Buch lesen: «Se o mundo é redondo e outros poemas»
© Editora Gato-Bravo 2020
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editor Marcel Lopes
coordenação editorial Paula Cajaty
revisão e prefácio António Carlos Cortez
projeto gráfico 54 design
impressão Europress
Título
Se o mundo é redondo e outros poemas
Autor Paulo Scott
Capa Paul Blenkhorn at Unsplash
isbn 978-989-8938-73-2
e-isbn 978-989-8938-74-9
1a edição: Junho, 2020
Depósito legal 470734/20
gato·bravo
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Sumário
SEM ELOQUÊNCIA, MAS COM CLARIDADE
LIVRO UM
Se o mundo é redondo
Repetição
Nunca mais
Sambaqui
1972
Enseada açorianos
1979
Centro-arderá
Desconto mariano
Como vai?
Ariel
Telescópio
Retráteis
Dezembro em brasil
Revistas no escuro
Tela capturada
Jardim Botânico, Rio de Janeiro, Brasil
Kilburn, London, UK
Talvez numa carta
Bondade
Advérbios de pequeno corpo
A garota medalha
Gentilmente
Exaustão sete
Arpoador, Rio de Janeiro, Brasil
Lã de vidro
Títulos protestados
QWERT
Látex
Roteiro
Água parada
Campo de força que te observa
Cadeados
Treze
Treze pares de meias
Certo amigo
Entenda
Papel suave
LIVRO DOIS
Skate
Adultos treinando
Em você
Piscina, três da manhã
Luz
Regina e seu homem comum
Algo de Soares
Ressarcimento
Dedinho-fã
Nokia Pan
Ipiranga com Erico Verissimo
Pedras
Odor de filhos brancos
O viaduto
Eles moram na perdição
Arredores limpinhos
Notas à edição
SEM ELOQUÊNCIA, MAS COM CLARIDADE
(aspectos da poesia de Paulo Scott)
Na poesia brasileira mais recente – e o recente aqui é, por comodidade cronológica o que nos reenvia ao início dos anos 2000 – Paulo Scott é das vozes mais originais. Essa originalidade não tem que ver com qualquer projecto realista e urbano da poesia, não se prende com qualquer veio emocional, em que a dicção pedisse um retorno das injunções à Drummond de Andrade sobre amar que se aprende amando, tão-pouco é Paulo Scott devedor de qualquer magistério concretista, ou proveniente da poesia da geração Mimeógrafo. Creio que a sua originalidade se destaca por três aspectos que, reunidos, são raros na poesia. Primeiro: o equilíbrio entre contenção formal (os poemas de Scott, com excepções) e a vontade de mostrar a realidade circundante, mas sem fazer do texto o espaço onde torrencialmente se diz tudo. Segundo: o efeito da reiteração, seja de frases ou de palavras, ou situações em cena na página. Terceiro: o cruzamento de áreas linguísticas muito distantes.
De facto, os poemas do autor de Garopaba Monstro Tubarão não são narrativas longas, como nos habituaram tantos poetas destes últimos vinte anos (de Marília Garcia a Bruna Beber é todo um terreno percorrido por vários epígonos de epígonos da senda hiper-realista que Carlito Azevedo lançou nos anos 1990) e nem querem ser textos para visualismos e jogos tipográficos onde uma fala reduzida ao desenho se revelasse novo trilho a explorar. Paulo Scott privilegia outras razões poéticas. Há a tendência para seduzir o leitor pelos efeitos subtis de repetições que dão certa cadência ao verso, à frase, como se, lendo, o leitor tivesse de parar em certos lugares da sintaxe e fosse obrigado a colocar um outro tom para dizer a intenção que subjaz ao poema. É o caso, creio, do poema «Repetição» (hélas!) onde o motivo banal (mas disruptivo) da libertação de Nelson Mandela, serve para construir todo um universo que, podendo apresentar o eu em cúmplice partilha familiar, coloca a atenção da leitura nesse verso que se repete («no dia em nelson mandela é solto») para vincar que tudo na realidade se repete.
A repetição serve, portanto, como outros poemas podem comprovar, um propósito retórico não despiciendo: dar a quem lê a hipótese de parar em certas imagens ou, de uma imagem, repetir o gesto da leitura (em top-down ou bottom-up), detendo-se naquilo que mais sensível nos puder parecer. Sinal de extrema atenção ao poema e sua feitura é, como inicialmente disse, a aliança entre universos semânticos, lexemas que pertencem a territórios de sentido que não julgaríamos possível ver reunidos. São muitos os exemplos, mas chamo a atenção para um poema que diz assim:
1
pela íris macerada
o inverno que se entrega
a savana onde
reconheço o mecanismo
da deserção
enquanto anônimo pela janela
o mesmo cio
2
minhas as mãos repetentes
na esperança-miragem
de tudo que pôde alegria –
passo a ferro
o terno do novo erro
sedento testemunho
um rio
3
dúzias de bolas de golfe
espalhadas sobre o parque de pano
no quarto onde gasto os dias
tentando acertar o falso buraco
no falso gramado – e
dentro desta vida que é certa
o frio
Só um poeta muito seguro do poder autêntico da criação poética pode, através do «demónio da analogia» misturar, num ritmo elíptico muito trabalhado, com suspensões de nexos lógicos, ou mesmo supressões desses nexos na cadeia da frase, palavras e imagens díspares para criar um terceiro plano de realidade. Se a numeração serve para delimitar os momentos em que, pela escrita, se fixaram determinados flashes vindos do exterior, certas impressões que, vistas ou ficcionadas, fecundam uma realidade nova que é o poema, note-se como a voz que fala, fala acumulando visões (o inverno, visto pela «íris macerada»; os versos onde não há ligação lógica «enquanto anônimo pela janela / o mesmo cio» - resultado da deserção?) e acumulando, sobretudo, certas evidências que a linguagem transformará. A alusão a um cenário doméstico onde, enclausurado, o poeta-tigre joga os dados, não da literatura, mas da vida, isso mesmo justifica o lance dos dados: apontar a bola de golfe ao «falso buraco /no falso gramado – e / dentro desta vida que é certa / o frio.» Ou seja: a partir de uma cena comum (alguém jogando uma bola de golfe para o buraco), constrói-se como que uma legenda, ou uma lição: não acertar é o mais certo de acontecer; como a vida, joga-se errando; o frio da vida é o buraco em que, frequentemente, todos acertamos.