Buch lesen: «Herança Perdida»
Herança
Perdida
Robert Blake
Título original: El legado perdido
© 2021 Robert Blake
© Imagem da capa: Retirada dos common wells do Flickr
Tradução de Susana Franco
(Sem restrição de direitos de autor)
Todos os direitos reservados
Não é permitida a reprodução total ou parcial deste trabalho, nem a sua incorporação a um sistema de computador, ou transmissão em qualquer forma ou por qualquer meio, seja ele eletrónico, mecânico, de gravação ou qualquer outro, sem autorização prévia e escrita pelo autor.
A infração dos direitos acima mencionados pode constituir um delito contra a propriedade intelectual (Art.270 e seguintes do Código Penal).
Índice
Prólogo
Capítulo I
Capítulo II
Capítulo III
Capítulo IV
Capitulo V
Prólogo
Tessalónica, 1912
— Mais de meia hora à espera neste calor sufocante — rosnou o diretor do museu enquanto mantinha o relógio de bolso no colete — Quando é que o barqueiro vai aparecer?
Ele continuou a andar às voltas para cima e para baixo enquanto a névoa do amanhecer não permitia ver nem um metro de distância; apenas o leve ruído de algum pássaro alterou o profundo silêncio.
— Penso que não deve demorar muito — respondi enquanto folheava o pergaminho mais uma vez.
— Achas que vamos encontrar o lugar exato com esta névoa? — Acrescentou o velho.
Kalisteras pareceu morder o lábio; estava a começar a ficar cansado das queixas do velho.
— Assim que os primeiros raios de sol nascerem, a névoa começará a dissipar-se e o lago ficará visível.
— Tens a certeza?
— Eu já percorri este caminho muitas vezes — ele respondeu presunçosamente.
O diretor olhou-o de cima a baixo, não suportava os presunçosos.
— Espero que estejas certo — eu disse a olhar nos olhos dele. — É preciso estar um dia claro e nítido para poder interpretar este mapa.
— Enquanto não for uma cópia grosseira feita por alguns manuacenses nos séculos seguintes, — acrescentou o diretor com um meio sorriso.
— Então a nossa jornada à Salónica terá sido em vão. — Respondi ironicamente. — Nunca faço uma investigação sem provas suficientes. Este pergaminho é do século IV.
— Eu sei amigo. Por isso é que decidi sair da minha biblioteca. Ainda assim tenho as minhas dúvidas — ele suspirou suavemente.
Imediatamente a figura do barqueiro apareceu na neblina sem que estivéssemos conscientes da sua presença. Ele cumprimentou Kalisteas e acenou para entrarmos no barco.
— Eles já pensavam que você não vinha, — Kalisteas o repreendeu. — Os meus amigos estavam a começar a ficar nervosos.
O barqueiro olhou para ele; não parecia gostar de receber ordens.
— Com este nevoeiro, até para mim, é difícil navegar, — respondeu ele.
Kalisteas olhou para ele surpreendido.
— Vamos lá, — ele acrescentou sem rodeios. — Levaremos o dobro do tempo para chegar ao nosso destino nestas condições.
O barqueiro, com um joelho na madeira lascada, começou a brandir o seu longo remo de cima para baixo, enquanto nós estávamos sentados à sua frente, tentando decifrar algo naquela manhã quente em que a água parecia uma jangada de azeite e somente o som dos pássaros quebrava o inquebrável silêncio do amanhecer.
Os primeiros raios de sol finalmente começaram a aparecer, penetrando nas nuvens e diminuindo a névoa que começou a deixar-nos ver uma manhã esplêndida naquele vasto pantanal.
A gruta para a qual estávamos a ir, que à distância parecia um simples buraco, também começou a tornar-se mais visível quando nos aproximámos.
— O nível da água não baixou o suficiente! — Gritou Kalisteas, apontando com a mão. — Meia caverna ainda está inundada!
