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A agua profunda

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– «Onde vaes?»

– «Ao seu quarto,» respondeu elle. «Obriga-la a confessar».

– «Não farás semelhante cousa. Se lhe fallas agora, comprehenderá que tudo soubeste por mim. Não farás isso, não tens mesmo o direito de o fazer…»

– «É justo» disse, fitando-a. Via-a agora como realmente era, e lia até ao fundo do seu coração. Ficou algum tempo insensivel, sem que ousasse interroga-la, e, depois, com um gesto rapido e uma grande aspereza na voz, accrescentou: «Dou-te a minha palavra d'honra que lhe não digo quem me avisou. Além de que, necessito ainda de outras provas e hei de tel-as, dou-te a minha palavra tambem…» Sahiu da sala, debaixo da impressão d'esta ameaça, sem ter para aquella que o havia impellido para o caminho da vingança, nem uma palavra, nem um gesto.

Ella viu sahir o agente do seu antigo odio, que ia emfim ver saciado, sem ter força para o deter. Que iria fazer? O intenso furor de que ia animado, não recuaria, via-se bem, deante de nenhum meio de investigar a verdade, nem deante de nenhum extremo e punição. Joanna anteviu logo uma espera feita á porta da casa mysteriosa; a chegada de Valentina no dia seguinte, no immediato, ou em qualquer dia da semana; e um assassinato…

E seria ella a causadora. Um instinctivo movimento de terror a precipitou para a porta dos aposentos da companheira de infancia.

Era ainda tempo de reparar uma parte do seu crime, prevenindo-a.

No momento, porém, de pôr a mão no fecho da grande porta, occulta por um reposteiro de seda verde, graças ao qual o ruido d'essa tragica conversa não chegou ao ouvido da calumniada – a delatora deteve-se. Encolheu os hombros e seguiu para o lado opposto, em direcção á porta que conduzia á escada de sahida, que desceu, dizendo para si:

– «Ella não nos pouparia em igualdade de circumstancias. O furor de Norberto abrandará emquanto procede ás investigações; e depois não fará escandalo por causa dos filhos. Abandonal-a-ha, restando-me em seguida fazer com que case comigo. Eu me encarregarei d'isso…»

E os seus pequeninos pés pousavam nos degráus com uma energia, como se já se achasse de posse d'aquelle palacio, no qual estava convencida, dentro em pouco, viria substituir a outra. Crispavam-se dentro das suas pequeninas botas, como se quizessem esmagar debaixo dos saltos um remorso que não conseguia anniquilar.

VII
O retrato

Sahindo, pela fórma porque o fez, do pequeno compartimento em que recebeu o terrivel golpe da espantosa revelação, Chalinhy não pensou no que fazia. Sentiu que não teria força em si e que necessitava deixar passar algum tempo antes de proceder. Era sobre tudo necessario que não visse Valentina. Se a visse, não poderia conter-se, fallar-lhe-hia com certeza no assumpto e não devia fallar-lhe. Tinha dado a sua palavra a Joanna e, além d'isso era sua convicção que não surprehenderia a culpada se não procedesse com dissimulação.

Sahiu do palacio, dizendo que não vinha jantar. Depois da scena d'essa manhã, a sahida de Chalinhy, sem se ter despedido da esposa, era de natureza a causar admiração a Valentina, mas elle calculou que se voltasse a casa não poderia ser superior aos seus nervos e provocaria uma explicação plausivel. Caminhava depressa, com receio de que Joanna de Node sahisse logo tambem, e não queria encontrar-se outra vez com ella. A presença da perigosa amante, n'aquelle momento, era-lhe physicamente intoleravel. Tinha-o ferido muito bruscamente, muito brutalmente, n'uma das mais intimas fibras do coração.

Por mais intelligentes e perspicazes que as mulheres sejam não medem com exactidão certas reacções da alma masculina, quando principalmente procedem do orgulho molestado. Onde iria o marido repentinamente ferido na sua dignidade de homem? Nem elle mesmo o sabia.

