Buch lesen: «ভবষয দরষটর গপ সমগর»
POLLY!
Uma novela escrita por
Stephen Goldin
Publicada por Parsina Press
Tradução publicada por Tektime
Polly! Copyright 2008 por Stephen Goldin. Todos os direitos reservados.
Copyright da arte da capa korhan hasim isik.
Título original: Polly!
Tradutor: Inês Nascimento Wellnitz
Dedicado a todas as deusas
—passadas, presents e futuras—
que foram parte da minha vida
Primeiro Acto
Acordou a tossir.
Inicialmente confuso – de onde vinha aquela tosse? - rapidamente se apercebeu do cheiro. Fumo. O ar estava negro com tanto fumo; denso, ardente, a rodopiar pelo quarto em ondas ameaçadoras.
Depois foi o barulho: um rugido, como um comboio a alta velocidade, mas diferente. Talvez como um furacão ou um tornado, uma deslocação de ar tão violenta que o seu barulho era quase ensurdecedor. Doíam-lhe os ouvidos, talvez de uma mudança na pressão do ar.
E então ele percebeu o que é que aquele som lhe fazia lembrar: o rugido de uma fornalha de tamanho industrial.
Fogo!
Por fim os olhos abriram-se subitamente - um grande erro, já que começaram imediatamente a arder e a chorar. O fumo e a cinza tornavam quase impossível ver o que quer que fosse, e a tosse tornava quase impossível respirar.
Fogo, o pior pesadelo de qualquer dono de uma livraria; e mais ainda de um que vive no andar por cima da loja. Não se viam chamas no quarto, e portanto ele deduziu que só houvesse fogo ainda no piso de baixo. A devorar-lhe o ganha-pão.
Barbara! Acordar a Barbara!
Foi então que se lembrou que já não havia nenhuma Barbara para acordar. Ela tinha-o deixado uns dias antes. Era só ele.
Parte dele interrogou-se sobre o sentido de fazer alguma coisa; podia simplesmente ficar aqui, morrer e resolver assim todos os seus problemas. Mas a outra parte, aquela com um instinto de sobrevivência, foi mais forte.
O que é que sempre se recomenda em caso de incêndio? O fumo sobe; por isso, rasteja-se pelo chão para evitar respirá-lo. Mas será que era a mesma coisa quando o fumo vinha do andar de baixo?
Ele rolou da cama até ficar de joelhos no chão e começou a rastejar; depois parou. Para que lado ficava a janela? Não se via nada. Ele sabia em que posição estava a janela em relação à cama, mas o cérebro parecia ter desligado. Também já não conseguia lembrar-se para que lado tinha rolado da cama: esquerda ou direita? Estava a aproximar-se da janela ou a afastar-se dela?
Ouviu-se o partir de um vidro à sua frente: óptimo, estava a ir na direcção certa. Uma voz gritou: “Está aqui alguém?”
Ele tentou gritar em resposta, mas tinha os pulmões tão cheios de fumo que a única coisa que saiu foi uma tosse seca. Mas isso foi o suficiente para o bombeiro que tinha vindo buscá-lo. “Já o ouvi. Estou a caminho.”
Logo a seguir o bombeiro agarrou-lhe o braço, ajudou-o cuidadosamente a levantar-se e levou-o até à janela. Estava uma escada encostada à parede do lado de fora. “Acha que consegue descer?”, perguntou. Ele acenou com a cabeça em resposta.
“Há mais alguém aqui?”, foi a pergunta seguinte.
Desta vez ele abanou com a cabeça. “Sou só eu”, respondeu, com voz rouca.
Estava outro bombeiro na escada que, juntamente com o colega, o ajudou a descer, ainda a tremer. Já no chão, teve subitamente frio. Apesar ser Julho, a noite estava fresca, e ainda mais fresca parecia depois do forno que tinha sido o quarto. Ainda para mais estava só de cuecas. Eram a única roupa com que dormia, e por isso eram a única coisa que tinha vestido. Felizmente um dos bombeiros viu-o a tremer e embrulhou-o numa manta. Alguém lhe trouxe um fato de treino demasiado grande, que ele vestiu imediatamente; mais alguém lhe passou uma garrafa de água.
