” como é conhecida pelos seus modos sedutores e ares ousados, que dirige, sobretudo, aos professores. Lá que é boazona é! Dá-se uns ares de diva, louraça (com o cabelo a dar para o oxigenado) de corpo bem torneado para a idade, alta e de silhueta excitante, que é realçada pelas leggings pretas e justas e o top azul eléctrico, sob o qual se adivinha um sutiã em “cai-cai” que realça o desenho das mamas firmes e bem desenhadas.

Sorriso matreiro, vai alinhavando umas piadas entre sorrisinhos de olhar sedutor que dirige, quase de certeza, ao professor de filosofia que acompanha a visita de estudo com mais dois docentes supostos enquadrar a “turbamulta” adolescente, de que sempre se pode esperar o pior. De facto, o élan sedutor de Lolita recai sobre Rosendo Soares que, apesar do nome esquisito a dar para o vetusto, é a mais recente aquisição docente da escola, ar clean e porte elegante, apesar da estatura meã para o baixo que não augura “golpe d’asa” galã ao postulante a sex symbol circunstancial de Lolita. Ainda assim, serve-lhe de “desfastio” e arreda-a daquela rapaziada que ela toma por desbarbada e desmerecedora dos dotes sedutores de uma feminidade em prematura expansão.

Apesar de forçar a distanciação irónica em relação aos seus modos e trejeitos convencidos, João Carlos não deixa de sentir uma excitação sexual certeira quando lhe mira o corpo, em ar circunstancial, com a mente preenchida por uma fantasmagoria sexual em que já a imaginou, mais de uma vez, nua e em passe a trocas fortemente erotizadas consigo (talvez inspirado pelos vídeos pornográficos que “escorropicha” na web às escondidas no intervalo disfarçado dos estudos nocturnos). Distraído nestes pensamentos o tempo vai passando, o que não é função despicienda da deambulação ideativa a que se dedica. De súbito, ouve distintamente uma referência ao seu nickname, “Então Joca, já te esqueceste do que tínhamos combinado?”. Reconhece a voz aveludada e musical de Rodolfo (Ró em diminutivo) um colega de turma, de tez ruiva, modos delicados e educação esmerada, bastante popular entre as raparigas e tolerado com algum desdém pelos colegas do mesmo sexo que, não raro, gozam com o tom de voz e as interjeições “amaricadas” de Ró.

Aliás, mais de uma vez lhe notou uma certa atracção por si, uma procura empenhada da sua companhia, de trocar impressões consigo, mas em que sente um não-sei-quê erotizado que o chateia. O leitmotiv é quase sempre o mesmo, trocar informações e combinar trabalhos de grupo em português ou filosofia, em que são os melhores alunos da turma. Mas lá que o irrita, irrita! Pensa em não responder, mas lembra-se que prometeu uma jogatina de cartas com Ró, Raul e Johnny (alcunha por que é conhecido o outro João da sua turma, este sim enamorado de Ró de quem procura captar todo o tempo a atenção, sempre solícito e todo mesuras, meio gozado pelos colegas, e também por si, pelo seu carácter “frouxo” e algo amaneirado).

“É, tens razão, mas tou sentado aqui e não dá jeito!” ao que Ró responde expedito “No problem” a Nina troca de lugar contigo”. Nina olha-o sorrindo, pisca-lhe o olho intencionalmente, e lança um “Por mim tá-se bem se tu quiseres pode ser”. João sente-se gratificado pela nuance sedutora de Nina, uma moçoila bem lançada pelos 17 anos de idade a repetir o 11º ano, cujo corpo roliço e bem torneado, coroado por um rosto sorridente de tez morena, oval e de traços escorreitos não deixa de o atrair.

Apesar da baixa estatura (deve andar pelo metro e sessenta) que não o seduz por aí além (às tantas é por a mãe ser alta, esta coisa do Édipo a que o pai alude jocosamente de quando em vez). Ainda assim, João sente um interesse sexual por Nina que não deixa de lhe dar alguma “pica”… pena que não seja mais inteligente e interessada pelos estudos. Mesmo se essa é a razão para alguns encontros a dois para tirar dúvidas e colher lições sobre matérias mais difíceis, enfim nada de namoros, por aí não está grandemente interessado para o momento.