As palavras inolvidaveis resoavam-lhe ainda aos ouvidos. As imagens evocadas com intelligencia por a invejosa, fixaram-se no campo luminoso do seu pensamento em fórmas tão nitidas como se pessoalmente tivesse assistido á subida da mãe dos seus filhos para a carruagem furtiva, á descida na rua suspeita, e á entrada na casa equivoca. Esta serie de factos positivos, não deixaram a menor duvida no seu espirito suggestionado, sem que desse por isso, pela odiosa paixão que Joanna tinha desenvolvido.

Por uma invencivel e espontanea associação de idéas, as continuas impressões mal definidas que experimentou durante a sua estranha vida conjugal e que tinham por base o silencio, reappareciam agora e coordenavam-se.

Toda a timidez experimentada na frente de Valentina lhe refluia ao coração. Tinham agora para elle perfeita explicação na força da hypocrisia d'essa mulher, tão reservada, tão retrahida, que não teria mesmo ousado julgal-a capaz da mais simples leviandade, e via-a sempre, n'essas duas scenas que Joanna observou com os seus proprios olhos: sua mulher, a marqueza de Chalinhy, deslisando por entre os frequentadores do grande armazem, para transpor d'uma a outra porta – do seu coupé á carruagem alugada – como uma adultera ignobil – sua mulher a pudica, a timida Valentina, aventurar-se a ir a essa rua do arrabalde.

A visão tornava-se precisa, uma verdadeira allucinação, e a revolta contra esse angelico e puro rosto que por tanto tempo o havia enganado, sob a impressão do qual tanto se havia enternecido ainda n'essa manhã, produzia no sangue do marido ultrajado a febre do homicidio. Tendo caminhado a direito, sem mesmo saber para onde ia, chegou, sem dar por isso, á estação do caminho de ferro de Montparnasse. Parou por algum tempo defronte da gare e depois, na incerteza de saber que direcção devia tomar, uma imperiosa tentação se apoderou d'elle, invencivel desde logo, a de ir até á rua Lacépède, cujo nome desde a vespera se associava ao seu d'uma maneira, que lhe pareceu tão ridicula quando leu a carta anonyma, e que, n'aquelle momento, depois da conversa com Joanna, lhe parecia tão espantosamente insultante.

Para o inquerito a que ia proceder, até surprehender a esposa no flagrante delicto de adulterio, o grande, o unico dever da sua vida, não seria o primeiro ponto a illucidar a existencia da casa onde se realisavam as entrevistas amorosas?

E depois, mesmo sem esta rasão, não devia Chalinhy experimentar uma imperiosa necessidade de ver o local onde era arrastada a sua honra conjugal?

O ciume, uma vez despertado, tem sempre este apetite da realidade concreta e viva, que supplicia e satisfaz ao mesmo tempo. O irresistivel desejo do homem que se julga trahido é conhecer todos os detalhes da perfidia de que é victima; figurar com uma implacavel brutalidade cada episodio; experimentar o paroxismo da sua dôr ao contacto do immovel e indestructivel quadro que foi theatro do indelevel ultrage.

Começou para Chalinhy este paroxismo, quando o seu olhar encontrou pela primeira vez, sobre a placa da esquina da rua que procurava, o nome já tão detestado. A memoria do sabio naturalista e do sagaz cortezão que ella perpetuava n'este bairro de miseraveis, parecia bem mal escolhido para se associar a emoções d'esta ordem! Chalinhy tinha continuado a andar, parando, de quando em quando, como um provinciano perdido n'este grande Paris, perguntando informações sobre o caminho a seguir, umas vezes á policia e outras aos tranzeuntes.

A pequena actividade animal do movimento abrandou um pouco o seu furor.

Augmentou quando os seus pés tocaram no pavimento da rua maldita. Entrou n'ella pelos quarteirões superiores, que a rua Monge separa dos inferiores, de maneira que, não vendo logo nas duas linhas de casaria nenhum predio que correspondesse aos signaes do pavilhão, teve um momento de duvida, e, portanto, de allivio.

