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Buch lesen: «Pero da Covilhan: Episodio Romantico do Seculo XV»

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CONVERSA PREAMBULAR

Eu não sei bem o que venho aqui fazer.

Não venho, de certo, apresentar Zeferino Brandão, pois eu proprio lhe fui apresentado, noviço em lettras, quando elle já era, na egreja litteraria, officiante de pontifical, bemquisto e bem acolhido dos sacerdotes maximos, com alguns dos quaes privava, de irmão a irmão.

Com effeito, – e sem que saiba dizer de positivo ha quantos annos, não devendo comtudo andar muito longe dos trinta, – foi na primeira casa que João de Deus habitou em Lisboa, na rua dos Douradores, e no proprio quarto do poeta, que Zeferino Brandão e eu nos avistámos a vez primeira. Era elle alferes ou segundo tenente d'artilheria, eu, cadete de lanceiros.

Vêrmo'-nos, e ficarmos sendo, logo ali, amigos velhos, foi obra de um momento. Eu tinha na minha bagagem uns versitos, que apresentava a medo, e que um dia Manoel de Arriaga leu em voz alta, depois do café, na mesa dos hospedes, com a mesma emphase com que leria versos de Victor Hugo, conquistando-me uma ovação no meio d'aquelle auditorio ingenuo, e deixando-me a mim proprio deslumbrado de taes versos serem meus. Coitados! Por onde andarão elles!

Zeferino Brandão, já a esse tempo tinha poetado muito e, no meu entender de então, hombreava com todos os da sua vida de Coimbra, amigos de tu, que, sempre que se encontravam, tinham tão bons abraços a trocar, tão bellas coisas a relembrar e a dizer. Eram o João de Deus, que estava ali; o Arriaga, que vinha todos os dias; o Anthero, que apparecia de quando em quando; o Simões Dias, o Candido de Figueiredo, o Guimarães Fonseca, o João Penha, a todo o momento falados, porém ausentes.

Por signal, que a esse mesmo tempo Zeferino Brandão se lembrou de fazer annos, e nada menos que vinte e seis. A lembrança foi tida como disparate de marca maior, e como antecedente de pessimos effeitos. E tanto que João de Deus lhe disparou, logo ali, á queima roupa:

 
Com que então, cahiu na asneira
De fazer na quinta feira,
Vinte e seis annos! Que tolo!
Ainda se os desfizesse…
Mas fazel-os, não parece
De quem tem muito miolo!
 

Averiguou-se, porém, que Zeferino era reincidente no delicto, pois no anno anterior fizera o mesmo, e mostrava-se disposto a repetir no immediato. E por isso João de Deus accrescentava:

 
Não sei quem foi que me disse,
Que fez a mesma tolice
Aqui o anno passado…
Agora o que vem, apósto,
Como lhe tomou o gosto,
Que faz o mesmo? Coitado!
 
 
Não faça tal; porque os annos
Que nos trazem? Desenganos
Que fazem a gente velho.
Faça outra coisa; que em summa
Não fazer coisa nenhuma,
Tambem lhe não aconselho.
 

Zeferino Brandão tinha boa vontade de seguir á risca a advertencia do poeta; não poude no emtanto satisfazer-lhe o desejo. Effectivamente, fez outras coisas, livros excellentes, por exemplo; mas accumulou, e foi tambem fazendo annos, com a maior moderação, o mais devagar que lhe foi possivel, mas, em summa, fazendo-os e contando-os. Era o que João de Deus lhe tinha dito:

 
Mas annos, não caia n'essa!
Olhe que a gente começa
Ás vezes por brincadeira,
Mas depois, se se habitua,
Já não tem vontade sua,
E fal-os, queira ou não queira.
 

Para mim, n'esse bom tempo da vida, Zeferino Brandão vinha já, não direi da noite dos tempos, mas de um passado glorioso. Era do fraternal e alegre convivio d'aquelles que mais influencia exerciam nos nóvos de então, e sabe-se quanto é ciosa e aristocrata a superioridade intellectual, que não desce nunca a nivelar-se com os mediocres, e que só anda hombro a hombro com os seus pares.

