Buch lesen: «Storey»

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Keith Dixon nasceu no Yorkshire e foi criado nas Midlands. Escreve desde os treze anos, cultivando vários géneros: thriller, espionagem, ficção científica, literário. É autor de sete romances da coleção Investigações de Sam Dyke e doutras duas obras fora da área do crime, bem como de duas coletâneas de publicações em blogues sobre o ofício da escrita.

Quando não está a escrever entretém-se a ler, a aprender a tocar guitarra, a ver filmes e a devorar séries televisivas. Hoje em dia passa mais tempo em França do que provavelmente seria bom para ele.

Saiba mais, seguindo-o no Twitter @keithyd6, lendo o seu blogue em cwconfidential.blogspot.com ou ligando-se a ele em facebook.com/SamDykeInvestigations/

E do seu portal na web pode descarregar alguns livros gratuitos e saber mais acerca dos outros: keithdixonnovels.com

STOREY

Um romance criminal

KEITH DIXON

Tradução de

J. Freitas e Silva


Semiologic Ltd

Copyright Keith Dixon 2016

Copyrighy da tradução portuguesa: J. Freitas e Silva 2017

Publicado pela primeira vez por Semiologic Ltd

Keith Dixon reivindica o seu direito, ao abrigo da Copyright, Designs and Patents Act, 1988, a ser identificado como autor desta obra.

Todos os direitos reservados

Este livro não pode ser reproduzido, no todo ou em parte, por mimeografia, fotocópia ou quaisquer outros meios, eletrónicos ou físicos sem autorização expressa, por escrito, do autor.

Qualquer semelhança com qualquer pessoa viva ou morta é pura coincidência

Para informações, contactar: keith@keithdixonnovels.com

Imagem da capa © David Holt sob Creative Commons License

Design de Keith Dixon

Adira ao Grupo de Leitores em www.keithdixonnovels.com ou ao Blogue em www.cwconfidential.blogspot.com para obter gratuitamente os dois primeiros livros da coleção Investigações de Sam Dyke!

Para Elmore

Il miglior fabbro

CAPÍTULO UM

A terceira vez que Paul Storey a viu era aquilo de que depois se lembraria, quando tudo correu mal.

Não olhara para ele nem lhe dissera nada, pelo menos de início. Mas sabia que tinha reparado nele quando transpôs a porta. Mesmo numa sala cheia de gente, havia algo na maneira como o ignorou – uma tomada de consciência estudada.

Perguntou a si mesmo se devia ir ter com ela, apresentar-se de modo informal, sentar-se à sua frente numa das mesas quadradas pretas e iniciar uma conversa. Vem cá todos os dias, não vem?... Não, era demasiado óbvio. Não produzia o efeito que pretendia. Talvez não devesse dizer nada, limitando-se a puxar uma cadeira, desdobrar um jornal, acenar-lhe com a cabeça e fazer as palavras cruzadas.

Talvez pensasse, então, que andava a persegui-la. Coisa que não era verdade. Era uma mulher atraente e ele acabava de reparar nela…

Entrava todas as manhãs à mesma hora no Starbucks, pouco antes do almoço. Roupa diferente todos os dias, mas com classe, de bom corte, saia abaixo dos joelhos, blusa justa no peito. Como uma mulher de negócios que, apesar de tudo, ainda pretende dar um ar de alguma sensualidade. Trazia uma pequena pasta castanha com fechos dourados. Saltos com alguma altura, mas sem dar um aspeto ordinário. Cabelo louro bem penteado, liso, preso atrás das orelhas… não, duma orelha – a orelha que usava quando estava ao telefone.

Escolhia sempre uma mesa à janela, olhando, através da Broadgate, para lá da estátua de Lady Godiva, em direção ao Wagamama e ao café que fica ao lado. Tinha um computador pequeno em que depenicava e depois parava e olhava pela janela. Mordia o lábio inferior. Bebericava um “Starbucks flat white”. Tinha boa estrutura, testa alta, sobrancelhas arqueadas que pareciam ter sido desenhadas com um lápis, e um toque de cor nas pálpebras. Nariz retilíneo pequeno, mas uns lábios que podiam ser ligeiramente mais carnudos. A pele era imaculada.