Apenas o topo estava seco. A água alcançou até três quartos da gruta.
— O pergaminho garante que este é o único mês do ano em que o nível da água torna a caverna visível, — respondi.
— No mês passado choveu muito. Portanto, o nível da água está mais alto do que o normal.
— E agora? — O diretor rosnou novamente.
— Toca a nadar, amigo, — Kalisteas anunciou com um sorriso irónico. A situação parecia diverti-lo.
O barqueiro deixou-nos bem à entrada do buraco, então só tivemos que pular para a água e nadar uma curta distância dentro da caverna até chegarmos a uma borda rochosa ao fundo dela.
— Pagaste ao barqueiro? — Perguntou o grego quando chegamos à costa.
— Não tivemos tempo. Pulámos rapidamente para a água.
Kalisteas abanou a cabeça várias vezes.
— Pagaremos no regresso — respondi.
— Ele esperava o pagamento agora. Quem garante que voltaremos? — Ele acrescentou com raiva e começou a caminhar em direção a um pequeno túnel à sua esquerda.
— Porque é que ele está furioso? — O professor sussurrou ao meu ouvido alguns metros depois, quando o grego se afastou um pouco.
— Dá azar não pagar a portagem — respondi, virando a cabeça. — Os gregos são muito supersticiosos.
Kalisteas levou-nos por um corredor estreito que serpenteava da esquerda para a direita quando começámos a descer e o calor ficou ainda mais sufocante. Chegámos a uma encruzilhada onde dois túneis bloqueavam o caminho e uma pequena cavidade continuava a descer.
— Guiei-vos até onde sei, — disse Kalisteas em voz baixa. — Agora é a vossa vez.
Analisamos cuidadosamente aquela encruzilhada, até que o professor reconheceu umas inscrições gravadas no fundo da rocha num dos túneis e virou-se para nós com um sorriso triunfante no rosto.
— É esta a marca que procuramos, — anunciou. — Não tenho dúvidas.
Continuámos por uma passagem estreita, iluminando com lâmpadas de querosene enquanto ouvíamos o bater de morcegos atrás de nós, até que o caminho parou de repente.
Depois de iluminar trezentos e sessenta graus, vimos como à nossa esquerda havia uma abertura estreita pela qual quase ninguém podia passar.
— A entrada secreta, — anunciou o professor.
Kalisteas curvou-se e entrou na passagem, enquanto o seguíamos.
O túnel continuava em linha reta enquanto nós rastejávamos agachados para que as cabeças não tocassem no teto. As nossas pernas começaram a ficar dormentes até que finalmente chegamos ao pé de uma escada de pedra em espiral, que descemos cuidadosamente.
Ao chegar ao fundo, o professor estava ofegante.
— Estás bem?
— Claro. Não te preocupes comigo. Sou um velho viciado em livros e não estou acostumado a fazer esforços, mas não vou desistir.
Kalisteas finalmente sorriu, parecia ver um espírito aventureiro no professor curvado.
— Acho que chegamos ao fim do nosso caminho, — anunciou o grego enquanto apontava para a frente.
Diante dos nossos olhos havia uma lagoa escura subterrânea que impedia a nossa passagem. Quando nos aproximámos da costa, havia um pequeno altar que parecia pouco visível da nossa posição no fim da gruta.
— Só há duas opções, — exclamei, virando-me para os meus companheiros. — Atravessar a lagoa ou voltar e tentar outro túnel.
— Há algo nesta caverna que não me agrada — disse o professor. — Há muito silêncio.
Começamos a inspecionar a costa, era apenas um pedacinho de terra, cercado por um imenso muro de pedra com cerca de dez metros de altura que atravessava a lagoa da esquerda para a direita.
— A outra margem não parece tão longe, — disse Kalisteas. — Sou um bom nadador. Acho que poderia atravessar sem nenhum problema.
