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A agua profunda

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O seu orgulho por causa d'esse casamento era tão profundo, tão completo, que acabara de cicatrizar a antiga ferida da inveja. Taes cicatrizes estão, porém, sempre tão proximas de reabrir!

Nunca, antes, nem depois, estimou tão intensamente sua prima.

Chegára ao extremo de a lamentar, quando comparava o brilhante destino que a esperava com o futuro da supplantada Valentina. Mais tarde teria ella que lhe inspirar egual piedade, mas sem ser fingida.

Faz-se só justiça reconhecendo, para explicar, ou antes desculpar as amarguras das suas desillusões, que se este casamento tinha, a despeito das apparencias seductoras, motivos para não ser muito venturoso, tinha tambem outros para não ser completamente infeliz.

Joanna teve um só filho que nasceu em condições bem tristes.

Foi necessario sacrificál-o para salvar a mãe. A maternidade foi-lhe, desde esse momento, defeza.

Seu marido, que procurava como tantos outros augmentar a furtuna, transaccionando constantemente com os cento e vinte mil francos que constituiam o liquido dos seus haveres, encontrou-se compromettido, pouco a pouco, por muitas especulações infelizes. Jogou para reparar as perdas e perdeu mais. Pediu a assignatura de sua mulher, que lh'a deu a principio, negando-lh'a depois, por conselho dos paes, para não prejudicar a sua independencia.

As questões de dinheiro transformaram-se, para este casal sem filhos ao qual uma continua dissipação perturba a energia moral, em discussões a principio violentas e que depois degeneraram em disputas. De scena em scena, a separação tornou-se inevitavel. Deu-se antes de findar o setimo anno d'este bello enlace, tão «auspicioso» como diziam as noticias de certos jornaes, quando se celebrou. Durava já havia quatro annos, e Joanna esperava sem cessar que seu marido pedisse uma desligação mais completa dos laços conjugaes, para ficar inteiramente livre e reparar, por uma nova união, a sua fortuna reduzida a menos d'uma terça parte. Esperava isto, e, apezar das ideias religiosas que professava e das da sociedade em que vivia a constituissem na obrigação de resistir a um tal projecto, desejava-o ardentemente.

O artigo 310 do Codigo Civil que permitte a um dos dois conjuges fazer transformar uma simples acção de separação de pessoas em divorcio, havia um certo tempo constituia o objecto unico das suas meditações, visto que um tal artigo lhe abria as portas d'um segundo casamento, muito embora se achasse em contradicção com a sua attitude, contrariando a familia, e a sociedade o levasse a mal.

Tudo isto nada valia para ella em face da precaria existencia que levava, n'um segundo andar da rua Barbet-de-Jouy, aonde se tinha refugiado, apenas com alguns mil francos de renda, – tanto quanto gastava em toilettes no principio da sua vida de casada – e a dois passos do sumptuoso palacio em que habitava a prima, transformada em marqueza de Chalinhy!

A cada desastre na vida de Joanna correspondia uma mudança feliz na de Valentina, o que para aquella era como que agudo punhal revolvido na ferida e cuja ponta resvalasse até o mais intimo da sua alma e rasgasse a sua propria carne.

Na mesma occasião em que dava á luz, no meio de torturas, o filho para sempre perdido, casava Valentina com Chalinhy, vinha, em seguida habitar um sumptuoso palacio na rua Varenne, digno de se comparar com o historico Nerestaing que lhe pertencia.

Um anno depois dava á luz uma filha, e passado outro anno nascia um menino, que viviam, cresciam, e cujos encantos faziam a felicidade do casal. E, depois, umas após outras, inexperadas heranças deram á feliz mãe uma opulencia que ultrapassava muito as mais exigentes ambições que havia sonhado para seus filhos. Da mesma maneira que o barão de Node, Chalinhy frequentava as altas regiões do sport e da moda, com a differença, porém, de ser tão bom administrador da sua fortuna, como aquelle era dissipador.