Desta vez, só estivera sentada cinco minutos e já estava outra vez de pé, a organizar as suas coisas dentro da carteira – chaves, bolsa, pacote de Kleenex, trocos que recebera do empregado. A meter o computador na pasta. Parecia irritada, nervosa, agora de pé, imóvel, a olhar pela janela para as pessoas que passavam.

Depois, virando-se e olhando diretamente para ele.

Agora, estava a caminhar na sua direção e ele não conseguia mover-se. Estava preso, sentado numa das cadeiras altas, junto da outra janela, perto dum altifalante que tocava Dylan.

Parou a um metro de distância, olhos pretos, loura esbelta de altura mediana, um pouco mais jovem do que ele, rosto um pouco duro.

A dizer: “Se vai ficar a olhar fixamente para mim o dia inteiro, podia, pelo menos, apresentar-se.”

“Estava à espera do momento certo. Não era este.”

“Que quer?”

“Viver um dia de cada vez sem complicações. Obrigado por perguntar.”

“De mim. Que quer de mim?”

Estava a entrar no jogo. Ele gostava disso. Era o que admirava nas mulheres de Londres – tinham pressa. Significava que podia acompanhar o ritmo delas ou abrandar. Nem sempre era ele a marcar o ritmo, tentando avaliar com que rapidez avançar. Era bom encontrar alguém assim na velha terra natal.

“Pergunto a mim mesmo por que razão veio aqui” – disse ele.

“Porque é que não havia de vir?”

“Está em traje de executiva. Está maquilhada. Traz um computadorzinho portátil e um telefone inteligente, senta-se a um canto e age como uma mulher de negócios. Onde é que as pessoas pensam que está quando fala com elas ao telefone? Qual é o endereço do escritório que tem no seu cartão de visita? Não consigo deixar de me interrogar acerca destas coisas.”

“Você é polícia?”

“Pareço um polícia?”

Percorreu-o de alto a baixo com os olhos como se ainda não se tivesse preocupado em olhar para ele.

“Deve ser” – disse ela. “Lá para o extremo mais inferior do espetro.”

“Seguros.”

“Vendas?”

“Perito. A sua casa arde ou tem uma inundação, eu digo quanto é que provavelmente vai receber.”

“Mas você está todos os dias no Starbucks. A observar mulheres estranhas e a assustá-las.”

“Você não está assustada.”

“Não? Como é que sabe? Como é que sabe o que é ir a um local público e descobrir alguém a olhar fixamente para si todos os dias?”

Paul encolheu os ombros. “Não pensava que fosse assim tão óbvio. Pretendia ser furtivo.”

“Eu apenas quero entrar aqui, tomar o meu café e não ser observada. Está bem?”

Estava a perder gás, com a ameaça a desaparecer-lhe dos olhos. Ele tentou situar o seu sotaque – uma vaga cadência escocesa, mais costa leste do que oeste. Era tão ligeiro que perguntou a si mesmo se não se teria dissipado por viver no Sul. Era atraente, fazia com que apetecesse ouvi-la falar para se poder acompanhar os altos e baixos.

Pegava, agora, na pasta e apoiava-se alternadamente numa e na outra perna. Trazia a sua habitual blusa branca por baixo do casaco escuro e ele pensou ver um soutien preto por baixo da blusa. Não tinha, portanto, um ar tão de executiva como isso.

“Como se chama?” – perguntou ela.

“Paul Storey.”

“Com ou sem e?”

“Com. Não há muita gente que faça essa pergunta. Vai procurar-me no Google?”

“Devia ir?”

“Eu não iria. Como é o seu nome?”

“Nem pense. Achava que tinha olhado para mim durante o tempo suficiente para eu lhe conceder um encontro?”

“Passou-me isso pela cabeça.”

“Não vai acontecer.”

“Estou a compreender.” Baixou a voz. “Que se passa? De que é que tem medo?”

