Buch lesen: «Carta muito pessoal de um recluso "Covid-ativo"»
© Editora Gato-Bravo, 2021
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editor Marcel Lopes
coordenação editorial Paula Cajaty
revisão Margarida Fontes
projecto gráfico Bookxpress
imagem da capa Omar, at Adobestock
Título
Carta muito pessoal de um recluso Covid-ativo
Autor
João Pedro Duarte
e-isbn 978-989-8938-86-2
1a edição: fevereiro, 2021
gato·bravo
rua de Xabregas 12, lote A, 276-289
1900-440 Lisboa, Portugal
tel. [+351] 308 803 682
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Sumário
Prólogo
Primeira Parte Um fim de semana qualquer
Segunda Parte: O último heterónimo de Fernando Pessoa
Terceira Parte: Cartas
Carta de Apresentação
18 de março de 2020
19 de março de 2020
20 de março de 2020
21 de março de 2020
22 de março de 2020
23 de março de 2020
24 de março de 2020
25 de março de 2020
26 de março de 2020
27 de março de 2020
28 de março de 2020
29 e 30 de março
31 de março de 2020
1 de abril de 2020
2 de abril de 2020
3 de abril de 2020
4 de abril de 2020
5 de abril de 2020
6 de abril de 2020
7 de abril de 2020
8 de abril de 2020
9 de abril de 2020
10 de abril de 2020
11 de abril de 2020
12 de abril de 2020
13 de abril de 2020
14 de abril de 2020
15 de abril de 2020
16 de abril de 2020
17 de abril de 2020
18 de abril de 2020
Capítulo Final
O Ilusionista e a lata de atum
Para a minha mãe
Para a minha mãe.
Prólogo
Por opção, este livro está divido em três partes. As duas primeiras partes espelham dois pequenos contos que escrevi: “Um fim de semana qualquer” e “O último heterónimo de Fernando Pessoa”. A terceira parte é a mais extensa, e incide num vasto número de cartas que escrevi nestes tempos de quarentena que, aliás, deram origem ao título do livro.
As personagens dos meus dois contos são inspiradas em pessoas que conheci na minha vida pessoal. Não obstante, o segundo conto é a minha homenagem um tanto ou quanto modesta a Pessoa.
As cartas foram escritas para suportar melhor a vida cá por casa, nesta condição de prisão domiciliária.
Primeira Parte:
Um fim de semana qualquer
Aqui perto, existe o desassossego habitual de quem corre atrás de sonhos e esperanças, mas que se vê confinado a desempenhar as funções que lhe são admoestadas com o tempo. Efetivamente, este desassossego é intrínseco ou jovial, uma vez que o Quinto Império não está à distância de uma corrida desenfreada que podemos dar para apanhar o autocarro já em andamento, ou até quando nos aventuramos a deambular pela passadeira quando o semáforo está vermelho para os peões. Em Lisboa, já lá vai o tempo em que se ouvia “como está, vossa mercê?”. No Carmo, o eco da liberdade é abafado à medida que nos deixamos embalar pela maresia de um Tejo, que tende agora a ser vislumbrado pelas redes sociais.
A uns tantos quilómetros de distância, ao pé da terra onde El Rei D. Dinis imperou que se plantasse um sublime pinhal, ainda existe uma insustentável leveza do ser. É naquele local que posso inspirar e suster as recordações de uma infância qualquer que tive, onde idealizava, numa árvore, a estrutura coesa de uma casa que nunca cheguei a conhecer. Lá, descobri que, a par da árvore, o melhor resultado do trabalho árduo a que nos submetemos quando usamos uma enxada reside nos calos que tendem a prevalecer nas nossas mãos pelo resto da vida. Porém, o breve conto que aqui promete ser narrado tem somente lugar na capital lusitana, sendo que, pelo menos, foi o que me fez parecer desde a última vez que o visitei. Não obstante, é de conhecimento popular que quem conta um conto acrescenta sempre um ponto.
Naquela manhã de sábado, escoltado pelo calor radiante que fazia abanar os demais corpos agitados, o rapaz sentia a leve brisa que emanava numa esplanada em Belém. Não tomava uma refeição desde as vinte e uma horas da noite anterior, e, como tal, o estômago fazia questão de emitir a luz amarelada da reserva através de um conhecido efeito sonoro. Posteriormente, a torrada servida era convidativa às gaivotas, que se adiantavam em busca de umas quantas migalhas que dali poderiam sobrar.