Possuia um geito e feitio especial para defender os seus interesses, não muito vulgar nas existencias de luxo e prodigalidade.

Porque se nem todas as pessoas abastadas se arruinam, para conservar uma fortuna é quasi necessaria tanta habilidade como para a adquirir. Tinha, pois, um dom caracteristico de bem calcular, qualidade esta que é, em geral, independente da nossa intelligencia e dos nossos habitos. A prova está em que esse invejavel predicado, de conservar a riqueza adquirida, se encontra tanto na sociedade mais ignara como na mais illustrada, ou na mais correcta burguezia.

Chalinhy não apostava a favor d'um cavallo que não ganhasse; não dava ao seu agente na bolsa ordem para realisar uma compra que os valores negociados não tivessem uma alta imediata, e comtudo era mediocre cavalleiro e não menos mediocre bolsista. E se percebia pouco de questões d'arte, raras vezes se enganava na compra de qualquer objecto artistico. E assim em tudo o mais.

N'uma palavra, á medida que o viver dos Node se tornava desagradavel, o dos Chalinhy era cada vez mais intimo e affectivo, espandindo-se e revelando-se o seu bem estar pelo menos n'estas manifestações exteriores que fazem dizer ao publico: «que familia tão feliz.»

Como não havia, pois, de reapparecer a antiga inveja cada vez mais forte, mais intensa, mais arreigada, no coração da prima, separada do marido, arruinada, vagamente desacreditada ja; como não havia ella de repetir sempre que passava, em carruagem alugada ao mez, defronte do perystilo do principesco palacio da rua Varenne o «porque ella e não eu?» murmurado, quando era ainda creança, á vista das quatro soberbas torres ameadas do Castello de Nerestaing.

Perigosas palavras, mas que ficariam todavia ineficazes como tantas outras exclamações de ciume e inveja, soltadas a cada momento n'esse Paris de luxo e ostentação, por tantas vaidades humilhadas, ás quaes serve de atroz supplicio a visão da opulencia exhibida pelo proximo.

Quiz a infelicidade que Valentina ou não advinhasse sequer a existencia de taes sentimentos, ou então que, se realmente os surprehendeu, pretendesse por uma excessiva generosidade dissipal-os á força de bondade. É a peor e mais perigosa falta que a invejada pode commetter para com a invejosa.

Certos processos demasiadamente generosos, pela superioridade moral exasperam ainda mais a funesta paixão.

No caso presente, havia ainda um outro perigo, que consistia, sobre tudo, em a parente mais rica associar em todas as suas diversões a menos afortunada. Almóços, jantares, excursões pela cidade, passeios ao campo, um camarote no theatro, tudo servia de pretexto a Valentina para poupar a Joanna a mais pequena despeza e para lhe proporcionor ainda os maiores prazeres.

Não reflectia, porém, não pensava que tendo Joanna junto de si era tel-a tambem sempre proxima de seu marido.

Não ha nada mais propicio ás seduções do que esta intimidade entre um homem novo e uma mulher galante, que um proximo parentesco torna naturalmente familiares, que se chamam pelo nome de batismo, sahem juntos sem que ninguem se admire d'isso, escrevem-se quando estão separados, habituam-se emfim, a todas as intimidades do amor, n'uma amizade bem depressa perturbada, se um d'elles se deixa invadir de pensamentos que não sejam d'uma lealdade e simplicidade absolutas.

Depois de tantas humilhações, a tentação de tirar uma desforra, roubando a Valentina o coração de Chalinhy, tornou-se irresistivel para Joanna.

Tal foi a primeira ambição d'um instincto de vingança feminina, já de si bem perfida.

Estes desejos de exercer influencia nos sentimentos são sempre acompanhados d'uma garridice physica, que tem por fim excitar n'aquelle que vizam a emoção ingovernavel dos sentidos.

Uma vez entrados n'este caminho a provocadora e o seu cumplice não podem mais responder por si.

O obscuro e terrivel animalismo que impera, a despeito do nosso orgulho e das conveniencias sociaes, nas relações do homem e da mulher, exerce por fim o seu predominio fatal.