“Da vida” – disse ela –, “do universo e de tudo. De muita coisa. E, respondendo à sua primeira pergunta, venho para aqui trabalhar porque o barulho ajuda-me a concentrar-me. No escritório há silêncio a mais.”

“Que faz?”

“Jornalista, pasquim local. Não é que seja da sua conta. Satisfeito?”

“Claro. Porque não haveria de estar?”

Parecia estar prestes a acrescentar qualquer coisa, mas, em vez disso, virou-se e foi-se embora. Observei o seu perfil enquanto empurrava a porta e se dirigia para a esquerda, em direção ao Primark. Com um sorriso aberto, girou a cadeira para se virar para a parede e pegar no café.

A pensar que ela não era jornalista! Vestia-se bem de mais e era mais nervosa do que qualquer jornalista que alguma vez conhecera.

Mas também que não se importava. Afinal, ele também não trabalhava em seguros.

CAPÍTULO DOIS

“Senhor Storey, se quer a minha opinião de profissional, o preço que fixou é de longe demasiado elevado para a casa do seu pai. As habitações na... bem, na sua zona de Coventry deram um grande tombo nos últimos anos. O senhor visa pessoas à procura da primeira casa e o preço que pretende vai desincentivá-las até de a ver por dentro.”

Des-incentivá-las? Meu Deus! “O problema não é meu, pois não? Essa é que é a sua função, vender” – disse.

“Claro…”

“Olhe, baixo cinco por cento se estiverem interessados em fazer negócio.”

“Hoje em dia os compradores são muito mais agressivos. É provável que façam ofertas quinze a vinte por cento abaixo do preço pedido, especialmente na sua zona. A escola local não tem grande reputação e, como sabe, tem sido noticiado um certo número de crimes no último ano. Coisas de pouca importância, coisas pequenas, mas que marcam, por assim dizer.”

“Compreendo o que está a dizer, mas não me importo. Tenho de vender.”

O agente imobiliário chamava-se Jeremy Frost e Paul não gostava dele. Havia muita coisa que lhe desagradava na sua postura. Fingia ser realista ao mesmo tempo que continuava a agir como seu amigo. Talvez fosse assim que trabalhassem atualmente.

Frost estava agora reclinado na sua reluzente cadeira de pele, a descrever o que iam fazer, a alinhar as fotos para serem distribuídas pelos vários parceiros nacionais, a colocar o vídeo no ecrã cíclico da vitrina, e, se quisesse pagar um pouco mais, podiam dar-lhe um espaço especial no portal da web, o que significava uma imagem maior e um aumento garantido de trinta por cento do número de visualizações…

Tratar da venda da casa do pai trouxera à superfície o pior que guardava. Era a casa onde fora criado e agora tinha de a vender. Era como se lhe tivessem pedido que arrancasse um braço e o leiloasse no eBay.

Perguntava Frost: “Tem uma data limite para a venda? Até regressar a Londres?”

“Eu não vou regressar.”

“Ah!, mas pensava…”

“Está preso a mim.” Fez um sorriso aberto. “O seu cliente favorito.”

Frost, devolvendo o sorriso: “Todos os nossos clientes são nossos favoritos.”

“Claro que sim. Mas uns são mais favoritos do que outros, não é? Alguns são tocados pelas vossas mãos mágicas e vendem rapidamente, enquanto outros são deixados a apodrecer. Eu não vou ser um desses, pois não, Jeremy?”

A expressão do agente pareceu congelar e começou a falar da satisfação do cliente, de questionários e dos muitos clientes que se mantinham com eles ao longo de várias vendas…

Paul alheou-se, a pensar: E ele? Que é que vendeu a si mesmo? Sabia que a situação estava a consumi-lo – ir todas as noites para casa, para uma casa vazia que ainda cheirava ao purificador do ambiente que o pai usava. Decidira vender e, depois, procurar outra coisa… um apartamento simpático, talvez perto do centro da cidade, ou uma coisa nos subúrbios mais finos, Styvechale ou Cheylesmore. Até então passaria o mínimo de tempo possível em casa. Tomar o pequeno almoço, sair, voltar à noite e cozinhar alguma coisa para jantar nos tachos e frigideiras que o pai usara durante trinta anos. Depois, ir para a cama, no mesmo quarto onde dormira até sair de casa para ingressar na Faculdade. As recordações… a paz… faziam parte do argumento de venda que criara para si mesmo: era um local temporário para voltar a ambientar-se. Depois de toda a agitação lá do Sul.