Depois, tive occasião de lhe definir melhor as referencias no espaço e no tempo, com respeito ás gerações academicas, que elle frequentou, áquellas de que foi continuador, e ás que o continuaram a elle proprio.

Mas, em todo o caso, nunca poderei esquecer que, nas lettras, fui seu caloiro.

Portanto, toda e qualquer ideia de apresentação, ou de recommendação seria absurda.

Mas Zeferino Brandão exigiu-me que o acompanhasse n'esta sua quarta excursão pelo mundo aventuroso da publicidade, não por medo d'ella, que o seu animo é seguro, e o seu lucido espirito affeito de ha muito a ponderar quanto valem baldões e glorias litterarias; mas verdadeiramente tão só, pois outra explicação lhe não posso dar, por mero capricho de artista.

Dêmos, por conseguinte, o braço e vamos ambos de companhia, uma vez que esta lhe é agradavel, e que eu encontro n'ella prazer e honra.

Do muito que na mocidade poetou, fez Zeferino Brandão apuramento selecto em um volume, a que deu por titulo Paginas Intimas, do qual depois fez segunda edição, mais aprimorada ainda, e tambem difficil já de encontrar nas livrarias. Não é vulgar que este caso succeda, e não é pequena honra, nem pequena satisfação para um auctor, e sobretudo para um poeta, poder referil-o.

Os taes annos, que a gente se habitúa a fazer, e que depois cada qual faz, queira ou não queira, foram arredando o poeta das tentações da rima, sem comtudo o desviarem da verdadeira poesia, que elle continuou procurando sempre, quer nos panoramas da natureza, observada em longas viagens artisticas, e descripta posteriormente em paginas coloridas e illuminadas, quer na evocação ideal dos tempos volvidos, trazendo á tela do presente, memorias, personagens e feitos do passado.

D'estas duas predilecções da sua mente, a um tempo assimiladora e imaginosa, são documento bastante os dois livros de valor, com que a sua bagagem litteraria se enriquece. Um d'elles, Monumentos e lendas de Santarem, é um verdadeiro padrão de sentimento, erguido ás recordações gloriosas d'essa forte e vetusta cidade medievica; o outro, primeiro de uma collecção de Viagens, que está reclamando, a brados, os seus successores, é uma soberba descripção da Belgica moderna.

Avulsos, e dispersos pelos jornaes, andam capitulos e fragmentos descriptivos de uma excursão pela Italia, cuja leitura fugaz, ao tempo da publicação, nos deixou no espirito uma grata lembrança.

Compraz-se o escriptor, como se vê, e n'isto mesmo affirma intensamente o seu culto pelo bello poetico, em frequentar, tanto na vida de relação com o seu tempo, como na vida sonhadora a que o attraem os livros de outr'ora, os dominios artisticos, onde a sua phantasia de meridional mais á larga se expande.

Ali, os monumentos de mais de uma raça, livros de pedra abertos á meditação dos videntes, e as lendas populares tenazmente conservadas na memoria dos povos que se sobrepuzeram; aqui, ainda o passado, como centro de attracção maior; depois, primacialmente, as soberanias e magnificencias da arte, legados inestimaveis que as gerações foram transmittindo, e nos quaes vae encontrar as mais altas suggestões artisticas, e os mais profundos ensinamentos criticos, o gosto moderno.

Assumptos dignos de bem equilibrados e cultos engenhos, os quaes, tambem, só por si, dão medida do bom equilibrio e da alta cultura de quem os escolhe e professa.

Não são diversos os predicados do novo livro, que me encontro prefaciando. O auctor impressionou-se com a bella e romantica figura de Pero da Covilhã, a qual apparece na historia, um pouco esbatida, tão sómente pela exuberancia de luz com que se illuminam os quadros dos descobrimentos e conquistas subsequentes, que elle em tamanha parte preparou.

Essa figura, porém, tem contornos bem definidos, e Pero da Covilhã é, na epopêa dos Gamas e dos Albuquerques, um intelligente, um sagaz, um inolvidavel predecessor.