Se fosse Lolita era diferente, ou até Heloísa (“nome de guerra” Isa), uma colega de outra turma, de perfil enigmático e que exerce sobre ele uma sedução magnética. Isa é alta, esguia, mas de silhueta elegante, as coxas firmes e bem desenhadas e os seios bonitos, apesar de pequenos. Mas é o rosto trígono de fronte altiva e cútis clara, e o brilho inteligente e penetrante dos olhos negros que mais o fascinam. Por azar não pôde vir nesta viagem de estudo. Tanto pior, talvez o melhor seja aceitar a proposta dos colegas para uma “suecada” (que nome mais esquisito para um jogo de cartas, mas enfim…). “Tá bem, se é assim pode ser”.

Levanta-se do lugar, pede licença ao vizinho de viagem acidental (que enfronhado no jogo online só rouquenha um hummm de enfado pelo incómodo da manobra de mudança do parceiro de fila) e aproveita para roçar levemente o corpo de Nina ao cruzar-se com ela, antes de tomar assento no lugar ao lado de Raul e em frente a Johnny e Ró (com uma bem conveniente mesinha a meio).

Com isto tudo já deve ter passado quase uma hora e meia de viagem. Logo que toma assento sente a vibração do telemóvel. Olha o número, é a mãe. “Olá Joca, está tudo a correr bem?” ouve do outro lado a esperada questão e responde de modo esperável com um, “Tá ok, já tou quase a chegar, tá tudo a correr fixe”, “O teu pai deixou-te algum dinheiro?”, “Sim, 50 paus para as despesas-extra não está mal” (acha piada a esta maneira irónica do pai nomear os euros, por isso a usa de vez em quando) “Ok, não te esqueças de me ligar mais logo à noite para ficar mais descansada”, “Tá Ok, lá por isso don’t worry… Té mais logo M, beijão”, “Outro para ti Joca, até logo”. Desligou o telemóvel e, ainda antes de começar o jogo de cartas, pensou divertido no M, acrónimo de mommy, com que trata a mãe em momentos mais descontraídos e no D de daddy que também utiliza nos momentos fixes com o pai. Que não são assim tão poucos como isso, reflete agora com algum alívio e um meio-sorriso discreto.

“Bom, vamos lá a ver o que esta visita de estudo vai dar” pensa de si para si enquanto antecipa a ida não muito interessante ao museu da ciência e da descoberta científica de logo à tarde e, talvez mais interessante, a visita ao museu de arte contemporânea de amanhã… depois a noite na pousada da juventude com Nina tão “atiçada”, quem sabe se não dará para “curtir” um “coche”?!!

Afonso

Pousa o telemóvel na secretária com um gesto de enfado e murmura entredentes um arrazoado incompreensível dirigido ao pai. Ainda assim, o colega que está sentado à sua frente na secretária do seu consultório ouve o sussurro mal-humorado e pergunta-lhe, “O que aconteceu, estás chateado com alguma coisa?” e Afonso descarta “Não, nada que importe” já que não quer nada com este metediço do Gustavo, de modos melífluos e invejoso do seu novel estatuto de “junior partner” na “LTR& Associados” (a sociedade de advogados para a qual foi cooptado, por convite, há três anos e que “brindou” a sua brilhante prestação causídica com esta promoção recente). Ouve de novo o telemóvel a tocar, olha para o visor e aparece o indicativo Ilsa.

Bem, o melhor é atender, não vá ela “moer-lhe o juízo” enciumando com a sua secretária pessoal por não ter atendido de pronto. “És tu Ilsa, o que se passa?”, do outro lado do fio invisível responde-lhe uma voz de enfado “Não é nada de especial, só que os meus pais estão a contar connosco este sábado para o almoço na quinta, parece que tem a ver com o aniversário da minha tia Matilde”. Só lhe faltava mais esta para lhe estragar um pouco mais a disposição. Articula agastado um “Então só agora é que se lembraram, a meio da semana? Que descontracção a deles, será que acham que não temos vida própria, que não temos os nossos próprios compromissos?” e do outro lado uma voz agora mais dulcificada, até em tom de mimo, responde “Tens razão, kido (porra, como detesta este diminutivo piroso! Que ideia a de Ilsa de adoptar esta alcunhazinha… parece que está a dirigir-se ao felino doméstico de estimação, ou a um canídeo domesticado), mas o que queres? A minha mãe é muito “cabeça no ar”, e sabes como a tia gosta de mim, de nós, e te admira imenso ainda por cima. Vá faz lá esse sacrifício pela tua Kida!”.