— Não há vestígios de presença humana nesta caverna. É como se ninguém tivesse aqui estado há centenas de anos — acrescentou o professor.
Nós dois o encaramos como se ele tivesse lido os nossos pensamentos. O grego começou a tirar a roupa e preparou-se para entrar na água.
— Tens a certeza que consegues nadar até lá?
Ele sorriu com um aceno de cabeça.
Ele entrou na água e começou a remar enquanto tremia e a névoa saía-lhe pela boca. Ele estava a nadar há pouco tempo quando ouvimos um respingo na água e uma pequena onda se formou a poucos metros de onde ele estava.
— Olha para aquilo, — disse o professor.
— Nada até à costa o mais rápido que puderes! — Gritei para ele instantaneamente. — Há algo na água!
Kalisteas olhou para a esquerda e viu-o aproximar-se a alta velocidade.
— Ilumine para ali, professor! — Eu disse enquanto tirava o meu revólver da mochila e começava a atirar naquela direção.
O som dos tiros pareceu assustar a criatura do lago e Kalisteas conseguiu alcançar a costa são e salvo.
— Agora já sabemos porque é que ninguém atravessa esta lagoa há anos, — disse o grego, tentando secar-se e voltar a vestir-se.
— E agora? — Observou o professor.
— Não faço a mínima ideia — respondi, olhando para aquela caverna sinistra mais uma vez.
Passámos algum tempo a examinar cada canto tentando encontrar uma solução. A princípio, pensámos que a melhor ideia era regressar e voltar noutro dia com o equipamento certo, mas estávamos longe da cidade mais próxima e a entrada da caverna ficaria submersa novamente em alguns dias, por isso teríamos que esperar um ano inteiro para tentar novamente.
Exaustos, sentámo-nos num conjunto de pedras na beira da água. Apesar da escuridão, as tochas que tínhamos colocado na costa refletiam-se nas águas da lagoa, desenhando um céu estrelado sobre a abóbada da caverna.
Foi essa visão que me fez lembrar de quando, há anos atrás, me levantei antes do amanhecer para empreender a árdua subida dos picos alpinos durante as minhas férias na Suíça.
— Quanta corda trouxeste? — Perguntei a Kalisteas, levantando-me do assento como uma mola.
— A quantidade que pediste. Tem vários metros.
— Vês a parede que atravessa a gruta da esquerda para a direita? — Eu falei, apontando para ela — Começa nesta ponta e vai dar ao pequeno altar. Se eu conseguir passar, não preciso molhar um dedo.
— Enlouqueceste? — O professor repreendeu-me como se estivesse a ensinar na sua sala de aula em Oxford.
— Eu consigo atravessar aquela parede de uma ponta à outra. — Vejam — apontei — a humidade formou inúmeras cavidades na rocha. Pode ser escalada sem grandes problemas. Só espero ter metros de corda suficientes.
— É muito arriscado — acrescentou Kalisteas. Foi a primeira vez que notei o medo nos seus olhos.
— Não vim até aqui para dar meia-volta quando estamos prestes a fazer a maior descoberta da história — respondi com raiva.
Ambos olharam para baixo e não abriram a boca.
Preparamos todo o equipamento necessário e, após pensar pela última vez, iniciei a subida. O primeiro trecho era fácil, a altura não era excessiva, podia ficar uns seis metros acima do nível da lagoa, alto o suficiente para que nada me pudesse atacar da água.
Eu cravava pregos na rocha enquanto amarrava a corda neles e passava ao redor da cintura para evitar qualquer queda. Avancei assim ao longo da parede em direção à outra margem, dando um passo atrás do outro com muito cuidado, aproveitando os buracos naturais que a humidade formou ao longo dos anos.
Quando cheguei à mediação, começava a sentir-me exausto. Olhei para baixo uma vez e pensei ter visto a água a agitar-se suavemente no centro da lagoa.