Na humildade da sua pessoa, o rapaz esperava a companhia de uma senhora cujo nome não é pertinente ser revelado neste momento. À medida que observava atentamente o horizonte na direção do Padrão dos Descobrimentos, o recibo da conta surgia acompanhado de um mísero rebuçado. A senhora não fazia cerimónia nesta sua demora, como se estivéssemos perante o dia “D” onde os amados juram adorar-se pela eternidade. Depois de folhear o jornal que comprou num quiosque ali perto, Armando deixou uma nota de cinco euros em cima da mesa onde tomara a refeição.
Durante horas a fio, o jovem passeou à beira do Tejo enquanto ouvia o burburinho habitual das pessoas que andavam por ali em busca de alegria e boa disposição. No entanto, o entardecer já estava prolongado, e daqui por uma hora ia ter início mais um jogo do Benfica. Ele era um adepto fervoroso de futebol, todavia, não compactuava com as cenas de pancadaria e escárnio que assumem forte protagonismo na relação entre os aficionados dos vários clubes. Após alguns minutos à procura do lugar onde havia deixado o carro, descobriu que tinha sido a largos metros de distância da esplanada onde esteve da parte da manhã.
Na mesma altura em que o rapaz estava atarefado a tentar remover a sua viatura do estacionamento sem embater nos carros que estavam localizadas em seu redor, Luísa descascava uma laranja a alguns quilómetros de distância. Luísa, a mãe do nosso protagonista, tinha somente um metro e meio, porém, esta medida representava uma mulher doce, de beleza irredutível e coragem desmedida. De facto, os múltiplos adjetivos de excelência não chegam para dignificar o estatuto de uma mulher que recebeu a educação do povo descendente da padeira de Aljubarrota. Luísa tomava o gosto ao sumo da laranja enquanto olhava para o relógio da cozinha, cujos ponteiros indicavam que a chegada do filho deveria estar para breve.
Nos dias em que eram transmitidos jogos de futebol, não existiam refeições muito elaboradas lá em casa. O rapaz, que nunca tinha grande apetite quando se confirmava o infortúnio da turma da Luz, optava sempre pela eficaz sanduíche de presunto quando fados mais alegres fixavam o resultado final. O jovem tentava dominar a arte sublime da cozinha, mas não se pode dizer que ostentava feitos propriamente valerosos. Embora nunca tenha sido muito esquisito a avaliar os atributos culinários de outras pessoas, é certo que ainda ia tendo as suas birras de petiz, e, nessas situações, Luísa resolvia a questão com o requinte de uma posta de tamboril confeccionada com uma batata cozida, o único “prato” que o filho detestava com quantas forças tinha.
Ao entrar no carro, o rapaz temia a forma como este ficara encurralado naquele local. Tinha tirado a carta de condução há pouco menos de dois meses, e, naquela situação, teria de efetuar um conjunto de manobras apertadas para conseguir sair do parque de estacionamento. Pelo menos, já não confundia o travão com a embraiagem, e encontrava agora o ponto de embraiagem de forma a que o carro começasse a ameaçar o início da marcha. Ao fim daquela demanda, meteu a primeira mudança, depois a segunda, por fim a terceira, e depois ia alternando como que num jogo de xadrez com a caixa de velocidades, ao som de um álbum dos GNR, que o guiou até casa.
Naquela noite, o rapaz tinha degustado a tal sanduíche de presunto em jeito de prenúncio triunfante. O Benfica tinha somado mais três pontos no campeonato nacional, graças a um golo marcado nos minutos finais do jogo. O acontecimento ia dar azo a inúmeros debates acerca da veracidade e legalidade do referido lance, uma vez que este tipo de confronto tribal tendia a ser aposta universal nos canais de televisão generalistas. Mais tarde, como era habitual quando ambos não tinham afazeres ou encontros marcados com os respetivos amigos ou conhecidos, mãe e filho decidiram ir ao cinema. É que o cinema tem essa beleza muito própria de, a par dos livros, assumir a forma de portal que nos dá acesso a uma amálgama de universos alternativos.