A inspecção dos numeros bem depressa lhe fez comprehender o seu erro. Deu mais alguns passos e do lado dos numeros impares apparecia a casa mysteriosa, tal como Joanna lha havia descripto: com as grades de ferro das janellas do rez-do-chão pintadas de preto, a porta escura elevada por trez degraus, as sacadas do primeiro e do segundo andar burguezmente guarnecidas de bambinellas de musselina, e o muro do jardimsinho com as suas tilias.

Era mais de meio dia, e o sol d'esta bella tarde de novembro estava limpo do nevoeiro que o velára durante a manhã. O céo azul pallido, onde fluctuava uma humidade doce, banhava os ramos das arvores meio despidas.

O vento destacava d'ellas, de quando em quando, uma folha côr d'ouro, que volteava lentamente e vinha algumas vezes cahir para fóra do muro. A alegria da hora do almoço enchia com a sua expansão a modesta rua. N'uma casa de pasto, de má apparencia, em cujo frontespicio estavam escriptas as seguintes palavras, cheias de promessas: «Refeições baratas», vinham instalar-se varios operarios.

Duas aprendizas, raparigas ainda, da lavandaria proxima, sahiam em cabello para irem comer, á pressa, a casa da familia, no fundo d'algum pateo de qualquer das travessas visinhas.

Algumas das janellas do pavilhão estavam abertas, e sahia fumo por dois tubos de chaminés. Se o honesto aspecto da casa havia surprehendido bastante o marquez de Chalinhy, estes indicios que mostravam ser ella habitada regularmente, mais o espantavam ainda. Não estava, então, deante da casa suspeita escolhida por dois amantes que querem ali encontrar-se, de vez em quando, durante algumas horas, occultamente. Mas, então, o desconhecido que Joanna viu chegar em carro de aluguer, era o habitante permanente d'aquelle casa? Era pouco provavel, em vista da sua attitude impaciente do homem que chega tarde a uma entrevista amorosa, e que manda esperar a carruagem para tornar a ir n'ella. Quanto mais o marido de Valentina estudava o aspecto mudo d'essa casa mais o seu frenesi dos primeiros momentos, misturado d'uma aguda curiosidade, acabava por o impellir aos actos mais oppostos ao seu caracter. Avistando um ferro velho que fumava no seu cachimbo á porta da locanda, que ficava a alguns passos de distancia, avançou bruscamente para elle e sem mais preambulos:

 

– «Queres ganhar uma nota de cem francos?» perguntou Chalinhy.

– «Ixo não se pergunta» respondeu o interrogado. Era um dos muitos ferros velhos que tanto abundam n'aquelle bairro, um Auvernhez de cara redonda, que pronunciava o xim classico dos naturaes de Saint Flour, por o «sim», apezar de viver ha trinta annos em Paris. O seu olhar vivo denunciava a esperteza campesina tão peculiar n'essa classe de vendedores ambulantes, que se fornecem das casas de bric-á-brac. Com a prudencia innata d'um filho do Cantal, acrescentou logo – sempre com a mesma pronuncia tão pitorescamente caracteristica – «Ixo depende do trabalho que tiver de fazer.»

– «Tens apenas que me responder a uma pergunta», e indicou o pavilhão: «Quem móra n'aquella casa?»

– «N'aquella casa?» respondeu o futuro antiquario, com uma finura nescia, «é o seu dono, está claro!»

– «E quem é o seu dono?» insistiu Chalinhy, imperativamente: «Dou-te duzentos francos de gratificação se m'o disseres immediatamente, senão vou perguntal-o a outra pessoa…»

– «É o senhor Dumont», respondeu o auvernhez, depois de ter reflectido. Pensou, sem duvida, que um dos seus collegas da rua seria menos escrupuloso, e duzentos francos, em Paris como em Saint-Flour, era muito dinheiro!

– «É novo ou velho?..»

– «Velho,» repetiu o homem, «e muito doente. Está paralytico. O anno passado ainda sahia de carruagem; mas este anno vio-o só uma ou duas vezes…»

– «Recebe muitas visitas?» perguntou Chalinhy.