Envolve-o o escriptor n'uma intriga romantica, apenas a indispensavel para o seu proposito; mas de tal fórma se cinge ás linhas da realidade, que a figura se destaca viva, deante de nós, como realmente foi, e o leitor mal póde discernir onde começa e acaba a ficção, e onde prevalece o rigor historico.

Assim devia ser, e assim o comprehendeu Zeferino Brandão, uma vez que a vida aventurosa do seu personagem dá que farte para todas as exigencias da concepção romantica, sem precisar dos acrescentamentos da imaginação.

O scenario em que elle expande a sua actividade, tão ousada e tão original, mesmo n'um tempo em que as mais famosas heroicidades não eram de extranheza, apparece-nos restabelecido, por tão singular poder de evocação, que nos sentimos viver n'elle, com os olhos cheios de encanto e a alma cheia de interesse, como se nós mesmos pertencessemos á época em que toda a acção do livro, muito mais historia do que romance, amplamente se desenrola.

Vêmos, logo no começo, a Sevilha do seculo decimo quinto, e o viver luxuoso das grandes casas de Hespanha, onde em muitas das quaes a cadeira senhorial ousava defrontar-se em orgulhos e pretenções com os thronos dos reis; e no solar magestoso dos Medina-Sidonia, vamos encontrar o pagem galanteador e diserto que, trazido d'ali a terras de Portugal, por cá se deixou ficar a pedido de Affonso V, servindo com o seu coração, que já era de portuguez, a patria de seus paes, assim restituida a elle proprio.

Esse pagem, depois escudeiro e cavalleiro, é acompanhado pelo auctor e pelo leitor, primeiro na sua missão e officio de personagem da côrte e do séquito real, durante o ultimo quartel de vida, tão agitado e tão pouco feliz, do rei, que em Portugal o havia detido e que sempre lhe dispensou o seu favor; depois, em toda a sua peregrinação ao Oriente, na demanda das terras do Preste, até dar fundo na Abyssinia, onde para sempre o detiveram; esmagando-lhe a alma n'um captiveiro perpetuo, que não deixou de ser profundamente tyrannico, embora lh'o houvessem tecido com laços de sympathia, doirado com o lustre das riquezas e das honras, agasalhado no ambiente da familia, e engrinaldado com as rosas do amor.

O idyllio amoroso, que constitue a trama romantica fundamental, d'onde veiu por fim a ser gerada esta successão esplendida de quadros historicos, passa-se na intimidade dos corações e das consciencias d'aquelles a quem um vivo affecto prendeu para sempre, mas para os quaes a mais viva aspiração da alma foi um sonho que jámais se realisou. Não se póde conduzir fio mais tenue, com mais delicadeza e mais pericia, atravez do labyrintho de rudes acontecimentos, onde as energias physicas do homem são postas a toda a prova, sem nunca se lhe embotar a agudissima sensibilidade do coração.

Parece-nos até, que a verdadeira e mais bella originalidade d'este livro reside no contraste a que damos relêvo agora. Os que tenham pensado encontrar n'elle uma obra de completa ficção, podem talvez ficar desapontados ante o predominio que ali assumem a exactidão, a abundancia, a veracidade historica. Mas a conducção do fio ideal e subtilissimo, de uma pura e platonica paixão amorosa, accendida nos mysterios de duas almas amantes, e alimentada em todo o decurso da vida com os oleos da religião e da cavallaria, com os incitamentos do dever e da honra, a habil e engenhosissima conducção d'esse fio, repetimos, com a qual o auctor parece nada se preoccupar sem que todavia um momento a descure, é uma das maiores provas que Zeferino Brandão nos podia dar, de quão delicado é o seu temperamento artistico, de quão profundo é o seu sentimento poetico, de quão esmerado é o seu fino gosto.

E aqui me deixaria longamente a palestrar com os leitores sobre os meritos da obra, que deante dos seus olhos vae deslisar, se não reparasse em qual deve ser já a sua impaciencia, e em como é tempo de os deixar a sós com o dono da casa, do qual sabem já que teem a esperar uma recepção de primôr.

26 de fevereiro de 1897.

FERNANDES COSTA.