Ele virou-se para contemplar o incêndio, e viu, impávido, como o fogo lavrava pelo prédio acima. As chamas faziam um belo efeito contra o breu da noite. De vez em quando, mais para ter algo para fazer do que por ter sede, bebia um pouco de água.
Toda a sua vida estava a ser devorada pelas chamas - bom, pelo menos tudo o que ainda não tinha metaforicamente ardido apenas uns dias antes.
Ali estava ele, imóvel no meio do reboliço - todos corriam à sua volta fazendo todo o tipo de coisas, uns com machados de bombeiro, outros tentando extinguir o fogo com água, outros ainda mantendo os expectadores a uma distância de segurança. Nada daquilo o afectava muito; era como se ele, de facto, já se tivesse ido embora. Era como se as imagens, os sons, os cheiros se sucedessem a uma velocidade vertiginosa, mas do outro lado de um telescópio virado ao contrário. Nada daquilo era real. Nada daquilo tinha a ver directamente com ele. Uma mulher parou por um instante e falou-lhe. Disse-lhe que era da Cruz Vermelha, perguntou-lhe se ele tinha onde ficar e deu-lhe um cartão de uma casa de abrigo que o acolheria por uma ou duas noites se ele precisasse de algum tempo para tomar providências para o futuro e organizar algumas coisas.
As chamas foram morrendo lentamente. Alguém lhe disse que o primeiro andar tinha ficado praticamente destruído, mas que se tinham salvado algumas coisas dele do segundo andar: a carteira, uma cómoda com algumas roupas, o telemóvel. Numa primeira análise, o fogo parecia ter tido origem num problema eléctrico, e não havia suspeita de acção criminosa.
A determinada altura ele devia ter ido até ao abrigo, embora não se conseguisse lembrar de o ter feito. Lembrava-se de ter acordado lá, de sair pela porta da frente, quase num trance, e descer a rua até a um Multibanco para levantar algum dinheiro das suas magras poupanças e comprar o pequeno-almoço. Mastigou e engoliu a comida sem lhe saber a nada - podia até ter comido papel que não tinha feito diferença nenhuma...
O resto do dia passou-o no mesmo estado de espírito. Foi ao que restava do apartamento buscar as poucas roupas que se salvaram e guardou-as em sacos de plástico de supermercado. Contactou o agente de seguros, que lhe deu as condolências antes de lhe recordar que, embora a maior parte do valor do negócio estivesse coberto, os valores pessoais não estavam. Ele saiu do escritório com uma pilha de papelada para preencher e devolver assim que estivesse pronta.
Passou essa noite numa pensão barata, sem relembrar nada do que tinha acontecido. Quando acordou, a realidade começou a penetrar lentamente na sua consciência. Ia ter de arranjar onde ficar, já que não tinha dinheiro para continuar a viver numa pensão. Tinha de fazer o ponto da situação, avaliar o que lhe sobrava; pelo menos isso ia ser rápido, já que não havia muito para inventariar.
Para onde havia de ir? O irmão tinha um rancho no Nevada e estava sempre a convidá-lo para o ir visitar. Era uma boa ideia, pensou ele.
Começou algumas vezes a marcar o número do irmão para o avisar de que ia ter com ele, mas desistiu sempre antes de estabelecer a ligação. Isto não era uma história que se contasse por telefone. E se ele entrasse em choque e não conseguisse falar, se de repente se apercebesse realmente do que se tinha passado e ficasse pregado ao chão, sem conseguir reagir? Não, era melhor ir até lá e fazer uma surpresa ao irmão. Quem sabe, talvez a viagem o ajudasse a pôr alguma ordem nas suas próprias ideias. Atirou os poucos pertences que tinha para dentro do seu Toyota e começou a conduzir em direcção a nascente.