Depois de quase meia hora eu estava exausto, embora a proximidade do altar me desse forças para continuar. O maior incómodo veio um momento depois, porque a corda estourou quando faltavam apenas alguns metros para chegar à outra margem e já conseguia distinguir aquela relíquia com total clareza.
— O que foi, amigo? — Kalisteas gritou enquanto me via levantar.
— A corda acabou! — Respondi, voltando-me para a sua posição.
— Devias ter pagado ao barqueiro, — ele rosnou com raiva. — Voltas a tentar para o ano.
Fingi não ouvir e soltei o resto da corda que ainda me restava até à beira da água. Deslizei suavemente sobre ela até que introduzi silenciosamente o meu corpo e o líquido frio atingiu o meu pescoço. Não havia como voltar atrás, comecei a nadar em direção à costa com todas as minhas forças.
A distância era curta, mas cheguei exausto pelo esforço de escalar. Quando pisei na margem, virei-me quando ouvi um rangido atrás de mim e, sem pensar duas vezes, tirei o revólver e esvaziei o carregador sem ver do que se tratava. Só pude observar algumas ondulações na água que se afastaram novamente na direção oposta.
Recuperei a calma e finalmente consegui chegar ao pequeno altar que estava localizado sobre uma rocha composta por uma lápide no meio de um cubículo e em cuja pedra havia sido entalhada uma procissão de carpideiras.
Debaixo delas havia um túmulo onde havia algumas letras que mal podiam ser lidas, desgastadas pela humidade e o passar do tempo. Passei a minha mão sobre elas e tive uma sensação que hoje ainda não consigo descrever em palavras.
Fiquei paralisado a olhar para elas por alguns momentos, até que um som alto começou a zumbir nos meus ouvidos, sem saber de onde vinha. Olhei para a lagoa e não vi nada fora do comum.
— Tens que voltar rápido! — Kalisteas começou a gritar com toda a força.
— Agora não, amigo! Finalmente encontrei! — Eu respondi.
— Esquece isso se não queres que seja a última coisa que fazes na vida! Está a formar-se uma tempestade sobre a lagoa e em alguns minutos a caverna será completamente inundada com água!
Estas palavras apunhalaram-me no coração.
— Tudo bem! — Respondi com resignação. — Só há uma opção para voltar com vocês!
— Estou a ouvir!
— Atira pedra para a água para atrair a atenção do nosso amigo! Assim que o vires aproximar-se, faz-me sinal com a tocha!
— Entendido!
Kalisteas balançou a tocha de um lado para o outro, momentos depois. Naquele momento entrei na água e comecei a nadar até à corda, agarrei-a com as duas mãos e comecei a pulsar o mais rápido que pude. Quando cheguei ao primeiro prego, enrolei a corda em volta da cintura novamente e fiz todo o caminho até a outra margem como um cavalo a cavalgar ao vento.
A tempestade não parava de trovejar lá fora com mais força, quando cheguei à outra margem as minhas mãos estavam ensanguentadas pelo grande esforço que havia feito.
O grego conduziu-nos à pressa pelos túneis até chegarmos à cavidade de entrada, onde a água havia subido quase até à altura do teto. Nadámos rapidamente para o lago enquanto as nossas cabeças mal saíam da água.
Já podíamos ver a saída quando a caverna ficou completamente alagada, respirámos fundo e tivemos que mergulhar no trecho final até que finalmente imergimos no lago à mesma altura onde o barqueiro nos esperava.
A viagem de volta teve um gosto agridoce. Havíamos feito a maior descoberta da história, mas não tínhamos nenhuma evidência que o confirmasse. E o pior de tudo, teríamos que esperar um ano inteiro para tentar novamente.
Capítulo I
Londres, 1922
Estava a caminho do Museu Britânico num táxi que apanhara na esquina da White Hurtline e já estava atrasado para a exposição que acontecia naquela noite na sua sala principal. Todos os editores dos jornais mais importantes da cidade foram fazer a cobertura das notícias do ano. Pela primeira vez, a descoberta arqueológica mais aclamada dos últimos anos podia ser vista em Londres. Nenhum jornalista que se preze poderia perder o evento.