– «Muito poucas», respondeu o provinciano a quem os duzentos francos pareciam estar já bem ganhos, e, por isso, deu a conversa por terminada com a seguinte phrase: «não posso dar mais informações, é raro chegar á porta, por isso, pouco sei. Tenho que fazer ali…» e mostrou com o cachimbo – que para esse fim tirou da bocca – o montão de fragmentos de metal enferrujado que na sua industria pareciam ainda susceptiveis de venda.

O gentil homem conhecia não poder continuar o interrogatorio sem se deshonrar aos seus proprios olhos.

Tirou da carteira as notas promettidas e passou-as para a mão do ferro velho, que, com um grande espanto, que o seu largo rosto não dissimulou, o vio atravessar a rua e ir bater á porta do pavilhão.

O plano de Chalinhy era muito simples, concebera-o rapidamente, emquanto tirava as notas. Conheceu que tinha na carteira, misturados com os seus, bilhetes de visita da esposa, e que elle se havia encarregado de entregar, o que, por um contra tempo qualquer, não tinha podido fazer. Tomou um d'aquelles bilhetes e entregou-o á pessoa que veio á porta – um creado de quarto já velho, cuja physionomia e vestuario se harmonisavam mais com o aspecto da casa do que com o do bairro. A cara barbeada, o comprido avental branco de serviço e o fato proprio correspondiam perfeitamente á idéa d'um interior burguezmente confortavel, e ainda mais á escala e atrio que Chalinhy estava observando e que devorava com o olhar. Sua mulher subiu aquellas escadas na vespera!

Guarnecia-as um espesso tapete. As paredes estavam adornadas com um estofo escarlate emoldurado por pedaços de tapeçaria expressiva e vulgarmente chamada «verduras».

Quando o recem chegado disse: «Venho da parte da marqueza de Chalinhy», a physionomia do creado ficou tão absolutamente inexpressiva como se nunca um tal nome tivesse sido pronunciado deante d'elle.

Valentina vinha então a essa casa sem que esse homem achasse a sua presença extraordinaria. Este novo indicio, d'um estranho mysterio, era de natureza a elevar ao auge a curiosidade do marido, que insistiu:

– «Entregae um bilhete ao sr. Dumont, e dizei-lhe que a senhora marqueza de Chalinhy me encarregou d'uma importante e pessoal commissão para com elle…»

O tempo que o creado demorou a ir e voltar – alguns minutos apenas – pareceu a Chalinhy tão longo que os mais desorientados projectos atravessaram o seu pensamento. Lembrou-lhe subir elle mesmo ao primeiro andar e forçar a porta do aposento d'esse tal Dumont que evidentemente o ia despedir, o que não era justo. Esta maneira de se apresentar pareceu-lhe impropria. Comprar o creado quando voltasse e obter sobre os frequentadores e frequentadoras da casa as informações que o ferro velho não tinha sabido dar; recusar-se a sahir quando lhe viessem dizer que o senhor Dumont não estava em casa, tudo lhe passou pela imaginação.

Em breve o criado veio tiral-o de difficuldades, convidando-o a entrar n'um gabinete do primeiro andar, que servia de ante-camara. Depois retirou-se, dizendo:

– «O senhor Dumont pede desculpa de o fazer esperar algum tempo. Esteve muito incommodado esta manhã mas virá o mais breve possivel…»

Posto que a certeza d'uma explicação, que tinha para elle uma importancia tão tragica, concentrasse o espirito de Chalinhy n'uma unica e fixa idéa: «como forçar aquelle homem, quando entrasse, a confessar a verdade?» não poude furtar-se á tentação de olhar em volta de si. A sala em que se achava tinha uma janella para a rua. Na frente abria-se uma porta, que o criado com a precipitação, não fechou completamente. Chalinhy empurrou-a, com um gesto quasi machinal, e viu um segundo compartimento cujo aspecto causou a sua admiração: era uma especie de salão bibliotheca, illuminado por tres janellas que davam sobre o jardim, para o lado do qual o pavilhão tinha a fachada principal. Esta especie de galeria era vasta e estava mobilada com uma elegancia pessoal e sobria. Grandes cadeiras de espaldar, estofadas, ao estylo do seculo 17.º, mas que se via serem de construcção moderna. Os livros todos encadernados, estavam dispostos com ordem em estantes baixas, nas ultimas divisorias das quaes se viam fragmentos de marmore e de tijolo. Um buffete collocado proximo d'uma das janellas do jardim tinha ao pé uma poltrona com rodas o que justificava a informação dada pelo auvernhez com respeito á doença do dono da casa, o qual devia permanecer de preferencia n'este salão, a julgar pela alcatifa já bastante usada. As paredes estavam completamente cheias de varios objectos; quadros a oleo, aguarellas, quadros em cobre, armas cinzeladas etc., etc. Deante da secretaria, um cavalete guarnecido d'um estofo antigo de côr rosa palida, com grandes flores de prata, sustentava um quadro oval.