Segundo Acto
A viagem começou tranquilamente: sair da cidade para apanhar a auto-estrada era simples. O dia estava quente e o ar condicionado estava avariado, mas o sistema 4-90 - 4 janelas abertas a 90 km/h - ajudava a suportar o calor. O carro não tinha leitor de CD, mas a rádio estava a passar boa música, rock clássico. Ao menos isso. Enquanto ele se concentrasse no que estava a cantar, não pensava naquilo em que não queria pensar.
Era de manhã e estava na hora de ponta. Ainda havia muito trânsito no sentido oposto, mas nenhum no dele: estava a conduzir no sentido contrário ao de toda a gente, para fora da cidade. Não havia nada que o obrigasse a abrandar. Mudou depois de auto-estrada, passando de quatro faixas para duas. O único trânsito que havia era ainda só no sentido oposto, o que significava que ele podia conduzir à vontade. Carregou no acelerador e o barulho do vento aumentou, abafando a música e levando-o a aumentar o volume do rádio.
A estrada ainda seguia para nascente por cima das colinas e descia depois para o vale central da Califórnia, quente e abafado. Este era um sítio onde só os tolos - ou os desesperados - se aventuravam no Verão sem ar condicionado. Ele não sabia ao certo em qual das categorias se enquadrava.
As colinas, que ele tinha deixado para trás, bloqueavam-lhe o sinal do rádio, que começou a falhar. Mesmo aumentando o volume se ouvia muito pouco, e era mais estática do que música; começou então a carregar no botão à procura de outra estação. Passou umas quantas à frente - desporto, um comentador qualquer claramente a tentar espicaçar os ouvintes - e uma estação onde estavam a falar em espanhol. Tentou mudar para FM, mas quase não havia recepção, por isso voltou para AM e acabou por encontrar uma estação que tocava música variada, de oldies a rock clássico. Não era má, embora fosse demasiado calma para o seu presente estado de espírito.
A temperatura estava agora a aumentar rapidamente. O vento era tão quente quanto o ar dentro do carro, e ele começou a transpirar. Parou numa estação de serviço, atestou o depósito e comprou garrafas de água que, pensou ele, deviam ser suficientes para bastante tempo. A primeira bebeu-a em meia hora; e transpirou no mesmo espaço de tempo quase a mesma quantidade de água. Abriu a segunda garrafa e despejou parte dela na cabeça, o que o ajudou a reduzir a temperatura para os limites do razoável.
Depois de sessenta quilómetros nisto, apanhou uma saída para uma auto-estrada com duas faixas de rodagem, quase vazia; tinha a estrada só para si. O relógio marcava dez e meia. Não estava a correr mal. Se continuasse assim talvez conseguisse até chegar ao rancho antes de escurecer - e de certeza que chegava antes de já estarem todos a dormir.
A paisagem estava a mudar lentamente e os campos agrícolas bem cultivados estavam a dar lugar a uma zona árida, de mato e vegetação baixa. As montanhas no espelho retrovisor encolhiam à medida que ele se aproximava do centro do vale.
Também esta estação de rádio estava a começar a falhar, agora com interferências de uma outra estação local, que orgulhosamente anunciava que tocava ambos os tipos de música, country e western. Na escala de preferências dele esses estavam só um ponto acima de rap, que por sua vez estava só um ponto acima de estática. Ouviu portanto com pouco interesse os acordes doloridos da música; mas depois de três cantores diferentes cantarem três canções de sofrimento sobre a mulher que os deixou, ele desligou o rádio, irritado, e continuou a conduzir em silêncio.
Percebeu rapidamente que tinha sido um erro. Nos vinte quilómetros seguintes o pensamento dele ganhou asas e voou para longe. O IRS. Barbara. O incêndio. A loja. Barbara. Impostos. Fogo. Até música country era melhor do que isto.