Quando chegámos a Piccadilly Circus, deparamo-nos com um monumental engarrafamento que bloqueou o nosso caminho e, por dez minutos, mal avançámos vinte metros.
Se me atrasasse, poderia considerar-me despedido.
— Quanto lhe devo? — Perguntei ao motorista.
— Uma libra e dez, — respondeu ele, virando-se para mim.
Paguei a conta e saí do veículo.
Atravessei a Trafalgar Square debaixo de chuva fraca e subi apressadamente várias ruas adjacentes até chegar a Great Russell.
A expectativa era ainda maior do que ele havia imaginado. Cem fotógrafos, polícias e uma multidão de curiosos lotaram o portão de entrada do Museu Britânico. Apesar das suas enormes dimensões, parecia pequeno demais para a ocasião.
Os Rolls-Royces e os Duesenbergs não paravam de chegar à sua porta. Ele não se lembrava de haver tanto barulho desde que Valentino apareceu no Albert Hall alguns anos antes.
Duas grandes fontes de luz faziam brilhar as imponentes colunas dóricas da sua fachada, e a deusa Atenas parecia ganhar vida no frontão.
O prédio brilhou naquela noite como se fosse a mais bela joia do Neoclássico.
Fui ao controle de acesso, apresentei o meu crachá da imprensa e, após uma busca minuciosa, deixaram-me passar. Durante o dia, eles tentaram infiltrar-se com alguma autorização falsa. Subi as escadas e parei no local designado para o meu jornal.
— Ei, Paul! Estás todo encharcado! — Exclamou Tom, o correspondente do Northen Star.
— Era impossível chegar cá de táxi e esqueci-me do guarda-chuva em casa, — respondi com resignação. — Chegou algum figurão?
— Só o presidente da câmara. Mas isso já não é novidade — respondeu ele sorrindo.
Um grande murmúrio foi ouvido ao fundo e as pessoas começaram a se aglomerar na entrada principal.
— Acho que vem aí o nosso homem, — anunciou Tom enquanto recarregava a câmara fotográfica.
Não tivemos que esperar muito, alguns momentos depois o Aston Martin descapotável que carregava o protagonista do dia parou próximo à escada.
Uma chuva de flashes imortalizou o momento enquanto as pessoas gritavam o seu nome e o homem mais procurado do planeta saía do carro. Howard Carter, acompanhado da sua bela e elegante parceira, atravessou o tapete azul-marinho que havia sido instalado para a ocasião, acenando da esquerda para a direita como se fossem duas estrelas do cinema mudo.
— Sr. Carter! Sr. Carter! — Todos os correspondentes gritaram em uníssono.
— Algumas palavras para o Daily Telegraph! — exclamei quando ele se aproximou da minha posição.
Howard Carter parou à minha frente e eu baixei a câmara e tirei o caderno do meu casaco.
— Diga-nos, Sr. Carter, qual foi a coisa mais difícil sobre a descoberta?
— O mais difícil foi encontrar o túmulo, — brincou. Todos os presentes riram alto.
— Agora a sério, — acrescentou ele. — A parte mais difícil foi manter constância suficiente durante anos de intensa busca.
— Obrigado, Sr. Carter.
Carter e a sua companheira subiram as escadas onde o diretor do Museu Britânico os esperava com o primeiro-ministro e outras autoridades para apertarem as mãos.
Durante a visita, ele explicou a todos os presentes como descobriu o quarto que abrigava o túmulo de Tutankhamon. Eles puderam admirar fotografias e réplicas da descoberta, pois as peças originais ainda estavam no Egipto.