A entoação “ronronante” do final deixa-lhe um sentimento misto de irritação e de apaziguamento, maldita ambivalência! Por fim lá entoa um “Ok, mas é só por ti que abro esta excepção… e sempre quero ver qual vai ser a “paga”?!” conclui em tom de voz intencionalmente sedutor, a que Ilsa responde de pronto “Guardado está o bocado!” e um sorriso na voz (curiosa esta impressão sensorial tão imagética) que o deixa adivinhar uma noite sensual a dois.

Despedem-se com um beijo e volta a pousar o telemóvel ao canto da secretária com um sorriso discreto no rosto. Ainda antes de concentrar-se num dos dossiês mais importantes que tem entre mãos (a análise jurídica de uma proposta de entrada financeira no capital de uma grande empresa do sector das telecomunicações, que é representada juridicamente pela LTR & Associados e cuja gestão jurídica assegura) pensa na irritação que sentiu ainda há pouco com o telefonema do pai. Irra, é sempre assim! Quando não lhe interessa o assunto, arranja uma desculpa expedita para adiar o encontro.

 

E depois, desde os seus 25 anos, que é sempre a mesma coisa, se não for ele a lembrar ao pai os (escassos) compromissos parentais, a lembrar-lhe o convite para almoçar ou jantar, nada feito! A verdade é que os pais nunca se deram bem, e que a sua mãe, apesar de se queixar todo o tempo do egoísmo do pai, também se ocupava todo o tempo do teatro, das peças a estrear ou a concluir, de festivais, contratos e quejandos. Lembra-se do corrupio de actores e actrizes, encenadores, produtores, escritores e escritoras postulantes à procura de um “lugar ao sol” nos quinze anos em que viveu em “solo” materno desde que os pais tiveram a “brilhante” ideia de se divorciarem, andava ele pelos oito anos de idade, até ao casamento da mãe em segundas núpcias com um amigo de adolescência.

É verdade que a partir do momento do consórcio matrimonial da mãe (ao qual se opôs discretamente), só aguentou mais dois anos em coabitação materna (não que o parceiro, putativo padrasto, fosse mau tipo… mas já não tinha “pachorra” para coexistir em triângulo doméstico… há um tempo para tudo, e para esse arranjo a três estava acabado!).

Aí o pai até foi “porreiro”, não porque o casamento da mãe o tivesse importunado (já há muito tempo que tinha arregimentado a vida com a sua innamorata Luísa, essa sim madrasta com todas as letras, por mais que se esforçasse por amadrinhá-lo). Não, nada disso. O que aconteceu é que nessa ocasião entendeu finalmente a vontade de emancipação do filho e disponibilizou o apoio material e psicológico para ajudá-lo a “zarpar” para Londres, por conta de um MBA em consultoria financeira na prestigiada London School of Economics (depois acabou por ser útil, mas nessa altura era mais uma way out de mom’s home que um interesse formativo estratégico). Reconhece que foi uma abertura de campo na sua vida… tudo mudou depois daí. Até no plano sexual e amoroso depois que conheceu Sarah (uma exótica e sedutora estudante de artes performativas, cabelo multicolorido e tatuagens florais de inspiração oriental na face interior das coxas e no rabo, silhueta sensual e personalidade forte) no acaso de uma ida ao pub entre amigos.

Ainda hoje recorda com gozo o clin d’oeil entre ambos… foi um ano de sensações fortes, e a porta de entrada num mundo experiencial que lhe era desconhecido. É curioso, aí o pai percebeu tudo, contrariamente à mãe que sempre tomou Sarah por amiga estouvada e circunstancial. Não, o “velho” captou a corrente de libido entre os dois (ora aí está um termo psicanalítico que muito lhe agradaria), recebeu-os de um modo impecável e convidou-os a ficarem no quarto disponível do apartamento (Luísa “torceu” um bocado o nariz, talvez pelo seu half brother Joãozinho ser ao tempo um petiz pelos 8 anos… pensa agora divertido, olha se o pai se tivesse chateado com Luísa e quebrado o casório?!! Lá ficava o Joca “divorciadinho” do papá!). Acha piada ao insight momentâneo. Que maldade a sua, reflete retrospectivamente e sorri divertido.