A temperatura continuou a subir. Ele bebeu o resto da água da segunda garrafa e voltou a despejar uma parte da terceira garrafa na cabeça, mas desta vez não resultou tão bem. Pelo menos ele tinha estofos de tecido em vez daquela imitação barata de couro: conduzir com a pele a colar-se naquele material a ferver teria sido muito pior, e a viagem já estava a ser suficientemente desconfortável.
Olhou para o assento do lado: a pilha de papéis do seguro seguia lá viagem, com um dos sacos de roupa a servir de pisa-papéis. Ele tinha dado uma vista de olhos aos formulários quando o agente de seguros lhos tinha entregado, e eles queriam toda a espécie de informação, provavelmente até o nome de solteiro do pai e o signo do avô. Tinha havido um incêndio, pelo amor de Deus! A maior parte dos seus documentos tinha perecido. Como é que eles esperavam que ele lhes pudesse dar informação sobre as finanças do negócio se toda a informação tinha ardido?
Não. Esta não era a altura certa para pensar nisso. Era altura de ouvir má música country e meditar enquanto conduzia pelo deserto.
O ponteiro do velocímetro passou os cento e trinta quilómetros por hora. Sem trânsito na estrada, não havia nada que o impedisse de acelerar; e era pouco provável que a polícia se interessasse por ele numa auto-estrada deserta.
Nesse preciso momento, viu outro carro a dar-lhe sinal de luzes. Encostou, a vociferar. Já conhecia o procedimento: pegou nos documentos do carro e na carta de condução e entregou-as ao agente da polícia, que lhos devolveu juntamente com uma multa, tudo de forma muito civilizada; quinze minutos depois já estavam ambos de volta à estrada.
A temperatura estava agora a subir mesmo a sério. Ele despejou o resto da terceira garrafa de água na cabeça e quase que a sentiu evaporar-se ao tocar-lhe na pele. Bebeu depois a quarta garrafa de um só trago, o que não ajudou grande coisa. Parou então numa pequena bomba de gasolina que anunciava ser a única nos próximos cem quilómetros e atestou de novo o depósito. A gasolina era caríssima e ele estava a ficar sem dinheiro, mas com o azar com que andava nestes dias, era melhor não arriscar a alternativa.
Uns minutos depois começou a perder o sinal da estação de rádio country, e começou desesperadamente à procura de outra, mas a única coisa que conseguiu encontrar ali, no meio do nada, foi uma estação religiosa. Porque diabo estava uma estação destas a transmitir a meio de um dia de semana? Nem sequer era domingo. Não era suposto estas rádios limitarem-se a transmitir pela noite dentro, quando não havia perigo de incomodar gente decente?
"Estes eeee-volucionistas heréticos querem convencer-vos de que foi tudo um acidente", dizia o pregador. "Se encontrasses um relógio no meio de um campo, dizias 'que estranho, todas estas peças de metal se juntaram por acaso no meio de um campo de maneira a poderem marcar o tempo'? Que conclusão tão estúpida, ridícula, sem sentido, asinina, bronca, tola, palerma! Ou ias achar que alguém tinha construído esse mecanismo complexo com um objectivo em vista? Um relógio vem de um relojoeiro, tão certo como a noite segue o dia!"
"Pois", disse ele irritado na direcção ao rádio, "um relojoeiro imbecil que, ou não sabe, ou não quer saber se deixa um relógio no meio de um campo estúpido qualquer. Se calhar foi o dono que o perdeu ou o deitou fora porque não funcionava em condições. Então e se deixasses uma barra de ferro no tal campo e voltasses uns meses depois e a encontrasses coberta de um pó vermelho? Achavas que alguém a tinha pintado, não? Ou achavas que tinha enferrujado, seu cretino!"
Mas o pregador do rádio ignorou-o. "O que esta gente não consegue discernir é que tudo é parte de algo maior, algo tão grande que nós não conseguimos ver todos os detalhes. O plano de Deus é tão grande que nos envolve como um cobertor, quente e macio. O plano de Deus é vasto e existe para todos nós, e todos temos um papel nele."