Chalinhy approximou-se do quadro para o observar, e ao vel-o, teve que sentar-se, tal foi o seu espanto pelo inesperado, ao reconhecer a pessoa cujo retrato estava reproduzido na tela. Era sua mãe.

Sua mãe?.. Sim, era ella, e pintada por um artista de que bem depressa conheceu a obra e a assignatura: Miraut. Existia um retrato della, de corpo inteiro, pintado pelo mesmo artista, no salão do palacio Chalinhy. Esse grande retrato tinha sido feito no mesmo anno – indicado n'um dos cantos da tela: 1875. Foi na epocha em que aquelle pintor, hoje velho, estava em plena voga. Os filhos não tinham nunca visto esta reproducção, que continha sómente a cabeça e o busto. Sim, era sua mãe, não tal como a havia contemplado no leito da morte, quatro annos antes, envelhecida prematuramente, pela terrivel doença que a victimou, um cancro no figado, com o rosto emmagrecido, amarellecido, e torturado pela dôr – mas a «mamã» da sua infancia, com os seus bellos olhos avelludados d'então, tão negros e tão doces no seu olhar d'uma idealidade digna de Prudhon; com o seu sorriso feliz nos labios finos e flexiveis; com as madeixas escuras dos seus cabellos que apartava na frente em dois bandós ondulados, á moda d'então, com a linha correcta e cheia dos seus encantos, e com a dôr do seu rosto, que tinha a delicadeza da petala da rosa.

Porque estranho acaso este retrato se encontrava ali, deante d'esse «bufete», n'uma sala d'esta casa onde vinha, elle, o filho d'essa mulher, procurar a explicação d'um segredo que affectava a sua honra de marido? Um acaso? Não. Sobre o mesmo «bufete» existia tambem uma moldura de couro, com tres divisorias, onde se viam tres photographias de sua mãe, em epochas differentes, – uma mais nova do que o retrato, outra da edade de quarenta annos, e a terceira da edade de cincoenta; e, ao lado, n'uma moldura oval, escura, a reproducção d'uma outra photographia que elle, Chalinhy, lhe mandou tirar depois de morta.

Uma madeixa de cabellos se divisava através o vidro, e a data do anniversario para elle sagrado: «5 de setembro de 1897» lia-se a um canto do cartão. Estaria sonhando? Ainda mais, n'uma terceira moldura, que fazia «pendant» com a primeira, appareciam-lhe agora photographias suas: uma que o representava ainda creança, outra aos dezeseis annos, e ainda outra recente! … Vendo, como em certos casos de allucinação, a reproducção da sua propria pessoa, não teria experimentado uma impressão mais violenta, tão violenta, que chegava ao terror…

Onde estava?.. Em casa de quem? Que occulta ligação, e de que nunca sequer suspeitára, o unia á pessoa que ali vivia entre esses objectos, e que o conhecia desde a infancia, que conhecia sua mãe desde muitos annos, que conhecia sua esposa – sem elle o saber?

Um novo indicio, que mais fez desvairar a sua razão, confirmava a denuncia que o conduzira áquella casa: n'um biombo de seda, collocado defronte da janella, e no qual se achavam suspensas varias miniaturas de familia, viu tambem pequenas photographias de Valentina e dos filhos.

