Se o mundo é redondo e outros poemas

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Repetição, elipse, sugestão, cadência rítmica, tudo se conjuga nesse texto para regressarmos à tese que o início não revela, o primeiro andamento: é no segundo fragmento que temos a imagem-motivo, o núcleo e a intenção: «passo a ferro / o terno do novo erro / sedento testemunho / um rio». Digo de novo: poesia de repetições propositadas, de mecanismos frásicos extremamente pensados, e uma inusitada capacidade para aludir pela elisão, de jogar o lance de dados, ou a bola de golfe do verso, em campos agrestes onde a agreste vida se revela.

Talvez não seja por acaso que Paulo Scott, lido pela crítica, tem sido visto como fazedor de uma arte onde rigor formal é um outro modo de dizer a intensidade de certas imagens, ou de certos ambientes. Se as paisagens na sua poesia podem ser rizomáticas, a urbe ocupa no seu mundo verbal um lugar cimeiro. Mas esses espaços urbanos (Porto Alegre, Rio de Janeiro, Jardim Botânico, Arpoador) são espaços que o poema não irá descrever na sua literalidade, mas sim lugares que funcionam como enquadramentos onde a poesia mostrará o drama de alguém – com ou sem medalhas de vitória na vida, corrida sem préstimo, no fundo, ou malograda corrida. Essa amostragem do drama, eis o que, num dos mais belos poemas deste livro podemos ler: o cenário montado, posto que seja num restaurante no Rio de Janeiro, é o lugar onde deflagra, em toda a tensão de um desencontro entre amantes em que o amor é costumeiro, uma dicção que narra como quem testemunha, como quem partilhasse a história e, partilhando, chamasse o nosso olhar para pormenores terríveis: o que se diz, se repete, equivocadamente; o quinto copo de cerveja, a lembrança de uma chuva antiga; a coloquial frase «por um tempo as coisas deram muito certo»; e o aparecimento do garçom, símbolo da faca que corte o laço definitivamente; a luz do restaurante que tem de se apagar e que, à claridade, revela o imo do poema – é preciso fechar a história.

Leiamos:

você olha para a pessoa e ela diz as mesmas

coisas equivocadas que disse das outras vezes

e ela já está inebriada pelo quinto copo

de cerveja e segurando firme a sua mão e

falando daquela vez em que chovia sem parar

que por um tempo as coisas deram muito certo

e você diz que ainda torce para ela não estar errada

então o garçom se aproxima e passa a conta

avisa que precisa mesmo fechar o restaurante

a pessoa larga sua mão e diz um sim, pode ser

depois sem eloquência apesar da claridade

Paulo Scott é um artesão de uma palavra que vive entre o claro e o escuro da sua condição. Condição máxima no mínimo que a poesia e a vida podem dar. A figuração do poeta que em Scott se constrói está de acordo com a linguagem que aqui se edifica: não exclamativa, mesmo se com certa injunção ou certa tentação interventiva (há poema que poderiam ser ditos na rua lançando farpas urgentes aos poderes instalados – os da literatura, sobretudo); linguagem que coloca os termos do jogo de dados numa certeza única: ao poeta – como diria Ruy Belo – convém, em «tempo detergente», não pactuar.

«Advérbios de pequeno corpo» é o poema onde a arte poética de Scott se expõe: quem escreve está fora, faz gestos excêntricos, posto que banais, comuns. Lavar as mãos «depois do mictório»; poeta que não se distraia «com o mau estado temporário / [...] / dos azulejos na parede do banheiro». Isto é: o poeta é excêntrico por ter de necessariamente imitar, sem distrações, o que noutros é gesto, ou não-gesto. O que nos outros jamais seria motivo de poesia. O mínimo, o que não é grandiloquente: o poeta feito pedra e que, como pedra, aguarda na mesa da vida (o restaurante, de novo) que os demais joguem a solidão acompanhada em que existem. O poeta, depois, fixará essa solidão. Mas, nota final, a repetição da imagem: a clássica pedra – não sei se de Drummond, ou a pedra laminada de João Cabral, labor até ao limite – em que o poeta se vê ou é visto. Leia-se, pois, o poema:

espera-se do poeta que lave as mãos

antes e depois de utilizar o mictório

e não se distraia com o mau estado temporário

(ou mesmo a má formação) dos azulejos

na parede do banheiro quando houver

azulejos na parede do banheiro e alguém

aguardando à mesa

espera-se do poeta que seja pedra

e, sendo pedra, aguarde à mesa até que outros

cansem desse jogo de equipes que é a solidão

até que (sendo invariavelmente pedra)

seja pedra de verdade e algum mais desavisado

venha limpá-lo com água, desinfetante e esfregão

Observador, alguém silencioso, a gaguez produtiva de Paulo Scott, poeta discreto (inteligente, sem mais – que assim é o sentido primeiro dessa ‘discrição’), é bem essa poesia sem eloquência, mas claríssima na luz que emite sobre o real que, como poucas na poesia brasileira que temos lido, nos dá o poema em toda a sua fulguração e simplicidade de animal vivo. E aqui regressaríamos ao início: aos modos como esta poesia se impõe pelos riscos que quer correr, conciliando inconciliáveis.

É lícito um prefácio não dizer mais que aquilo para que foi convocado. Repito, elíptico, a lição sobre a poesia que esta poesia é: pedra, linguagem raciocinada palavra por palavra; escolhendo uma economia de recursos (vejam-se os poemas da segunda secção, breves, epigramáticos, alusivos, dados à adivinhação, fazendo circular as imagens pelo segredo que cada um pode, ao ler, fazer a sós) que nem por isso será menos rica que a arte pobre da grande poesia.

Mas vale, em jeito final de interpretação chamar a atenção para a mancha gráfica dos textos de Scott. É uma última chamada: para todos os efeitos – retóricos, claro - concorre para a imagem de uma poesia discreta, feita de relatos assentes na sugestão e na elisão de elos gramaticais (em muitos poemas é isso que sucede), os títulos postos à direita da página. Serve isso para destacar, a meu ver, ainda que se forma quase subterrânea, oblíqua, uma ideia cara à nossa modernidade: até nas formas de apresentação a poesia é outra coisa. Os títulos de Scott não se erguem para gritar – são imagens para sugerir. É talvez outra forma de ser-se poeta e assumir a condição de pária, ou de poema-pedra atirado contra o mundo redondo, de fachada, que o mundo é. É talvez de outra forma registar a perda como tema maior de Scott [«o que de tudo ficará? literatura? / para que diabos serve a literatura / quando você está feliz e tem amor? / (amar é algo que não se completa)»]. No fundo, no vasto mundo que não se compreenderá jamais, sequer pelo vasto coração que cada um possa ter, Paulo Scott vem dizer-nos que só a poesia, como coisa que não é literatura, é um gesto similar à respiração, ainda que toda a respiração traga o seu afogamento.

—António Carlos Cortez

Lisboa, Março de 2020.

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