"O plano de Deus inclui reduzir a minha loja a cinzas?", disse ele, agora a gritar para o rádio. "Deus quer que eu fique na rua e na bancarrota? E o IRS, também é alguma parte obscura do plano de Deus? Deus precisa assim tanto dos meus oito mil dólares? Faz parte do plano de Deus passar-me uma multa? Ou fazer com que a Barbara me deixasse? O que é que o plano de Deus me traz? Onde raio está esse cobertor de amor e conforto? É um cobertor todo comido pelas traças, é o que é!" Bateu furiosamente no botão do rádio para o desligar. O suor na sua cara misturava-se com lágrimas, fazendo-lhe arder os olhos e dificultar a visão. Se houvesse trânsito podia ter havido problemas, mas não havia ninguém à vista com quem ter um acidente, e ele lá conseguiu manter o carro na estrada.
Até o silêncio, até os próprios pensamentos eram melhores do que ouvir aquele lixo, mesmo que fossem pensamentos de raiva, confusos, depressivos e desesperados. Ao menos eram os pensamentos dele, e não de um aldrabão hipócrita qualquer.
Ele acabou com a água mais depressa do que esperava, bebendo metade e despejando a outra metade na cabeça. Mas serviu de pouco; ainda estava um calor insuportável.
Terceiro Acto
A princípio ele pensou que fosse uma miragem; mas como a imagem estava bem definida e aumentava de tamanho à medida que ele se aproximava, devia ser real. Tratava-se uma mansão grande de pedra branca brilhante. As filas de janelas, uma em cada andar, reflectiam o sol da tarde. A entrada estava protegida por um alpendre comprido suportado por colunas de mármore branco, e em frente da casa havia um relvado rectangular que contrastava com o deserto estéril a toda a volta. Ele conhecia esta estrada e não se lembrava de nenhuma casa como esta, mas a última vez que tinha passado aqui já tinha sido há alguns anos, e não era de admirar que as coisas tivessem mudado entretanto.
A casa ficava cerca de trinta metros afastada da estrada, com a entrada de frente para esta. À volta era tudo plano, sem nada que quebrasse a monotonia da paisagem à excepção de algum mato aqui e ali e alguns cactos solitários; até as montanhas, uma constante da paisagem californiana, eram apenas uma sombra azul no horizonte distante.
Ele estava demasiado concentrado na própria desgraça para perder muito tempo a pensar na casa. Era como se uma nuvem negra ensombrasse tudo o resto, e assim ele ignorou a mansão e continuou a conduzir. Ou, pelo menos, era essa a sua intenção. Do nada, o motor começou a falhar e parou, e o velho Corolla foi perdendo velocidade até parar quase em frente à rampa de acesso à casa. Ele só conseguiu conduzi-lo até à berma de maneira a não estar no meio do caminho de outros carros que viessem atrás dele - não que houvesse grande probabilidade de isso acontecer.
O ponteiro da gasolina mostrava o depósito pela metade. Ele rodou a chave na ignição algumas vezes, mas tudo o que se ouviu foi um ruído lamuriento. "Porra!", gritou ele para o carro, a dar murros no volante. "Porra, porra, porra, porra, porra! Porquê eu? E tinha que ser agora? Eu sabia que não devia ter confiado nesta lata velha para fazer uma viagem destas!"
Atirou um olhar quase enojado para a papelada da seguradora no assento do pendura debaixo do saco com roupa, saiu do carro e atirou furioso com a porta. Abriu o capot para examinar o motor, mas era um gesto fútil - ele não percebia nada de motores, não fazia ideia do que procurar e ainda menos ideia fazia de como reparar o que quer que fosse que por acaso encontrasse.
Olhou impacientemente para o relógio: meio-dia e trinta e cinco. Estavam de certeza quase quarenta graus, a temperatura ainda ia subir à medida que o dia avançasse, e não havia uma brisa que fosse. Ele ia ter de fazer alguma coisa se queria chegar ao rancho antes de a noite cair. Tirou o telemóvel do bolso, mas não ia ser grande ajuda - não tinha rede. Também, quem é que ia construir uma torre de telecomunicações no meio do nada para lebres e coiotes? Atirou o telemóvel para o deserto com toda a força que tinha. "Não prestas para nada!", gritou ele. "Serves para quê, afinal? Para que é que serve isto tudo?" Deu um pontapé de frustração no carro e engoliu um soluço. "Para que é que serve isto tudo?"