Quer-se preocupar o marido d'uma rival, prendel-o, perturbal-o – e desperta-se, como aconteceu a Joanna de Node, a amante d'aquelle com quem sómente se pretendia brincar – e nada mais.

Passava já d'um anno que esta ligação começara e em logar de encontrar n'este triumpho sobre sua prima escarnecida e enganada, uma pacificação para o seu odio, a culpada sentia cada vez maior exaspero. Por uma contradicção que mostrava absoluta confiança de Valentina, longe de amortecer o rancor de Joanna, ao contrario, apenas o irritava.

O papel de tola, desempenhado pela marqueza de Chalinhy, era revestido de muita delicadeza e muita innocencia! Tão morigerada, tão completa, tinha uma tal maneira de não ver o mal, que não permittia motejos. Não dava pela sua existencia, pela simples razão de que nunca o havia praticado, nem mesmo pensado em o praticar. O mundo que começava a perceber a existencia da intimidade entre Chalinhy e Joanna, não acreditava, sem reservas, na ignorancia da marqueza.

«Finge que não percebe, por causa dos filhos…» dizia-se. A baroneza de Node, porém, sabia perfeitamente como lhe tinha sido facil abusar d'uma creatura que se julgaria aviltada por suppôr a sua companheira d'infancia capaz d'uma infamia. Sabia tambem, ou antes advinhava, que esta situação ridicula, para qualquer outra, d'uma esposa enganada por uma das suas parentas mais proximas e quasi que á sua propria vista, não provocava no seu meio, nenhum epigramma contra Valentina.

As más linguas misturavam, involuntariamente, á sua ironia sobre uma tal ingenuidade a expressão irresistivel d'uma estima forçada.

As mais crueis diziam: «Chalinhy tem razão, a sua casta mulher é tão fastidiosa!..» ou então: «esta pobre Valentina é realmente muito bondosa.»

O que lhe acontece é perfeitamente natural… ou ainda: «Esta Chalinhy é em verdade virtuosa, bonita, terna e perfeita; mas não sabe agradar ao marido! É o seu unico defeito; tanto peor para ella…»

 

Estes ditos e outros iguaes, onde se aprecia a honra do mundo, em presença d'uma perfeição que desconcerta o seu pessimismo facil, marcam o extremo da malevolencia.

Não impediam que a marqueza tivesse em volta de si uma atmosphera dum respeito cada vez mais deferente, e que a sua feliz rival não percebesse nos mais insignificantes indicios o começo de uma desconsideração.

Uma mulher nova, que se sabe tem um amante, é logo tratada pelas outras mulheres com uma curiosidade, e pelos homens com uma attenção igualmente insultantes.

Adivinha nos olhares d'ellas o interesse curioso e por vezes insolente, que as prende ás clandestinas aventuras amorosas; e no d'elles a secreta esperança d'um amor possivel.

Contra esta condemnação da sua falta pela sociedade, a mulher que ama não tem senão um refugio, a felicidade que dá ao ente amado. Ai! Não foi necessario muito tempo para Joanna perceber que não fazia a felicidade de Chalinhy, e que o obstaculo a essa felicidade provinha da profunda affeição que este homem tinha, por quem? Pela propria esposa que trahia! Muitos maridos infieis são assim: a familia não consegue amortecer n'elles, de todo, os apetites de gôso e de variedade, que adquiriram em solteiros.

A familiaridade quotidiana diminue e como que amortece o amor. Acontece mesmo, é até um caso muito frequente, que a existencia lado a lado, em logar de produzir a afinidade, a fuzão dos corações, a diminue, e que, apezar de se verem todos os dias, muitos esposos é como se não se vissem.

Ainda mesmo que a mulher não seja tão pudica e reservada e o homem severo e susceptivel, como eram Valentina e Norberto de Chalinhy, estes retrahimentos intimos tomam por vezes uma tal intensidade, que dão a explicação facil de muitos erros.