A estranheza d'uma descoberta, tão completamente imprevista, que chegava a ser phantastica, o silencio d'esta sala tão reservada, que o ruido da rua já de si silencioso difficilmente ali chegava, o contraste entre o que procurava e o que vinha encontrar – tudo contribuiu para mergulhar Chalinhy n'uma especie de hypnose, de que o despertou de repente, a approximação d'um homem, ao qual dez minutos antes se preparava para exigir uma explicação, ainda mesmo pela ameaça.

Uma porta de dois batentes, que um reposteiro disfarçava entre duas estantes, se abriu repentinamente. O ruido d'uma pesada cadeira de rodas annunciou a chegada do doente. O senhor Dumont – porque era elle – estava immovel na sua cadeira mechanica, que um enfermeiro empurrava. O paralytico era um homem de sessenta annos, pouco mais ou menos, todo branco, e que devia ter sido muito bello, porque o seu rosto, emaciado pelos longos soffrimentos, conservava as largas e nobres linhas que revelam a raça.

Ligeiras deformações: a bocca um pouco torta e o olho direito algum tanto elevado, marcavam na sua cara, de uma infinita melancholia, o stygma da inexoravel nevrose. O braço direito, que não podia mover, repousava, inerte, sobre a perna, emquanto que com a mão esquerda movia um punho de cobre ligado á cadeira e com o qual lhe dava a direcção desejada. O fato, muito apurado, revelava as minucias dos seus cuidados pessoaes, tão raros n'estes condemnados á morte, e que são como que um ultimo e pathetico protesto contra a sua inevitavel perda. O brilho dos olhos, tão notavel n'estas longas agonias, denunciava a lucta desesperada da energia animal contra a morte proxima.

Não exprimiam esses olhos, brilhantes e muito negros, emquanto as rodas da cadeira giravam deante da porta, nenhum presentimento da impressão que n'elles ia apparecer em breve. É necessario dizer – e é a explicação da facilidade com que o visitante foi recebido – que, na sua ultima visita á rua Lacépède, n'essa funesta segunda-feira a marqueza de Chalinhy falou ao doente d'um negociante que tinha lindas estatuetas do seculo XVIII.

A acquisição d'algum d'esses objectos raros, capazes de figurar n'uma das suas estantes ou na grande vitrine ao fundo da galeria, era a unica alegria do paralitico. Por um mal entendido, quiz a fatalidade que o negociante que Valentina mandou a casa do sr. Dumont, se esqueceu de lá ir. Quando a sua cadeira rolante transpoz o limiar da porta e que viu, em logar do bric-a-braquista, a figura de Norberto de Chalinhy, a sua mão esquerda crispou-se no braço do movel, n'um movimento quasi convulsivo. Endireitou o busto e uma emoção d'uma intensidade extraordinaria lhe descompoz as feições. Da sua bocca offegante escapou-se um intenso grito e bradou aos creados que o acompanhavam, n'uma ancia angustiada: «parem, parem…». Pararam com effeito, a tempo de Chalinhy, immovel de surpresa deante d'esta tragica apparição, ver duas grossas lagrimas a saltarem dos seus olhos fixos e deslisarem pelas faces macilentas e cavadas. Em seguida o velho disse, como n'um gemido: «entre, mas entre, entre…». A angustia que se traduziu nas suas palavras causou, sem duvida, admiração aos creados, habituados aos signaes da approximação da crise. Fizeram recuar rapidamente a cadeira e fecharam a porta. Ainda Chalinhy estava sob a impressão do grande abalo que lhe produzira esta scena, tão terrivel como rapida, quando um dos creados, precisamente o que o recebeu, tornando a apparecer, a tremer todo e n'uma grande afflicção, lhe disse:

 

– «O patrão está com um ataque, e não ha ninguem em casa senão eu e o enfermeiro…»

– «Onde mora o seu medico?», perguntou Chalinhy. «Eu me encarrego de o ir chamar».

– «Oh! senhor», respondeu o creado, «não ousava fazer-vos esse pedido!.. Mas depressa, depressa. Ao meio dia e meia hora ainda o encontra em casa. É o doutor Salvan, e mora no boulevard de Saint-Germain, n.º 30.»