O que ele queria realmente fazer era entrar para o carro e enrolar-se no banco de trás e choramingar; quem sabe até chuchar no dedo, tal como um bebé, e o universo podia seguir o seu caminho e deixá-lo para trás. Era capaz de ser melhor isso do que o que tinha andado a fazer até agora.
Olhou então para cima, para a mansão. Pelo menos podia pedir para usar o telefone deles e chamar a Assistência em Viagem; se bem que, com o azar dele, provavelmente não estaria ninguém em casa...
Olhou então para as suas roupas. Apesar de ter despejado várias garrafas de água por si abaixo, o calor do deserto já as tinha secado. À falta de um pente, passou os dedos pelo cabelo e meteu pelo acesso à casa, contente por, pelo menos, não ser uma noite escura de tempestade, porque aí podia até estar a entrar no covil do Drácula ou do Frank N. Furter ou alguém do género.
Tão absorvido ia ele nestes pensamentos tenebrosos que já estava quase a meio do acesso à casa quando viu o boneco de neve no relvado junto ao alpendre. Tinha de ser uma daquelas decorações de Natal de plástico, pensou. Alguém tinha um sentido de humor muito especial, deixar uma coisa assim cá fora no meio de Julho; ou então alguém era muito preguiçoso para ir arrumar o boneco, uma das duas.
Mas, à medida que se ia aproximando, o boneco parecia cada vez mais feito de neve a sério. Era um boneco tradicional, com três bolas de neve, umas em cima das outras, a de baixo quase um metro de diâmetro, a do meio pouco mais de meio metro e a da cabeça um palmo e meio mais pequena. Os olhos eram duas ameixas pretas, o nariz era um pickle de pepino e a boca era feita de cerejas alinhadas num sorriso. Tinha ainda um cachecol amarelo e vermelho a marcar o pescoço e, na cabeça, em vez do tradicional chapéu alto, um boné de basebol dos Oakland A. Os braços eram magricelas para o corpo rechonchudo - eram feitos de dois paus espetados nos ombros. Ele avançou até ao boneco de neve e tocou-lhe: estava frio. Era mesmo feito de neve verdadeira, e estava aqui neste relvado com quarenta graus debaixo do sol escaldante do deserto em pleno mês de Julho. Recuou então devagar, sem conseguir tirar os olhos do boneco, que ali estava, impávido e sereno, claramente sem qualquer intenção de se deixar derreter.
Por fim, sacudiu a cabeça rapidamente para afastar daqui o pensamento; havia muitos outros assuntos mais prementes de momento. Subiu assim os quatro degraus até à varanda, aproximou-se da grande porta da frente, e tocou à campainha.
A porta abriu-se passados alguns segundos e ele deu por si a olhar para a mulher mais bonita que alguma vez tinha visto. Era baixa – ele media só um metro e setenta, e ela mal lhe chegava ao nariz – mas essa era a única coisa que ele talvez pudesse ter considerado menos perfeita nela. Tinha proporções perfeitas, nem demasiado voluptuosa, nem demasiado maria-rapaz. O cabelo castanho-escuro, cortado curto, emoldurava um rosto também perfeito, com olhos castanhos brilhantes, um nariz atrevido e uma boca pequena e cheia de vida. Vestia uma espécie de macacão comprido preto de cetim. As calças eram largas e fluidas; a parte de cima eram duas faixas de tecido que partiam da cintura, subiam pelo tronco e atavam atrás do pescoço. Estava a usar sapatos de salto baixo pretos e as costas estavam nuas. Não era magra como algumas modelos, mas não se lhe via um pingo de gordura. Usava uma corrente fina de ouro ao pescoço, com um medalhão grande de vários centímetros de largura com pelo menos uma dúzia de luzinhas que acendiam e apagavam. Não parecia ter muito mais de vinte anos.