“Que tal?” – perguntou Frost.

Paul não ouvira a maior parte, mas não se importava. Os pormenores não eram tão importantes para ele como para Frost. Os compradores ou gostavam do aspeto e do preço da casa ou não gostavam. Ficaria lá o tempo que tivesse de ficar. Certamente não ia voltar a Londres e, em definitivo, não voltaria ao trabalho. Uma vez que se saia da polícia, incendeiam-se as pontes. É virar as costas ao incêndio e procurar nas sombras alguma coisa para ocupar o tempo.

“Faça o que tem a fazer. Venda-a, mas não dada” – disse.

“Nunca faria isso.”

“Eu sei que não, Jeremy. Conto consigo para vender a casa, mas do ponto de vista financeiro não preciso de o fazer. Compreende? Portanto, quero que faça o melhor negócio possível sem afugentar as pessoas. Se não tiver perspetivas nas próximas três semanas, reconsiderarei a questão do agente de que me sirvo. Não quero fazê-lo porque é uma dor de cabeça e não quero envolver-me outra vez nessas conversações bizarras. Venda a casa por um bom preço e ganhe a sua parte. É muito simples. Portanto, não se ponha aí de papo para o ar a ver em que param as modas. Sairei de casa quando quiser trazer cá pessoas para a verem e não interferirei. Mas tem de dar o seu melhor, ambos sabemos disso.” Reparou que Frost empalidecera e perdera a sua petulância. “Não se preocupe” – disse Paul –, “eu não sou mau tipo. Sou apenas um pouco impaciente, de vez em quando. Portanto, ajude-me a resolver isto e tudo correrá bem. De acordo?”

Estava agora em pé, olhando para a cara transtornada de Frost. Pensou que a confusão e o medo que nela via refletiam provavelmente a confusão e o medo que ele próprio tinha, embora nunca o confessasse, nem a si próprio nem a ninguém.

“Já tem os meus números” – disse. “Não tenha medo de os usar.”

Conduziu até casa, passando por ruas que achou mais apinhadas do que se recordava e estacionou à porta de casa do pai. Havia uma garagem nas traseiras, mas era difícil chegar lá e, além disso, estava cheia de coisas que o pai nunca tratara de deitar fora – uma velha máquina de lavar Hotpoint, uma mesa com uma perna partida, uma cadeira de braços. Dissera ao pai que se livrasse de toda aquela bagunça, mas parecia que ele nunca arranjara tempo para isso. Demasiado ocupado no bar ou na horta. A criar coisas que nunca comeu.

Estava a aquecer uma refeição no micro-ondas quando o telefone tocou.

“Milly.”

“Storey. Não telefonas, não escreves…”

“Quando nos morre o pai há coisas a fazer. Socializar não é uma delas.”

“Não tentes fazer com que me sinta culpada. A última vez que me senti culpada dalguma coisa foi em dois mil e quatro, quando derrubei um velhote com um andarilho.”

“Ias a conduzir?”

“A andar demasiado depressa, sem ver por onde ia. Não foi por isso que telefonei.”

“Porque é que telefonaste?”

Ela soltou um suspiro irritante e Paul imaginou-a recostada no seu sofá, no apartamento que alugou ao lado do dele, em Battersea. Estaria de maillot e camisola pretos para treinar as rotinas de dança à frente da televisão, na prateleira por cima da qual se alinhavam os seus troféus reluzentes. Dançava aos fins de semana, com um tipo de Fulham, danças de salão e ensaiava o melhor que podia os seus passos.