ADVERTENCIA

O episodio, que vae ler-se, é, como todos os episodios romanticos, um pequeno espelho. Procurei dispô-lo em termos de reflectir uma luz calma e pura, como o céo transparente e sereno, e não reprezentar a vasa de lodaçaes, d'essas miserias, que são a mais viva chaga social de todos os tempos, o terrivel problema a resolver, o alpha e o omega das civilisações.

Sem sacrificar nem a sombra da verdade historica, não tive de roçar por impudencias, nem de envolver-me em meandros asquerosos, salvo no incidente da successão á corôa de Castella.

Não accuso de immoraes os que revolvem o lôdo.

A quem deixa estagnar a agua, pertence mórmente a responsabilidade na formação dos atoleiros. Mas alguns escriptores teem olhos de lynce para descobrir o mal, e de toupeira para enxergar o bem: uma cegueira lamentavel em ambos os casos.

No reinado de D. João II, em que se passa quasi totalmente o episodio, houve, como em todas as épocas, grandes virtudes e grandes vicios. D'estes não cuidei, porque não podia ir buscar a um meio, onde nunca estiveram, os meus dois protagonistas, que são verdadeiros no sentido eterno da palavra, antes de o serem no sentido historico.

– E como faze-los reprezentar tambem papeis violentos em dramas ou tragedias, que despertassem interesse, reconhecendo eu que a historia, á qual subordinei a sua acção, cortaria implacavelmente as azas da minha phantasia?

Era porventura mais impressivo, ou ao menos mais accommodado ao gosto hodierno, um enredo cheio de peripecias fabulosas. No colorido, porém, d'esses quadros phantasticos deveria empregar as tintas modernas, e nem eu sabia pinta-los, nem elles eram authenticos.

Commemóro emfim, conforme sei e pósso, o quarto centenario do descobrimento do caminho maritimo da India.

Zephyrino Brandão

I
DESPEDIDA

O leitor já visitou Sevilha? Pois se nunca a enxergou sequér, affirmam por lá os nossos visinhos, que não vio maravilha.

Os attractivos da vida sevilhana seduzem-nos tanto, que nos offerecem crêr no velho proverbio andaluz, e compensam certamente a princeza do Guadalquivir do muito que lhe falta em monumentos para ser admirada, e em melhoramentos materiaes para rivalisar vantajosamente com as cidades modernas.

O leitor e eu vamos percorre-la no terceiro quartel do seculo XV, em um dia calmoso do estio.

Abrasa tanto calor!..

Em breve zombaremos d'elle.

Os arabes, que faziam de seus palacios pequenos paraizos, rodeavam-n'os de jardins e fontes, no intuito de refrescar as regiões ardentes, que povoavam, e até no interior dos proprios edificios possuiam esses mesmos refrigerios. Ora as casas de Sevilha traduzem fielmente os costumes de seus antigos senhores; e, como temos de entrar em uma d'ellas, poupar-nos-hemos a insolações.

Cingem Sevilha fortes muralhas, do alto das quaes se contempla a extensa planicie do vastissimo contorno, povoado de vistosas e alegres alquerias.

Pela porta de Triana sae-se ao importante arrabalde d'este nome, e com elle se communica por uma ponte de madeira fundada sobre grandes barcas, que com grossas cadeias de ferro a sustentam, amarradas no castello. Sob esta corre caudaloso o Guadalquivir, que parece envaidecido da sua justa nomeada, não só por dar ancoradouro seguro ás maiores naves, que sulcam os mares, senão por facilitar assim as relações commerciaes, e animar a florescente industria fabril dos sevilhanos; – o que torna riquissima de população e haveres a formosa metropole andaluza.

Cêrca do rio ergue-se a torre, que, pelo primor da fabrica, se denomina do Ouro.

Á cathedral, cuja edificação começou quasi ao entrar do seculo, em que a estamos vendo, sobre os alicerces da antiga mesquita, chama-se vulgarmente a grande, como á de Toledo a rica, á de Salamanca a forte e á de Leão a bella.