Ele estava tão ocupado a admirá-la que quase se esqueceu do motivo porque tinha tocado. “Hum, desculpe incomodá-la, mas o meu carro avariou-se na estrada ali à frente, e eu pensei...”
“Bem, não fique aí fora nesse forno”, disse ela, fazendo-lhe sinal para entrar. “Venha para dentro, o ar condicionado está ligado e está muito mais agradável. Bem-vindo à Casa Verde.”
“Obrigado”, disse ele, entrando. Ela fechou a porta, e ele deliciou-se com a temperatura da sala. Há horas que não sabia o que era sentir-se fresco.
Estavam numa sala com um chão de mosaicos de mármore brancos e pretos e um enorme candeeiro de cristal suspenso do tecto alto. Um corredor amplo e longo com várias portas para outras salas levava à parte de trás da mansão. Uma escadaria larga atapetada de verde-escuro levava ao andar superior.
“Detesto incomodá-la assim…”, começou ele, mas ela interrompeu-o outra vez.
“Disparate. Não incomoda nada. Não pode escolher onde o seu carro se avaria, pois não?”
“Não”, suspirou ele. “Esperava que me deixasse usar o seu telefone para uma chamada rápida.”
“Até deixava, se tivesse um.”
“Vive aqui longe de tudo sem um telefone?”
“Se eu tivesse um telefone, as pessoas iam passar a vida a tentar ligar-me”, disse ela. “Já há demasiadas pessoas a tentar falar comigo. Prefiro estar um pouquinho inacessível.”
“Mas e se tem algum problema?”, insistiu ele. “Se precisar de contactar alguém?”
“Não tenho nenhuma dificuldade em entrar em contacto com quem quero”, disse ela. “E não há problema que eu e o meu pessoal não consigamos resolver.”
“Ah, tem pessoal. Assim sempre é melhor.”
“Yep. Aliás, eu ia sugerir que o meu motorista desse uma vista de olhos ao seu carro. Provavelmente saberá repará-lo.”
“Não quero dar-lhe incómodo...”
“Oh, não me incomoda nada. O Fritz é que vai fazer isso. É para isso que ele cá está.” Ela pegou no medalhão e falou na direcção dele. “Fritz, está um carro na estrada aqui em frente que parou de funcionar. Podes dar-lhe uma vista de olhos e ver se o consegues pôr a andar?”
“Sim, Fraulein”, disse uma voz vinda do medalhão. O sotaque alemão era tão cliché que quase que se podia ouvir o bater da continência do outro lado.
“Muito obrigado”, disse ele.
Ela virou-se para o encarar. “A propósito, o meu nome é Polly.”
"Ah, hum, olá. Eu sou o Rod."
Ela inclinou a cabeça para a esquerda. "Mas não se parece nada com um "rod"1.
"Como é um "Rod", então?"
"Oh, longo, cilíndrico e duro." Ela fez um sorriso malicioso. "A menos que seja uma alcunha." Ele corou violentamente. "É, hum, é o diminutivo de Herodotus", disse baixinho. Ao mesmo tempo perguntou-se porque é que o tinha dito; era uma informação que ele quase nunca dava voluntariamente, muito menos a um estranho.
"Ah, o historiador grego!", exclamou Polly. "Que chique."
"Conhece?"
"Claro! Eu adoro a Grécia Antiga."
"Pois, o meu pai também. Era professor de cultura clássica."
"Ele devia gostar muito de si para lhe dar um nome tão nobre."
Herodotus fez um esgar de escárnio. "Herodotus Shapiro é um nome horrível para dar a um rapaz judeu."
"Eu gosto. Vou tratar-te por “tu”. Importas-te que eu te chame "Hero2"?"
"Prefiro Rod, a sério."