Storey era, para ela, um projeto. Houve uma altura em que podiam ter tido alguma coisa, mas ele escolheu mal a oportunidade e deixaram de se falar durante três meses. Depois, reataram, mas numa base diferente. Ele apreciou o facto de ela ainda querer falar com ele, apesar de se ter vindo embora com apenas dois dias de pré-aviso, descarregando em cima dela a responsabilidade de vender a mobília antes que o senhorio a desse. Era hábil – havia de tratar do assunto.

“Ontem à noite apareceu um tipo para falar contigo” – disse ela. “Ouvi-o bater à tua porta e fui lá fora. Disse que trabalhava contigo e queria conversar.”

“Como era ele?”

“Um pouco mais alto do que tu, cabelo cortado à escovinha, lábios grandes, muito vermelho, como se usasse batom ou qualquer coisa parecida.”

“O Rick. Imaginei que ele pudesse aparecer.”

“Obrigado por me teres avisado.”

“Que lhe disseste?”

“Olha, é aqui que esta conversa se torna interessante, sabes? A maioria das vezes sou uma rapariga muito calma, mas, na realidade, neste caso portaste-te mal comigo, Storey. Não preciso de toda a tua história despejada na soleira da minha porta. Tenho a minha própria vida, sabes? Está bem que tenhas tido que ir tratar do funeral, e isso tudo, mas não tinhas de te ir embora, pura e simplesmente. Não quero saber da tua tensão, nem quero saber do teu trabalho. Não quero saber das tuas estantes. Não tens o direito de despejar isso tudo em cima de mim e depois pirares-te para as Midlands.”

“De acordo. Fiz mal. Então, que disseste ao Rick?”

Agora, imaginava-a a olhar para o teto, tentando lembrar-se do que o seu conselheiro lhe dissera acerca de se deixar controlar pela ira. Devia estar a contar até dez. Ou a imaginar anjos. Não imaginava o que ela faria para se recompor. “Disse-lhe que te tinhas ido embora” – respondeu. “Não disse para onde nem porquê. Fingi que não sabia. Não era isso que querias?”

“Não mencionaste o meu pai? Nem Coventry?”

“Segui as tuas instruções.” Já mais calma, um pouco aborrecida, num tom que ele reconhecia bem. “Que é que esse Rick quereria, afinal? Pensava que te tinhas demitido.”

“E demiti. Provavelmente, pensa que consegue fazer-me voltar atrás. Arma-se sempre um pouco em psicólogo. Achava que me conhecia melhor do que eu mesmo.”

“Merda, Storey, tu não te conheces. Andas a caminhar no escuro.”

“Inclino-me perante o teu superior conhecimento.”

“Olha para a tua história recente. Isso dir-te-á tudo o que precisas de saber.”

“Tenho de ir. O meu micro-ondas acaba de apitar.”

“Sim, está bem, não deixes arrefecer o hambúrguer.”

“É um empadão de carne.”

“Então, voltaste às origens. Receio por ti, receio mesmo.”

“Telefono-te quando estiver mais estabilizado.”

“Como se isso fosse acontecer” – disse ela, desligando.

CAPÍTULO TRÊS

Janice viu-o através da janela, antes de entrar. Que lata – apoderar-se do seu lugar favorito, descontraído como se lhe pertencesse. Supunha que era um homem atraente, moreno, como Pierce Brosnan se tivesse pais gregos, com aquele tipo de queixo com barba escura por fazer e cabelo preto forte. A roupa parecia também se ajustar a ele, mostrando o peito amplo e as ancas estreitas, mas de um homem que se mantinha em forma e não dum rapaz a crescer. Não tinha feições mal definidas, era vigoroso e penetrante, e os seus olhos pareciam atravessar-nos.

Podia ser interessante. Seria bom conhecer, por uma vez, um homem que pudesse assumir o controlo. Viu isso nele, aquele impulso de dominar, de ter as coisas à sua maneira. Podia ter gostado do desafio se não tivesse outros planos.