No dia seguinte, não se ouviram os dois toques habituais da campainha que, por norma, costumavam ocorrer pelas oito horas da manhã de quase todos os dias lá por casa. O senhor Lemos, carteiro de profissão há mais de quinze anos, não andava na faina habitual. Era domingo. Adicionalmente, o calendário espelhava também que tinha lugar o dia 19 de março, a data em que se homenageia a figura familiar paterna. Luísa iria almoçar com o pai, o avô do rapaz, que, apesar da tacanha e mísera carência auditiva, não apresentava quaisquer lapsos de memória. Em contrapartida, o jovem não tinha qualquer espécie de ligação ou afeto pela data em questão, muito em parte por terem sido raras as vezes em que a pôde celebrar condignamente.
Tal como D. Sebastião, que assumiu o reino de Portugal e dos Algarves com um desconcertante fervor militar e religioso, também Alberto, o pai do rapaz, foi solicitado a reviver os tempos de glória da Reconquista da família. De nome aparentemente possante e porte atlético, este homem tinha sido criado à imagem de um guerreiro que assumiria as fileiras de todas as batalhas, e que iria dignificar o nome da família e da Pátria pela ousadia com que se atrevia a navegar além dos inúmeros “Bojadores” desta vida. Do amor que se adivinhou entre Alberto e Luísa, surgiria um filho em jeito de ode à união que previa ser duradoura.
Contudo, Alberto tinha a ambição de perfurar o inalcançável, de trincar o fruto proibido, e de descobrir a dádiva efémera que nenhum outro mortal conseguia idealizar. Nessa sua missão em busca da prosperidade e felicidade que o Império clamava, Alberto partiu com a promessa de um regresso triunfante. Para trás, ficaram a esposa e o filho que, doravante, teriam de consumar a partida da figura que talvez surgisse num amanhecer risonho. Durante alguns anos, o “Desejado” foi chorado pelo rapaz, todavia, e embora nunca tivesse deixado de ser recordado com carinho, passaria mais tarde a ser considerado uma lenda, cuja história era o pináculo da metamorfose entre realidade e fantasia.
O rapaz exercia funções profissionais no Aeroporto da Portela, nome que futuramente viria a ser substituído pelo do general sem medo, aquele que, no decorrer da sua candidatura à Presidência da República, ameaçou afastar o tal senhor “feito de sal e azar”. No entanto, como tinha tirado uns dias de férias, não sentia o incómodo usual na coluna que era provocado pela carga horária extenuante. Se no sábado tinha escolhido passear junto às margens do Tejo, o jovem pretendia agora dar uma escapadela, se assim é permitido afirmar, por um local mais perto da sua casa. A mãe ia almoçar com o avô, e as papilas gustativas do rapaz sentiam o rasto que prometia levá-lo, através um bilhete só de ida, até ao manjar dos bifes da Portugália, que ficava na Avenida Almirante Reis.
Luísa já tinha saído para ir ter com o pai, mas o rapaz ainda estava em casa, e com o pijama a assentar-lhe como uma luva. Antes de ir almoçar, decidira que havia chegado a altura de se barbear, visto que já apresentava um tufo de pelo serrado por toda a face. Ao invés de eleger aquelas lâminas de barbear descartáveis, usava uma navalha clássica que o tio João lhe tinha oferecido quando se começou a notar o formato de um buço tímido. Depois, escolheu peças de roupa simples para ir ao encontro do tal bife. Tirou do roupeiro um par de calças de ganga ligeiramente largas, uma camisola de manga curta com a imagem de Jules Winnfield e Vincent Vega, do clássico Pulp Fiction, um casaco banal e, por fim, calçou os ténis que tinha comprado há um ano e meio na Baixa. Para um rapaz de vinte e quatro anos, o ‘look’ escolhido não era efetivamente prometedor, mas como o fraque era o traje de eleição para o emprego que tinha no Aeroporto, pretendia afastar aquele registo de requinte nas horas vagas.
Numa altura em que os bolsos das calças já estavam ocupados com menos de meia dúzia de objetos pessoais, o jovem estava pronto para sair de casa. No preciso momento em que começava a rodar a maçaneta da porta que dava para a rua, o telemóvel emitiu uma daquelas sinfonias que já vêm pré-definidas, e que são usadas como “toque” que nos adverte para a chamada de alguém que pretende ouvir a nossa voz sem ser pessoalmente. No ecrã do telemóvel, surgia o nome daquela senhora que não tinha comparecido ao encontro no sábado, e que deveria agora vir de beicinho a mendigar perdão com falinhas mansas. Já proclamava o sábio povo que “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”, mas o rapaz, apesar do ressentimento imposto pelo senso comum, não aprendia a lição depois de tantos episódios em que ficou de mão dada com a solidão. Ele estava deveras aborrecido uma vez que, de acordo com o seu pensamento, tinha sido descartado como se fosse uma personagem fictícia de um livro que pode aparecer ou sumir de acordo com a vontade do autor.