Mais tarde, as autoridades e o próprio Carter foram a um coquetel preparado em sua homenagem num dos restaurantes mais famosos da cidade. Enquanto isso, pudemos conferir mais de perto a incrível descoberta que ele fez. Todos os objetos da câmara mortuária estavam em perfeitas condições. Foi um verdadeiro milagre que os ladrões de túmulos não profanassem um tesouro tão incrível durante séculos.
Naquela noite, voltei à redação para preparar a matéria que seria a primeira página de todos os jornais da cidade. Procurei dar um toque pessoal para que diferisse das crónicas dos meus colegas de profissão.
Na manhã seguinte, voltei cedo ao jornal, que era um prédio modernista de cinco andares construído no início do século. Subi a sua ampla escadaria até ao segundo andar e encontrei a mesma rotina que respirava diariamente. Um movimento incessante de pessoas que entravam e saíam dos escritórios com algumas novidades para contar.
Atravessei o corredor em meio ao barulho ensurdecedor das máquinas de escrever, o som dos telefones a tocar sem parar, os gritos contínuos dos correspondentes e um cheiro forte de tabaco que tornava o ambiente irrespirável.
Abri a porta e entrei na sala do diretor, um escocês de sessenta anos de nariz comprido, costelas grossas e rosto magro. Ele reuniu vários editores em quem confiava naquela manhã.
— Entra e fecha a porta, — disse ele mal-humorado —. Como fui proibido de fumar, não suporto esse cheiro.
— É para já, senhor, — disse Sarah, a editora-chefe.
Naquele dia ela abusou do seu perfume francês e não deixou ninguém indiferente.
— Temos muito trabalho a fazer esta manhã. As vendas de domingo caíram de forma alarmante nos últimos dois meses, — disse ele, batendo na mesa. — Se continuarmos assim, o jornal vai à falência. Precisamos de algo novo que coloque o Daily Telegraph na vanguarda desta cidade.
— Poderíamos acrescentar um relato policial, — comentou um recém-chegado da competição.
— Muito banal, — disse ele, colocando os braços na cintura. — Já tentaram noutros jornais e foi um fracasso. Todos os escritores desta geração consideram-se uns Conan Doyle.
Um jovem correspondente que havia começado a trabalhar na semana anterior tirou o seu cachimbo, colocou tabaco nele e riscou um fósforo. O escocês foi até ele e tirou-lhe o cachimbo da boca.
— Não me ouviste antes?
O rapaz ficou pálido e todos nós contemos o riso. Ele não sabia com quem estava a brincar.
— Mais alguma ideia? — Rosnou.
— Talvez um manual de bricolage ou jardinagem, — acrescentou Sarah.
— Toda a gente neste país entende de jardinagem, — respondeu ele com um gesto de desprezo. — Se só pensam dizer coisas estúpidas, é melhor ficarem calados, — ele acrescentou com um olhar ameaçador. — Precisamos de algo inovador.
Todos nós ficámos em silêncio por alguns minutos sem saber o que dizer. Fui até à cafeteira e servi-me de uma caneca cheia. Tinha uma ideia a assombrar-me desde a noite anterior, mas não sabia se deveria compartilhá-la.
— Acho que tenho algo interessante, — anunciei enquanto largava o café na mesa.
— Estou a ouvir.
— A descoberta de Carter no Egipto pode ser uma mina de ouro. Fez com que as pessoas se esquecessem dos desastres da guerra.
— Onde queres chegar?
— As pessoas continuam a ter um desejo insaciável pelas histórias dos nossos grandes exploradores.
— Essas expedições podem ser encontradas em qualquer biblioteca pública.
— É verdade. Mas podemos surpreendê-los com uma história menos conhecida. Existem milhares de histórias interessantes à espera para serem publicadas.
— Não sei se vai funcionar, —respondeu ele duvidoso. — E onde pensas consegui-las?
— Podemos começar pela biblioteca do Museu Britânico.