A verdade é que passou uma semana “curtida” à conta da hospedagem do pai que, não satisfeito, ainda lhes subvencionou uma estadia de uma semana no Algarve. No fundo tem de confessar de si para si que sempre sentiu admiração pelo pai. Até a propensão da mãe à crítica pejorativa em relação a tudo o que dizia respeito ao pai contribuiu para isso. Alturas havia em que lhe “moía o juízo” com as críticas, sobretudo antes dos fins de semana em que passava com o pai e Luísa, objecto de um ódio de estimação no ingrato papel de causadora da adúltera ruptura entre ambos. No fundo sabia que não era verdade. Bem antes de Luísa ter “irrompido” na vida do pai, já ele, apesar de puto, se dava conta do mal-estar lá por casa.

Ganapo, pelos sete anos de idade, já intuía a conflituosidade entre os pais à l’amiable para disfarçar um bocado, pouco e mal pelos vistos! Bem, mudando de assunto, tem de convir que até acaba por lhe dar jeito que o pai tenha adiado o almoço para a próxima semana. Ah, mas o adiamento deixa-lhe o “ninho atrás d’orelha” sobre as verdadeiras razões! Conhecendo o pai como julga conhecer suspeita que se trate de resistência ao que intui ser a motivação subjacente à proposta do almoço a dois, o pedido de cofinanciamento para a compra do novo apartamento, sonhado por si e por Ilsa como “selo” do casamento que planeiam (em segredo) para breve.

Irrita-o, em particular, o modo como o pai nunca disfarçou o desagrado subtil que lhe causa o namoro com Ilsa, vertido em injunções de uma ironia mordaz dirigidas à namorada, sempre que a ocasião se depara. Toma-a como uma filha-família mimada e superficial, sem capacidade reflexiva por aí além. Como se engana, é precisamente o contrário disso!… Até o facto de ser publicista e promotora de eventos serve de motivo para chiste sobre a “socialite” emproada de Ilsa (“ferrete” sarcástico a que já está habituado nos poucos encontros de circunstância, à volta de um café rápido, na cafetaria do rés-do-chão do edifício em que ambos têm o local de trabalho). De facto, o pai mudou o consultório há 12 anos para uma sala do 5º andar do edifício corporativo em que o escritório de advogados ocupa todo o 7º andar.

No fundo, acha que o pai sobrepõe Ilsa à sua mãe, a quem sempre criticou a brilhante sociabilidade e o superior instinto relacional, tão útil na sua actividade profissional. Interroga-se sobre a razão dessa crítica paterna. Seria inveja do êxito social da mãe? Ciúme pela atenção que despertava nos homens e mulheres que a cotejavam? Divergência de feitios (já que reconhece que o pai, embora muito conhecido como clínico e bem-sucedido como especialista sénior na sua área de trabalho, tem disposição mais arredia aos convívios e à amizade, tanto interpares como em família)?

Antissocial, exagerava a mãe Samanta sempre que se referia a ele… Favorita da corte e do “corte-e-cose” social, ripostava o pai em momentos de humor aziago (já depois de divorciados). Apesar de lhe terem feito promessa “solene”, pelos 13 anos de idade, e à vez, que um dia mais tarde lhe explicariam as razões do split off, continua até hoje sem dispor de crónica para o que aconteceu… Por aí estão “quites”! Antecipa com curiosidade a reacção do pai ao anúncio-convite para o casamento. Como reagirá? Como irá “digerir” a novel entrada na genealogia familiar da “adorada” Ilsa no papel de nora?

Quanto ao cofinanciamento pode estar descansado, que os pais de Ilsa já adiantaram a oferta a título de prebenda pela boda (anunciada a ambos em segredo pela filha). Até pode acontecer que “abra os cordões à bolsa” para não deixar os créditos por mãos alheias, como sói dizer-se. Bom, chega de “entretenimento” que já são quase 11h da manhã e ainda não se dedicou à análise do dossiê sobre o takeover sob sua jurisdição (enquanto deambulava nestes pensamentos foi resolvendo, em atenção flutuante, a resposta aos e-mails remanescentes da véspera e aos advindos ao início da manhã… a maior parte de índole burocrática corrente). Chama Sónia, a sua secretária privada, quarentona coquete, mas sempre solícita e eficaz, e pede-lhe que organize os documentos relativos ao processo que vai ocupá-lo durante todo o dia de hoje. E à noite, se tudo correr como espera e é habitual, antecipa a recompensa sensual em soirée romântica a duo com Ilsa!