O rapaz admitia que aquela sua palpitação momentânea por Helena (sim, é este o nome da senhora) poderia surgir de um encanto meramente platónico. Desta feita, tinha desistido de investir tempo e empenho na tentativa de cultivar algo mais intenso que uma amizade simpática. Helena permutava de apaixonado como quem efetua transições rápidas de peças de roupa íntima. Por conseguinte, o facto de não ter comparecido no encontro de sábado parecia simbolizar a gota de água primordial para o moço. No entanto, como em todo e qualquer bom cliché relacionado com pieguices românticas, ele não deixou de atender o malfadado telemóvel. De forma carrancuda, proferiu um simples “Estou!”. Helena, por sua vez, com a voz ofegante, não deixou escapar muito mais que uma dúzia de palavras – “Olá, Armando. Estou a ligar só para perguntar se me podes emprestar “A Doce Vida” do Fellini”. Neste filme, o protagonista é um jornalista que assume um deslumbramento colossal por uma jovem atriz. Efetivamente, foi um tipo de fascínio quase semelhante que fez com que o rapaz decidisse responder de forma civilizada ao tema em questão, sem remeter o antecedente em que ficou abandonado ao deus-dará por Belém. “Sim, por acaso tenho esse filme num formato de edição especial”, disse o jovem. “Fantástico! Posso passar aí por tua casa às cinco horas da tarde para o ir buscar?”, declamou a rapariga. “Julgo que sim. Até logo.”, terminou o rapaz por dizer.
Por si só, seria falacioso declamar que o rapaz mantinha uma certa preocupação relacionada com a quantidade de gases poluentes que o seu carro emitia; todavia, é certo que escolheu a boleia de dois autocarros para ir almoçar à Portugália. Durante o trajeto, encontrou um daqueles conhecidos que, por infortúnio do destino, surgem no local certo à hora que menos convém. Ele, que ainda matutava no telefonema que tinha recebido há menos de uma hora atrás, via-se agora obrigado a aparentar interesse na vida monótona de Carlos, um antigo colega de faculdade, que também andava a divagar por Lisboa. Ao mesmo tempo que falava com Carlos, notou que tinha algo guardado num bolso da parte interior do casaco, mas como não se lembrava do que poderia ser, preferiu guardar a revelação para depois.
Enquanto não chegava a hora de desamparar a loja, Carlos ainda teve tempo de resumir a sua estadia em Veneza, cidade que tinha visitado durante a semana transata. Embora esta companhia fosse deprimente em toda a sua plenitude, o tópico em redor de Veneza era como uma melodia suave para os ouvidos do rapaz que, embora fosse bastante viajado, nunca tinha tido a oportunidade de confraternizar com a Rainha do Adriático. “Olha, é um autêntico labirinto, onde não precisas de te orientar com mapa ou bússola”, disse-lhe Carlos. Em contrapartida, achou por bem omitir o facto de ter ficado praticamente a pão e água nos últimos dois dias da viagem, por ter esbanjado uma vasta porção de euros em passeios românticos de gôndola. No final, para Carlos, São Marcos permaneceu no mesmo nível apático que o seu querido Santo António, cuja única função é aparecer em Alfama lá para o início de junho, e na pele de santo padroeiro da sardinha e da cerveja.
A conversa terminou quando o autocarro parou na estação da Avenida Gago Coutinho, onde Carlos saiu. Para o rapaz, já não faltava muito até estar na companhia de um daqueles bifes servidos na clássica frigideira da Portugália, onde, ao balcão, os preços eram ligeiramente mais atraentes. É certo que, no decorrer dos anos, mudam-se os tempos e as vontades, contudo, o rapaz foi invadido por um célebre momento ou sentimento de nostalgia. A textura e o sabor do molho apresentado no bife que lhe tinha sido servido, continha exatamente a mesma definição de gosto que naquela ocasião em que o tio João o levara a experimentar a referida iguaria, há tantas primaveras atrás. Depois, terminada que estava a refeição, passou rapidamente pela casa de banho dos senhores para se certificar que o bigode tinha saído ileso às tropelias do molho diabrete e, sem mais nada a apontar, estava preparado para voltar a casa.