Portanto, ali estava ele, agora a tirar os olhos do livro, a olhá-la e a sorrir ao mesmo tempo, sabendo que ela ia franquear a porta, e apenas à espera que ela chegasse. O sorriso não lhe chega aos olhos, pensou ela, era uma coisa que ele fazia com a boca, um gesto social, reconhecendo que o jogo ia começar.

Dizia ele: “Pensava que nunca voltaria, com a minha rudeza, e tudo. Pensava que tinha quebrado o encanto.”

Ela olhou-lhe para a camisa de colarinho aberto, revelando um pelo encaracolado a sair por cima, para o casaco azul marinho que provavelmente veio da Next através duma loja de beneficência, para o livro agora virado para baixo, em cima da mesa – As Vinhas da Ira –, e pensou no modo como ele ganhava a vida: perito de seguros. Não acreditava. Agia como se tivesse uma missão, algo que fosse fazer da sua vida, algures onde fosse estar. Não era um burocrata ou alguém que olhasse para números e fizesse cálculos. Havia demasiada atividade por trás dos seus olhos. Algo assustador, mas intrigante.

“Peça-me um café” – disse ela.

Olhou-a por um momento, mas depois suspirou e levantou-se, dirigiu-se ao balcão, acenando alegremente para ela quando entrou na fila. Nem sequer perguntara o que ela queria. Provavelmente já sabia, do tempo que passara a observá-la.

Não faças o jogo dele – dizia para consigo. Não fiques intrigada.

Sentou-se e tirou o computador Microsoft Surface Pro 3, abriu o teclado aveludado e passou o dedo pelo ecrã para abrir o documento atual. Pôs o telemóvel Moto G Android em cima da mesa, ao lado dele. Gostava dos seus gadgets e sabia o nome e as especificações de todos eles. E, por alguma razão, queria convencer Storey de que era genuína, de que realmente era jornalista, de que o seu trabalho era, dalgum modo, importante. Normalmente, quando entrava no Starbucks, estava a escrever o seu diário ou, de vez em quando, a trabalhar numa das suas lendas. É assim que os espiões lhes chamam – às identidades falsas que criaram para si mesmos. Nesse momento tinha umas dez em curso e todos os dias tentava acrescentar mais um pormenor, mais uma caraterística ou um facto da vida a pelo menos duas das identidades. À medida que avançava, caraterizava-se.

O que lhe dava algo que fazer enquanto esperava que David voltasse.

Storey regressou com o café dela e outro para si mesmo.

“Há dois dias que não vem cá” – disse ela.

“Teve saudades de mim?”

“Não posso ter saudades de alguém que não conheço.”

“Tenho um pedido de desculpa a apresentar.”

Estava a deitar açúcar no café e parou.

“Não andava a persegui-la” – disse ele. “Não quero que pense isso. Estava aqui por acaso quando entrou. Achei que parecia interessante. Sabe o que quero dizer? Vê-se uma pessoa e acha-se que se gostaria de a conhecer, de descobrir como fala e o que tem para dizer.”

Sentou-se e observou-a, como se achasse que lhe tinha dado um presente.

Janice deteve-se por um instante e, depois, disse: “Importa-se que trabalhe? Por mais que adorasse conversar.”

Gostou da maneira como ele sorriu e como, a seguir, abanou a cabeça de modo que mostrava admiração, como se a competição em que estivessem empenhados tivesse passado para um nível diferente e ele soubesse que teria de melhorar o seu jogo. Mas não faças o jogo dele, não te deixes intrigar.

Abrindo o computador, virou-o de modo que ele conseguisse ver o ecrã. Não havia nada escrito no documento, à exceção dum cabeçalho – Próximos Passos –, mas olhou por um momento para a página em branco e depois apagou-o, escrevendo o seu nome verdadeiro e função, só para fazer alguma coisa. Araminta Smith, jornalista. Dera com o nome numa peça que tinham feito na escola e sempre gostara dele. Parecia ter classe, o papel de Arianta.

Storey ignorou o abandono dela, pegando no livro e continuando a ler.

Irritada, contra sua vontade, disse: “É bom, o Steinbeck?”