"Podes ser o meu Hero", disse ela, ignorando-o completamente. "Sempre é melhor que "Her3", não achas?"
"Não me faz diferença", respondeu com resignação. Ele tinha de momento problemas muito mais prementes do que aquilo que uma miúda qualquer tola e rica lhe chamava. De momento, um desses problemas era conseguir tirar os olhos do corpo deslumbrante dessa miúda tola e rica e não se babar para o chão.
Ela meteu o braço no dele e levou-o em direcção à sala que ficava à direita. "Anda para a sala e junta-te à festa!"
"Festa?" Sentiu o peito subitamente apertado. Festas estavam cheias de gente normalmente muito bem disposta, e gente bem disposta era a última coisa de que ele precisava neste momento. "Oh, eu não queria vir à penetra..."
"Não conseguias vir à penetra nem que quisesses", disse-lhe Polly firmemente. Ele sentiu-se de repente muito consciente do facto de estar despenteado e transpirado da viagem. "Acho que não ia estar à vontade. Muito provavelmente não conheço ninguém..."
"Não te preocupes, vais dar-te lindamente. É tudo boa gente, não convido ninguém que não seja."
"Mas... hum... nem estou vestido para uma festa."
"Não te preocupes, todas as minhas festas são ‘venha-como-estiver’, muito informais. As pessoas são mais importantes para mim do que as roupas que trazem vestidas. Anda!"
Ela abriu as portas de correr e levou-o para um salão cheio de gente. Uma música de fundo instrumental alegre estava a tocar enquanto as pessoas conversavam entre elas amigavelmente, e aqui e ali ouviam-se gargalhadas.
A alcatifa azul-claro estava coberta por dois tapetes persa com fundo azul-real. O papel de parede era num ton-sûr-ton de riscas horizontais azul-pastel e azul-marinho que corriam entre o tecto e os rodapés altos. Havia um sofá estilo séc. XIX comprido em brocado azul, cinco cadeiras estofadas com um padrão de jacintos azuis em losangos sobre um fundo verde-lima e, ao fundo do salão, um piano de cauda azul-bebé. Pequenas mesas de apoio de mogno em estilo antigo faziam sobressair a consola em meia-lua debaixo de um grande espelho de contornos biselados. No entanto, toda a gente estava de pé a conversar; ninguém estava a fazer uso do elegante mobiliário.
Ele examinou a multidão sem encontrar nenhuma cara conhecida. "Como é que conseguiste que todas estas pessoas viessem até tão longe para a tua festa?"
"Convidei-as", disse Polly simplesmente. "As pessoas gostam das minhas festas."
Ela carregou num botão do medalhão que tinha ao pescoço e um zumbido suave mas insistente soou no salão; os convidados interromperam as conversas para olhar para a porta.
"Olá a todos", disse ela. "Espero que estejam a divertir-se!" A maior parte das pessoas acenou com a cabeça, outros murmuraram afirmativamente.
"Óptimo!", disse Polly. "Se houver algum problema, digam-me. Quero apresentar a todos o meu Hero. Bem, na verdade o nome dele é Herodotus Shapiro, mas eu acho que Hero lhe cai como uma luva. Por favor, façam-no sentir-se bem-vindo!" Ouviu-se um breve aplauso vindo dos convidados, o que só fez com que Herodotus ficasse ainda mais embaraçado.
Polly olhou para ele: "Estás com cara de quem precisa de uma bebida."
"Não costumo beber..."
"Só um copo de vinho. Fifi!", chamou ela. Uma bela rapariga loira, nova e vivaz vestida com uma farda branca e preta de garçonette aproximou-se segurando um tabuleiro com copos de vinho. O uniforme era muito reduzido e deixava pouco espaço à imaginação, em particular no que respeitava à perfeita perpendicularidade dos seus apêndices mamários. "Oui, mademoiselle?", perguntou ela.
Polly pegou com destreza em dois copos do tabuleiro, deu um a Herodotus e ficou com o outro. "Fifi, quero que te certifiques que o Hero tem tudo o que deseja."