Sob pena de chegar atrasado, uma vez que tinha o tal compromisso marcado com Helena, o rapaz decidiu não efetuar desvios secundários após o almoço. Lamentou o facto de não ter a possibilidade de ficar a ler um livro, ou até mesmo um jornal, algures na Praça do Chile. Já num dos dois autocarros que tinha de apanhar para regressar, constatou que trazia uma edição de bolso de “Grandes Esperanças” de Charles Dickens numa das algibeiras interiores do casaco. O frio tendia a prevalecer com maior intensidade nos últimos dias, e aquele casaco tinha sido guardado no roupeiro há dois ou três meses. Desta forma, não se recordava ao certo da data em que tinha comprado o livro, e por que razão o tinha deixado num bolso qualquer. A princípio até pensou folhear a obra de relance, mas como não suportava as habituais dores de cabeça quando tentava ler algo num transporte em movimento, o tiro saiu-lhe pela culatra.
O rapaz chegou a casa poucos minutos antes das cinco da tarde. Antes de averiguar a prateleira onde estava o filme que iria entregar a Helena, deu um beijo na testa da mãe, que, entretanto, já tinha regressado do almoço com o avô. Enquanto a gata ronronava em sinal de puro mimo, Luísa estava sentada numa das poltronas da sala a ler um livro de Daniel Sampaio. Ao contrário do rapaz, a mãe tinha uma missão bastante concisa neste mundo que julgamos conhecer. É que Luísa tinha a arte e o engenho de ajudar pessoas a colmatar algumas mazelas do corpo e da mente, ao mesmo tempo que se via forçada a testemunhar o sofrimento alheio. Por vezes, conseguiu resgatar um certo aglomerado de viajantes que estavam de malas aviadas em direção aos montes e vales administrados por São Pedro. Embora lutasse com todo o seu arsenal de convicções e faculdades para colocar uma rolha à garrafa da morte, seria contranatura impedir que esta desempenhasse o ofício que tanto lhe compete. Para o rapaz, se a mãe estava apta a cumprir a sua missão em prol dos outros, ao mesmo tempo que possuía discernimento para suportar as rasteiras da ciência e do destino, então só poderia ser o braço direito de um Deus maravilhoso.
Às cinco horas, o rapaz estava à porta de casa com «A Doce Vida» na mão. Do outro lado da rua, um cão passeava com o dono num estilo gingão. Ao longe, viu a figura da mulher que o tinha abandonado no início de mais um fim de semana qualquer. O seu coração palpitava como nunca, e os dedos entrelaçavam-se uns nos outros. Afinal, havia uma justificação para Helena ter faltado ao encontro com o pobre rapaz. Mas há que perdoar a criatura, visto que, muitas vezes, o ser humano tem o engenho de criar amuos e enredos fictícios só para ver o tempo passar, e para justificar a ausência de uma tarefa que ocupe a passagem dos dias, dos meses e até dos anos. O rapaz entregou-lhe o filme, trocaram dois dedos de conversa, e a interação entre ambos seria como uma folha caduca, ou até como aqueles juízos de valor que muitos gostam de declamar, mas que de pouco valem para quem tentam curar.
O rapaz voltou para casa, cabisbaixo, como se tivesse levado um murro no estômago. Mais do que a desilusão por não ser correspondido, era o desalento de perceber que Helena não idealizava o destaque e o esforço que o rapaz fazia para receber uma espécie de afeto diferente de algo meramente comum. Luísa via aqueles olhos azuis faiscarem de tremor e melancolia, contudo, tinha uma história bem guardada para fazer reacender a chama daquele coração despedaçado. Luísa conhecia a história de um amor improvável, cuja Fénix renasceu das cinzas, e que nunca mais deixou a chama esmorecer. “Senta-te aqui. Vou-te contar uma história”, disse Luísa. “Mãe…desculpa lá, mas, muito sinceramente, as tuas palavras ensaiadas valem-me pouco neste momento”, atirou o rapaz em jeito de desespero. No entanto, quando os seus olhos foram ao encontro do vislumbre da progenitora, não foi capaz de a abandonar com aquela resposta, e acabou por sentar-se no sofá.
“Sabes, vou contar-te a história de duas pessoas que conheci em tempos, e que me ensinaram que a vida nem sempre sorri aos predestinados, mas sim aos audazes. Começou há muito tempo.