Ele baixou o livro.

“Ganhou o Prémio Nobel com o seu pior romance. Imagine como devia ser bom. Viu As Vinhas da Ira, o filme?”

“Talvez.”

“Duro como pedras para um filme de Hollywood, mas coberto de açúcar em comparação com o livro.”

Ela anuiu com um aceno de cabeça e voltou a olhar para o ecrã. Não sabia nada de literatura e começava a entrar em pânico quando as pessoas falavam de livros, não fossem fazer-lhe uma pergunta a que não soubesse responder. Nunca conseguia ler mais do que um artigo de jornal antes de adormecer. Um dia, começaria a concentrar-se nesse defeito e a corrigi-lo. Um curso curto em linha talvez bastasse.

Aproveitou a oportunidade que ela criara. “Então, está a trabalhar num artigo, não é? Ou é algo mais mundano – nascimentos, óbitos e casamentos?”

“Você não compreenderia” – disse.

… e depois perguntou a si mesma por que razão teria dito tal coisa. Por vezes, até ela se espantava com a sua maldade. Ele parecia ser razoavelmente inteligente; então, porque estava a tentar antagonizá-lo?

Inclinou o ecrã em direção a ela. “Não lhe posso dizer grande coisa acerca dele porque ainda estou a desenvolvê-lo. Estou apenas a investigar, a falar com pessoas.”

“Dê-me uma ideia, para não ficar magoado.”

Hesitou e, depois, disse: “É sobre corrupção no governo local. Não posso dizer mais nada.”

“Há muita em Coventry?”

“Ainda não sei. É por isso que estou a investigar.”

“Conhece pessoas com quem possa falar, pessoas que possam dar com a língua nos dentes? É isso que faz?”

Ela achou que a sua curiosidade era genuína, mas que não era bom deixá-lo avançar muito. Ainda não sabia nada acerca dele ou do que queria. Era bom que achasse interessante falar com ela, mas tinha demasiado que fazer e muitas coisas a que atender.

“Como disse, não posso falar disto. Mesmo que pudesse, não lhe dizia nada. Não faço ideia de quem você é” – disse. Fez uma pausa e acrescentou: “Que queria dizer com isso de viver um dia de cada vez?”

Ele encolheu os ombros. “Não leve a sério. Eu sou um brincalhão. Digo muita coisa que não sinto.”

“Não acredito. Acho que você fala muito a sério.” Já a ficar zangada por ele não a levar a sério, disse: “Bem, isso chateou-me. Portanto, pode deixar-me em paz?”

“Eu já cá estava.” Sem dar o braço a torcer.

“Preciso da mesa para trabalhar. Além disso, você já quase terminou o seu café.”

A expressão dele mostrava desânimo e empurrou a cadeira para trás, levantando-se. Finalmente, tinha-o tocado.

“Andarei por aí” – disse ele.

“Não perca tempo por minha causa.”

“Matar o tempo. Deixar-me estar. Ficar onde não sou desejado.”

“Ah, sim, você é escritor. Estou a perceber.”

Pegou na sua chávena de café, olhou em redor da sala movimentada e encaminhou-se para um banco vazio no canto oposto, perto das casas de banho. Ela reparou outra vez nos seus ombros largos e nas suas ancas estreitas, uma boa silhueta. Talvez lhe pegasse noutra altura, quando estivesse menos ocupada.

Ou talvez não.

Paul perguntava a si mesmo o que estava a fazer com aquela mulher. Ela fizera-lhe uma pergunta simples há uns dias e ele despejara o que pensava: que podia fazer, como podia recuperar a situação? Ainda não estava num estado de espírito propício para sair com alguém, mas já não conseguia deixar de pensar nela. Ali sentada a depenicar no teclado, a olhar pela janela, recusando-se a olhar na sua direção, de pernas cruzadas sobre os tornozelos por baixo da mesa.