Ao lado d'essa immensa móle altea-se suberba a torre de tijolo côr de rosa, que coroava a mesquita, e é rematada por outra de menores dimensões com variedade de pinturas mui singulares em todo seu circuito. Este minarete, o mais notavel monumento arabe, da sua classe, na peninsula, foi construido pelo celebre alchimista e architecto Géber, a quem se attribuio, sem fundamento, a invenção da algebra.

– Não olvide o leitor, que estamos no decimoquinto seculo, em que não existe ainda o Giraldillo, e por isso a torre não é conhecida pelo nome de Giralda.

Numerosa a casaria da praça; alguns edificios podem comparar-se em tudo com palacios realengos.

As mulheres prezam-se de caminhar com garbo e passo curto; de fallar com graça e vivacidade; de vestir com louçania e riqueza; de dançar e cantar ao som das castanholas e das guitarras com elegancia e desenvoltura; de encobrir com a mantilha um dos seus formosissimos olhos por tal arte, que parece terem cravado na face um diamante negro, a reflectir a luz fulgorosissima do bello sol da Andaluzia.

O sevilhano passa por nós muito ancho da sua pessoa, e da sua Sevilha, que não só possue os titulos de mui leal, mui nobre e mui heroica, senão que é patria de notabilissimos santos; por isso até um poeta exclama patrioticamente:

 
«Que Dios, Sevilla, en tu preciosas venas
Para el Cielo crió tantos tesoros,
Cuantas el ancho mar esconde arenas,
Cuantas estrellas los celestes coros!»
 

Sem embargo de tamanha gloria, a cidade de Maria Padilla tem sido tambem algo peccadora…

A nobreza opulenta de rendas de seus vastos dominios ruraes, em que abundam frutos e gados, sustenta luzidas tropas de escudeiros fidalgos, que põe ao seu serviço e ao dos reis, alentando os impulsos das proprias ambições e prosapias.

Nas suas casas tem grandes depositos de armas, e nas suas cavallariças centenares de cavallos. Empara em vida os de sua hoste, e deixa-lhes fartos legados em seus testamentos.

Um d'esses grandes senhores é o duque de Medina Sidonia; ou de Sevilha, como tambem o tratam.

Entremos no seu palacio.

Este grandioso edificio, exteriormente austero e nú, ostenta no interior uma riqueza enorme, um luxo deslumbrante e voluptuoso, que determina a influencia exercida em Hespanha pela civilisação arabe. Póde considerar-se uma vivenda semi-oriental, como todas as do estylo mudejar, a que pertence, para a construcção das quaes as duas artes, christã e mahometana, se dão as mãos com tal engenho, que se harmonisam perfeitamente os dois elementos de manifestações tão diversas.

– Como sabido anda, os arabes que ficaram com os christãos, depois de certos tratados, em virtude dos quaes se lhes permittia conservar suas leis, religião e costumes, chamavam-se mudejares, e nas edificações, em que eram empregados, imitavam o luxo e magnificencia dos povos, que os da sua raça haviam conquistado, especialmente da Persia.

Tornando, porém, ao ponto: na disposição geral do palacio adoptou-se o estylo arabe, estabelecendo-se amplos pateos, e galerias, em volta das quaes demoram as habitações.

A sala principal pertence ao terceiro periodo arabe puro. As paredes d'ella recordam os ricos tecidos orientaes da Persia, assim por seus desenhos primorosos, como pelo brilhantismo do colorido. O pavimento acha-se coberto com uma alcatifa persa de um avelludado suavissimo. No tecto, o elemento decorativo predominante são estalactites e laçarias, tudo realçado com applicação de côres e douraduras.

Os peregrinos ornatos d'esta sala bastam, para confirmar a frondosa imaginação dos artistas mahometanos, e o respeito por elles tributado ás suas tradições gloriosas.

Móvel não se vê, a não ser uma larga cadeira de espaldar, com sobrecéo e estôfo de brocado. No centro da espalda, o brazão dos Medina Sidonia. Uma riquissima almofada de setim bordada a ouro está collocada aos pés d'esta cadeira, em que sómente costuma sentar-se o duque, ou algum extrangeiro de distincção, que o visita, e a quem elle offerece esse lugar de honra.