Ele ficou em silêncio por alguns momentos, cabisbaixo e acrescentou:
— Se ninguém tiver uma ideia melhor, tentaremos por alguns dias.
A reunião deu-se por encerrada. Saímos do escritório e continuámos com o nosso trabalho diário.
Quando acordei, a janela estava coberta por um manto branco. Nevara após um ano e as ruas estavam cheias de crianças que não paravam de jogar bolas de neve. No caminho para o Museu Britânico, vi como um casal de transeuntes escorregou desamparadamente; o gelo tornou várias ruas intransitáveis e alguns trabalhadores começaram a adicionar sal para evitar males maiores.
Apesar disso, a biblioteca do Museu estava lotada como sempre, pelas suas portas entrava e saía uma enxurrada incessante de gente: estudantes, leitores, turistas e pesquisadores que passavam horas dentro das suas paredes.
Subi as escadas, tomando cuidado para não escorregar, atravessei o corredor e cheguei ao átrio: uma grande sala de leitura circular com espaço para mais de mil pessoas. Ali estavam os volumes mais antigos da Inglaterra.
Tive que ficar na fila da receção até que uma bibliotecária de cabelos louros e fato azul-marinho me mostrasse onde poderia começar a procurar.
— Temos três tipos de inventários — explicou ela, erguendo os seus preciosos olhos acima de uns minúsculos óculos redondos — :topográficos, cronológicos e por assunto.
— Estou à procura dos diários de exploração dos últimos cinquenta anos.
A funcionária suspirou.
— Inicie a sua pesquisa por «Assuntos». Depois pode fazer um estudo cartográfico e, por fim, expandi-lo cronologicamente.
— Isso significa que posso encontrar informações em todos os três inventários?
Ela assentiu com um meio sorriso.
Ouvindo isto, cobri o rosto com as mãos.
Fui ao segundo andar e, após passar por vários corredores cheios de estantes, encontrei uma secção com vários manuscritos.
Pedi a documentação ao responsável e este foi depositando sobre a mesa uma montanha de arquivos que ultrapassava a minha altura.
— É tudo por hoje? — Perguntou.
— Espero que sim, — respondi resignado.
— Se não terminar, temos prateleiras na receção onde os investigadores guardam as informações para o dia seguinte.
— Muito obrigado. Foi muito gentil.
Liguei o pequeno candeeiro verde que cada mesa tem e abri a primeira pasta, como faria nos dias seguintes.
Depois de alguns dias de pesquisa, comecei a arrepender-me da minha proposta, aquele assunto não ia ser nada fácil. As informações eram infinitas, levaria anos para estudá-las em detalhes. Encontrei desde exploradores que descobriram os lugares mais remotos da África e da Ásia, até arqueólogos que desenterraram o legado histórico do Oriente.
A meio da manhã, enquanto folheava algumas páginas, vi como um tipo não parava de olhar para mim algumas mesas à frente. Não sabia se o conhecia de algum lugar ou se ele estava à minha procura por algum motivo. Procurei lembrar-me e não devia dinheiro a ninguém. Um momento depois, olhei novamente e ele já não estava mais lá.
Depois do almoço, vasculhei as estantes da Biblioteca. Senti-me verdadeiramente privilegiado enquanto corria os meus dedos por aqueles volumes com tantos séculos de história: o diário pessoal de Stanley na sua odisseia pela África para encontrar as nascentes do Nilo e o seu subsequente encontro com Livingstone. As dificuldades pelas quais os exploradores árticos liderados por Shackelton passaram quando o seu navio ficou preso no gelo por meses e eles quase perderam a vida; a corrida para conquistar o Polo Sul entre Amundsen e Scott, na qual ele tragicamente acabou a perder a sua vida e as várias descobertas arqueológicas dos nossos mais aclamados exploradores.
Esta investigação não me levava a lado nenhum e eu precisava mudar isso.
— Com licença, menina, você disse-me que além da documentação escrita também é possível consultar os mapas.