Ela nasceu em 1944, no seio de uma família humilde do interior de Portugal. Quando tinha sete anos, o seu pai estava a trabalhar em Lisboa e, por conseguinte, ela teve de abandonar a sua aldeia, juntamente com a mãe e a irmã, com o intuito de descobrir uma vida melhor junto do pai na capital. Uma semana depois, o avô da menina foi a Lisboa ver se filha e as netas estavam bem instaladas, e idealizar se a vida na capital era, de facto, uma mais valia para o futuro de todos eles. Inevitavelmente, quando viu o avô, Fernanda (o nome da menina) teve a certeza que o seu coração palpitava pela vida na aldeia, pelo vento a moldar-lhe a forma do cabelo, pelo aroma das laranjeiras e das oliveiras que emanava no ar, e pela liberdade que nunca deixou de sentir. A rapariga conseguiu. Regressou à aldeia com o avô.
Por infortúnio do destino, seis meses após ter regressado, o avô recebeu o chamamento divino de Deus, e não podia acompanhar mais a menina, nem os campos onde ela podia correr como um autêntico potro livre de receios. Para além do avô, a rapariga viva com a avó e um tio, de seu nome Risota, que estava viúvo naquela altura. Perante aquela situação, a mãe da jovem Fernanda tentou que ela regressasse a Lisboa, visto que tinha perdido a pessoa que a ajudara a regressar à aldeia. Porém, Risota viu naquela menina a filha que nunca teve, e pelo afeto empregue pelo destino, pediu à mãe de Fernanda que a deixasse ficar. Durante três anos, a menina viveu na aldeia, e foi com o tio que vivenciou um dos períodos mais felizes da sua vida. A avó de Fernandinha fazia a sua vida com a água da chuva, e com água que ela tirava de uma pia medieval. A rapariga ficava sentada a vislumbrar toda aquela leveza de espírito, num trilho que Risota fazia enquanto moía o trigo e cuidava do gado.
Só que, após esses três anos de alegria, Fernanda já tinha mais um irmão, e a mãe não quis que ela continuasse a viver tão longe da cidade. Quando regressou a Lisboa, Fernanda foi aprender a ser modista. Para aquela criança, que tinha aprendido a ser genuína e livre, o período em questão foi deveras conturbado. Ela não estava habituada às regras da cidade, e todo aquele aparato fazia com que sentisse saudades de casa, junto das figueiras e dos pastos. Não obstante, a função de modista revelou ser um tanto ou quanto valiosa para Fernanda, visto que a obrigou a aprender a cumprimentar uma senhora, e a saber estar à altura da sua posição social. Em Lisboa, o trabalho de Alice, a mãe de Fernandinha, incidia na venda de leite e, desta feita, a rapariga ia sempre ajudá-la antes de picar o ponto na sua modista. Peremptoriamente, os anos iam passando, mas a menina nunca esquecia a sua aldeia, e, entretanto, o seu sonho era poder exercer funções de modista por lá. Contudo, os Deuses tinham outros planos reservados para Fernanda.
Aos dezasseis anos, Fernanda conheceu um rapaz em Lisboa. Chamava-se Armando, era um sujeito franzino, de aparência singela, mas cuja perseverança e vontade de triunfar na vida não passaram indiferentes aos olhos da rapariga. Embora se tenham conhecido na capital, ele também era natural da mesma aldeia de Fernanda, mas não viveu lá muito tempo. Durante a infância, Armando era um rapaz feliz. Andava na escola, não tinha problemas, uma vez que os seus pais trabalhavam e possuíam campos agrícolas. Na escola, planeava brincadeiras traquinas e habituais para alguém com a idade à flor da pele. A professora apertava-lhe as orelhas, dava-lhe com uma vara, punha-o de castigo, e ele, no seu jeito gingão, fugia pela janela. Aos 14 anos, depois do pai ter falecido, tudo mudou na vida de Armando. Embarcou na demanda de se aventurar por Lisboa, sem poder contar com ninguém que lhe estendesse a mão. Durante os anos de 1960, trabalhava entre catorze a quinze horas por dia numa leitaria. Aos poucos, conseguiu arranjar alojamento, um salário digno das suas funções e encontrou uma rapariga que tentava colmatar a falta do afeto que, naqueles últimos tempos, era como que uma antítese da alegria que vivenciou em rapaz.
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