Em outras salas, paredes forradas de pannos de Arraz e de Flandres, representando episodios da vida de Christo, assumptos mysticos, batalhas, torneios e scenas de caça; ou cobertas de tapetes turcos, imitando persas, guadamecins e azulejos, tendo os sóccos revestidos de mosaicos esmaltados. Os tectos, estucados e pintados, com imitações mais ou menos exactas da flora. Alguns pavimentos, alcatifados.

Nos aposentos dos duques pendem das paredes quadros de Giotto e da sua escola, de João Van-Eyck, Roger van der Weyden, e do patriarcha da pintura sevilhana, Juan Sanchez de Castro, que poucos annos antes fundára a sua escola. As paredes e tectos da ante-camara, armados e toldados de riquissimos lambeis. Os móveis, de páu-santo, primorosamente entalhados e forrados de brocado e ouro.

Na sala da duqueza vê-se um magnifico relicario, d'estes que o clero manda executar sobre desenhos proprios para maravilhar os fieis, tal é a perfeita intelligencia, que elle tem do seu tempo. Em cima de uma credencia com tres compartimentos em fórma de degráus, cobertos de setim e rendas de Flandres, repousam varios objectos de uso senhoril, uns de ouro, outros de prata e crystal de Veneza. Sobre um bufete de abano, coberto com um bancal de velludo, tendo ao meio bordadas as armas da duqueza, acham-se livros de horas luxuosamente encadernados e brochados de prata, uma escrevaninha de ouro, flores em vasos de crystal e castiçaes de ouro. Nos angulos da sala, açucenas em amphoras preciosas proclamam a sua candura triumphal, e roseiras enroladas em columnas de onyx exhalam a sua fragancia suavissima.

As paredes da sala de armas do duque exhibem trophéos de armas arabes, despojo rico das batalhas das Navas e do Salado, como: rodellas, adargas, onde se lêem lemmas bordados a fio de ouro e a matiz, lanças em fórma de meia lua, espadas, gomias, tridentes e alfanges de dois fios.

Amplas colgaduras, tendo bordadas as armas da casa, encobrem completamente as estreitas portas de alerse.

O mobiliario do palacio, em geral, consiste: em cadeiras de espaldar coroado por dentilhões, tendo entalhado o brazão das armas de Niebla, titulo da familia Medina Sidonia, ou simplesmente a corôa ducal; algumas cadeiras ainda, lavradas com atauxias de ouro, marfim, prata ou cobre, e umas e outras com escabellos fixos ou moveis; almofadas de seda, sobrepostas duas a duas, e servindo de assento na sala de recepção da duqueza; faldistorios, tamboretes de espaldar, bancos longos e de espaldas, almofadados de tela de ouro e velludo; bancos de thezoura, bufetes de ebano artisticamente entalhados de prata, candelabros dourados, arcas para assentos, armario, cofre e até mesa de escrever, todas de madeiras preciosas e guarnecidas de prata, ferro ou bronze; relogios de parede em luxuosas caixas, umas de madeira, outras de ferro. Muito d'este mobiliario é coberto de ricas tapeçarias orientaes, que lhe dão um aspecto delicado e alegre com as côres vivas de seus bordados caprichosos. Emfim, mesas de prata, de ouro e de bronze, quadradas, de um pé só, além de outras de madeira, iguaes áquellas no formato, e sobre que se vêem magnificos vasos de flores, cravejados de pedras preciosas, outros vasos de prata lavrada, salvas e floreiras.

Não entremos na ante-camara do duque, onde elle conversa agora com D. Juan de Guzman, que tem sido o seu irmão predilecto.

Conforme o costume, a duqueza saiu logo de manhã para o jardim com as dez donzellas, suas familiares, levando, como cada uma d'estas, na mão um rosario e um livro de missa.

Á sombra do copado arvoredo alli rezam no mais edificante recolhimento. Terminada a oração as donzellas correm alegremente a colher flores, com que na volta ao palacio enfeitam o altar da virgem.

Na capella é esperada a duqueza com o seu sequito gentilissimo pelas moças da camara, e pelo sacerdote, que celebra a missa, ouvida por aquella pequena côrte.