Reparou noutros homens que também olhavam para ela – principalmente rapazes estudantes que tinham colonizado o local, sentados, envolvidos nas suas canadianas, de olhar fixo nos seus telefones ou a falar com outros vestidos exatamente como eles, exceto quanto aos lenços, que eram de cores variadas. Ela era diferente. Criava uma espécie de aura à sua volta, uma autossuficiência que parte dele queria abalar.

Era interessante… e era falsa.

Não conseguia explicar como sabia, mas compreendeu que ela estava a fingir ser alguém que não era. Olhava para as pessoas de modo oblíquo, como se não pudesse correr o risco dum olhar direto, como se isso dissesse demasiado acerca dela. Quando falava, atacava-nos, mantendo-nos à distância, cortando qualquer hipótese de amizade.

Mas então ele tinha estado a fixá-la com os olhos. Talvez ela estivesse verdadeiramente assustada com ele, com o que pudesse fazer.

Imaginemos que sim, pensou ele. Que faria eu para assustar as pessoas, a não ser estoirar-lhes os miolos?

Agora, um homem encaminhava-se para ela. Entrara pela porta de vidro e vira-a imediatamente. Não era grande, portava-se como quem sabia o que queria. Tinha barba cerrada, na sua maior parte ruiva, embora o cabelo fosse preto e se estendesse por cima das orelhas. Vestia um casaco preto de cabedal com corte de casaco desportivo e botões à frente, e calças de ganga azuis desbotadas. Havia nele uma solidez que lhe preenchia o casaco e um ritmo na maneira de andar que fez Paul pensar que trabalhava no exterior. Enquanto se encaminhava para a mesa da mulher, olhou em redor, cruzou brevemente o olhar com o de Paul e seguiu. Paul achou que tinha a tensão comprimida de alguém com receio de ser atacado, talvez imprevisível, de alguém preocupado com o seu estatuto.

Gostava de pensar que tinha jeito para analisar as pessoas e o seu comportamento. Mas então, pensou, quem não tem?

Quando o homem chegou à sua frente, ela deixou de escrever e levantou o olhar, recostando-se, parecendo descontraída, embora não sorrisse. Era alguém que conhecia, mas não queria ver.

Disse qualquer coisa e o Casaco de Cabedal inclinou-se sobre a mesa, apoiando os nós dos dedos de ambos os lados do computador. Ela estendeu um braço e fechou-o. Ele disse qualquer coisa em resposta a esse gesto e Paul viu as palavras atingirem-na – endireitou-se na cadeira e os tornozelos descruzaram-se debaixo da mesa.

Agora o homem apontava-lhe um dedo espetado e o ronco baixo da sua voz – que Paul ouvira, mas não entendera – tornava-se mais silencioso. A mulher desviou o olhar e o Casaco de Cabedal estendeu o braço para lhe tocar com o dedo na ponta do nariz, carregando. Ela recuou e disse qualquer coisa brusca.

Paul deixou o seu banco e dirigiu-se para eles, aproximando-se do homem de lado. Sentiu o cheiro a cabedal do casaco dele e bem assim o de um desodorizante forte. A mulher olhou para ele e franziu o sobrolho, que foi o sinal para que o Casaco de Cabedal olhasse para ele.

“Para que porra está você a olhar?”

“Eu sou maior do que você. Não arranje discussão.”

Agora o homem estava a virar-se, posicionando o corpo para o enfrentar. Paul viu que tinha uns olhos ferozes, pretos e vazios, lá bem no fundo. Provavelmente era da mesma idade que Paul, mas as rugas do rosto faziam-no parecer dez anos mais velho.

“Vá sentar-se num canto e fazemos de conta que nunca o vi” – disse o Casaco de Cabedal.

“Está a incomodar a senhora e eu quero que se vá embora.”

“Como é que se chama?”

“Paul Storey. E você?”

“Chamo-me Desapareça-Da-Porra-Da-Minha-Frente.”

“Os seus pais deram-lhe um grande início de vida, não deram?”

“Este é teu amigo, Minty?” Virara-se para olhar para a mulher, ainda sentada, franzindo o sobrolho dum modo que Paul começava a reconhecer.

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