— Não temos apenas mapas, também temos jornais e fotografias.
O meu rosto empalideceu como no primeiro dia; esta rapariga era uma fonte inesgotável de boas notícias.
Desta vez, tive que descer para o porão. Lá, estudei diversos mapas e jornais do século XIX. Embora as suas leituras fossem interessantes, a maior parte das informações já era conhecida do público em geral. O meu trabalho era descobrir algo novo e em quatro dias eu havia encontrado apenas algumas histórias que valessem a pena descrever.
Estava absorto em jornais que ainda cheiravam fortemente a tinta quando taparam os meus olhos e a tinta deu lugar a um perfume agradável.
— Adriana! — Exclamei não convencido.
— Agora és bruxo ou quê? — Ela perguntou, sorrindo.
Adriana era uma siciliana de olhos verdes intensos, sorriso fácil e a melhor dançarina que já conheci. Emigrara com os pais quando era criança.
— O que te traz cá? — Ela perguntou, sentando-se à minha frente.
— Sabes como é. No jornal, um dia estás no Parlamento e no outro à procura de informações numa biblioteca.
— Que inveja. Passo o dia todo no cabeleireiro.
Balancei a cabeça com um sorriso.
— Vais ao salão este sábado?
— Claro. Estou muito contente com a minha professora.
— Conheço-a?
— Agora que penso nisso, ela parece-se muito contigo.
Ela riu e da mesa ao lado começaram a olhar para nós.
— Vou deixar-te trabalhar. Esta noite vou ver o último filme da Gloria Swanson, alinhas?
— Impossível. Estou cheio de trabalho. Vemo-nos no sábado.
Ela deu-me um beijo na bochecha e foi embora a sorrir.
Depois de um tempo, descobri entre as prateleiras o tipo que me observava três dias antes. Sem pensar duas vezes, levantei-me e fui pedir-lhe uma explicação, mas quando cheguei não havia ninguém lá. Passei por alguns corredores e não o encontrei, parecia que a terra o havia engolido; isto começava a cheirar mal.
Rumores chegaram até mim na sexta-feira de que o meu chefe não estava satisfeito com o meu trabalho. Repeti ad nauseam que ele precisava de mais ajudantes de pesquisa, mas ele não levou o meu conselho a sério.
Todo o trabalho recaiu sobre mim. O mais frustrante é que, se a publicação fosse um sucesso, todo o crédito iria para o jornal e o seu editor. Para mim, haveria apenas uma pequena resenha no final de cada artigo com o nome impresso, mas se fosse um fracasso o único culpado seria eu.
Após uma semana de investigação, o Sr. Dillan mandou chamar-me. Quando cheguei à sua porta, notei que as vidraças do seu escritório haviam sido alteradas e o seu nome podia ser lido numa enorme placa.
— O que me trazes hoje? — Ele perguntou cético. Eu sabia pelos meus colegas que não havia encontrado nada de novo. — Encontraste algo que possa ser publicado?
Tirei a gabardina e o chapéu e coloquei no cabide ao lado do porta-guarda-chuvas. De seguida, sentei-me numa cadeira de carvalho gasta.
— Tenho algumas histórias de exploradores africanos que descobriram pequenos rios na costa oeste.
O escocês abanou a cabeça repetidamente.
Foi até ao rádio e desligou um discurso enfadonho do primeiro-ministro.
— Adicionando um pouco de aventura e embelezando um pouco o artigo, poderíamos publicá-lo.
— E só me trazes isso depois de uma semana? — Ele respondeu, olhando para mim. — Não foste ao pub com aquela morena?
Abanei a cabeça.
— Passo o dia todo a trabalhar no museu, — respondi. — A italiana é uma boa amiga que me ensina a dançar charleston.
— Aquela dança americana descarada?
— É divertido, — eu disse, sorrindo. — Deveria experimentar.