Em seguida serve-se o almoço, depois do qual a duqueza, acompanhada de suas donzellas e de alguns fidalgos, dos mais apontados em garbos de cavallarias, em esmeros de atavios, e em chistes de conversadores, passeia a cavallo no seu suberbo palafrem. Hoje, todavia, recolheu-se aos seus aposentos, e não deu o seu passeio habitual.

Deixemos, pois, entregue ás suas meditações a virtuosa senhora. Naturalmente algum novo acto de caridade projecta, para juntar aos muitos, que tão justamente lhe tem grangeado o santo e doce nome de mãe dos pobres.

E, emquanto o duque falla com o irmão, acompanhe-me o leitor ao pateo principal do palacio.

É um quadrilongo regular, cercado de galerias, superior e inferiormente, decoradas com arabescos do mais fino gosto, sendo seus arcos em fórma de ferradura, graciosamente entalhados e sustentados por dezenas de columnas de ordem composita e de marmore alvissimo. O pateo é ajardinado, tendo no centro uma fonte, cuja agua crystalina cáe dentro de um tanque largo que a circumda; e os canteiros são separados uns dos outros por lousas de marmore branco.

Na galeria superior sente-se rir e folgar. São as donzellas da duqueza. O sol não as incommoda, porque todo o vão do pateo está coberto com um grande toldo. Uma d'ellas, desviando-se das companheiras, vê no jardim, perto do tanque, um pagem, e pergunta-lhe com ineffavel meiguice:

– Estais a despedir-vos das flores, Perico?..

– Quem sabe, se tornarei a vê-las!.. – respondeo o pagem com pronunciado acento de tristeza.

– Pois porque não haveis de voltar?..

– Deus o sabe; mas diz-me o coração, que nunca mais verei Sevilha!..

– Tem cousas o vosso coração!.. Deixai-o cá, para não vos ir atormentando com presagios pelo caminho…

As outras donzellas, que tiveram curiosidade de saber, com quem a sua companheira conversava, accorreram no momento em que Pero fazia esta pergunta á sua interlocutora:

– Se eu podésse arrancar o coração do peito, de quem poderia confia-lo, na certeza de que ficaria bem guardado?

– De mim! – exclamam todas a um tempo.

– Como elle não póde repartir-se, – ponderou o pagem – entrega-lo-hia a Beatriz.

– Sois mui gentil, Perico! – tornou esta. Graças pela preferencia…

– Não fostes vós, quem me propôz não o levar comigo?..

– Sem duvida!.. É, porém, essa a unica razão da vossa escolha?..

– Não m'o pergunteis… Se tivesse aqui um alaúde, cantar-vos-ia agora ao som d'elle:

 
Con dos cuidados guerreo
que me dan pena y sospiro;
el uno quando no os veo,
el otro quando vos miro. 1
 

– Bellissimo, Perico!.. – bradaram as donzellas com viva demonstração de alegria.

– Que gracioso sois! – accrescentou Beatriz e perguntou: mas porque esquecestes a guitarra, que é mais maneira, e vos lembrastes do corpulento alaúde, como lhe chamava o arcipreste de Hita?

– Vejo, que conheceis os versos de Juan Ruiz… – observou o pagem.

– Quem haverá ahi, que os não tenha ouvido recitar aos trovadores e aos jograes?!.. A proposito vinha agora recordar aquelles, em que o arcipreste descreve a recepção de D. Amor… Se quereis ter uma igual, quando regressardes, recitai-os, Perico!..

– Careceis dos nossos rogos?.. – atalharam as outras donzellas.

Convem notar, que os duques de Medina Sidonia, á similhança dos reis de Castella, mantêem uma côrte poetica. Fazer versos está na moda, por isso são poetas os grandes senhores: almirantes, condestaveis, duques, marquezes, condes e reis. A verdadeira e legitima poesia conservava-se no estado latente, desde o reinado de D. Pedro, o Cruel. Passou depois á côrte, e fez-se cortezã. Com tudo não havia perdido completamente o favor popular o romance brioso e sentido.

Os melhores poetas, que frequentam a casa Medina Sidonia, são versados na lingua arabe, e sabem numerosas lendas d'este povo de poetas. Conhecem a escola provençal, e é-lhes familiar a litteratura. Os romances castelhanos, e as mais bellas composições poeticas de Hespanha, anteriores ao presente seculo XV, todos os cavalleiros d'aquella côrte sevilhana recitam com applauso de damas e donzellas. O marquez de Santilhana, que por lá surge de quando em quando, ao passo que por todos é escutado com affectuoso enthusiasmo, estimula os moços, repetindo-lhes esta maxima: «a sciencia não embóta o ferro da lança, nem afrouxa a espada na mão do cavalleiro.»

N'este meio social tão distincto, é que tem sido educado o pagem, e a familia Medina Sidonia dispensa-lhe os maiores carinhos.

Tirado, pois, a terreiro pelas donzellas, assume um certo ar de gravidade, parecendo ao mesmo tempo, que do seu olhar vivissimo saltam chispas de luz e de graça, e exclama:

– Attenção!.. Vae fallar Juan Ruiz!..

Quando, porém, se propunha recitar o engraçado episodio, pôz termo ao animado colloquio o apparecimento do irmão do duque a uma porta da galeria inferior.

O pagem dirigiu-se logo a D. Juan, de quem recebeu uma ordem, e em virtude d'ella saiu apressadamente do pateo. As donzellas retiraram tambem logo da galeria.

Junto das cavallariças um velho mendigo, de compridas barbas brancas, de olhar scintillante e modos altaneiros, em que se traduz o seu orgulho de raça, inflexivel sempre, até sob o jugo do infortunio, tem feito as delicias de eguariços e lacaios, ora tocando sanfona, ora narrando historias de bandidos e de feitiços dos mouros de Granada. A famulagem tinha tempo para tudo. Não se tratava então de apparelhar ginetes, para ir no encalço dos Ponces, inimigos irreconciliaveis dos Guzman, apesar do seu proximo parentesco; unicamente cincoenta cavallos estavam arreados, e promptos a enfrear á primeira voz.

São quasi cinco horas da tarde. D. Juan de Guzman despede-se do irmão, que lhe mostra uma carta de D. Diogo Lopes Pacheco, marquez de Vilhena, recebida momentos antes, e abraçando-o diz-lhe: «D. Affonso que conte com dois mil cavallos».

Passados poucos minutos as donzellas da duqueza sóbem a um torreão do palacio, para vêr sair a garrida cavalgada, em que vae caminho de Portugal D. Juan de Guzman.

Para maior luzimento do numeroso prestito de escudeiros e lacaios, com o qual D. Juan pompeava, o duque não só pôz ao seu serviço o discreto pagem, que o leitor conhece, mas deu-lhe tambem por companheiro um dos mais disértos trovadores da sua côrte.

Ao lado dos azemeis, que conduzem possantes mulas pittorescamente ajaezadas e carregadas de bahús com a bagagem, caminham uns romeiros, encostados ao seu bordão, e com a murça da esclavinha ornada de conchas e vieiras. Por intervenção da duqueza, haviam alcançado licença de jornadear com D. Juan até Portugal, devendo d'aqui passar a Santiago de Compostella, onde se dirigem, e d'este modo evitar os caminhos de Hespanha ora tão infestados de bandidos e salteadores.

As donzellas demoraram-se no torreão até se desfazer, lá ao largo, a ultima nuvem da poeira, que envolvia cavalleiros e peões; mas já não logravam distinguir um só d'elles.

– Quem sabe, se Beatriz desejaria descortinar unicamente o pagem?.. Talvez. Nada, porém, communicou ás companheiras, que podésse denunciar esse desejo.

– E Perico?.. Levaria porventura gravada no coração a imagem de Beatriz?.. Começaria a feri-lo deliciosamente o espinho da saudade?.. Ou a lembrança de entrar no seu paiz, que, desde muito creança não tornára a vêr, e em cuja côrte teria ensejo de exhibir as singulares prendas, de que era dotado, apagar-lhe-ia da memoria os venturosos dias de Sevilha?..

1.Canc. Gen.