Mas se estas impressões de monotonia e de friesa collocam o que as experimenta, no lar conjugal, á mercê de todos os caprichos dos sentidos e até do coração, não deixam com tudo de se achar presos a esse lar, que abandonam, pelas suas affeições mais intimas.

Engana sua mulher, e não deixa ella por isso de ser a que usa o seu nome, a mãe de seus filhos, a companheira que occupa no seu pensamento um logar unico.

Mente-lhe mas respeita-a. Ultraja-a em segredo, e os seus devaneios não o impedem de pôr acima, muito acima das amantes d'um momento, a companheira das horas principaes e mais sérias da sua vida.

Foram estes os sentimentos que Joanna de Node encontrou sempre no coração do amante, durante os doze mezes da sua ligação, os quaes, facilmente se adivinha, produziam a irritação constante, a tortura permanente da ferida que a inveja abrira na sua alma!

Se acontecia fazer a menor observação critica que podesse attingir Valentina, ainda que muito de longe, uma visivel sombra de contrariedade passava logo pelo rosto de Chalinhy e o seu olhar tornava-se severo. Se fazia uma allusão á possibilidade de a intriga amorosa, em que se achavam envolvidos, ser descoberta pela esposa enganada, a angustia do olhar do seu cumplice mostrava bem evidentemente qual o grande apreço em que tinha a estima de sua mulher.

Quando surprehendia um d'estes indicios da persistente affeição de Norberto por aquella que detestava, com um odio misturado de remorsos, redobrava de sedução junto d'elle.

Tinha o maior interesse em dominar cada vez mais esse homem, e todavia via-se forçada a prendel-o apenas pelas mais obscuras fraquezas do seu ser e a seduzil-o pela sensualidade.

N'este brutal dominio era ella a mais forte e esta evidencia rebaixando-a aos seus proprios olhos, mais excitava ainda a sua inveja.

Calcule-se agora o resentimento que devia produzir n'esta alma perturbada, completamente minada por pensamentos d'esta ordem, a seguinte inexperada descoberta: A duqueza de Chalinhy não era o que parecia? Tinha um segredo na sua vida? Esta irreprehensivel esposa, cujo marido a si proprio não perdoava o trahil-a, corria Paris n'um trem, emquanto seu marido a julgava em casa muito resguardada? Tinha encontros clandestinos, deixando a carruagem á porta d'uma casa com varias entradas – exactamente como fazia a propria Joanna, quando ia encontrar-se com Chalinhy? Este modelo de virtudes, cujo elogio tanto a havia humilhado desde creança e ainda hoje a humilhava mais cruelmente, não passava d'uma hypocrita, d'uma comediante? Era possivel?

III
Primeiros esforços

É possivel? Joanna tinha os maiores desejos de responder «sim» a esta pergunta, para que o seu pensamento se apressasse a colligir e amontoar os argumentos que podiam confirmar esta inexperada, esta fulminante descoberta.

Quando viu Valentina fechar a porta da carruagem que a conduzia para um recanto occulto d'esse grande Paris – tão propicio a encontros mysteriosos, – invadiu-a uma violenta commoção.

N'um só momento, o procedimento da sua orgulhosa prima tinha-a rehabilitado aos seus proprios olhos, rebaixando aquella ao seu nivel.

E, posto que o facto de Valentina ter abandonado a carruagem á porta do grande armazem, lhe provasse que a sua primeira supposição era racional, a sua excitação tornára-se tão viva que se não sentia capaz de esperar – o que era natural – que a senhora de Chalinhy voltasse, a fim de verificar a attitude d'esta, interrogal-a mesmo e observar o seu natural embaraço.

Bastar-lhe-hia metter-se no coupé abandonado, de maneira que no momento da entrada, depois da visita clandestina, a marqueza a encontrasse na sua frente e fosse violentada a confessar tacitamente a falta, só pela natural confusão.

Um tal procedimento exigia, porém, um sangue frio de que Joanna se não julgava capaz. Mostraria logo pela sua propria perturbação, que espionava a rival. E esta, advertida por aquella fórma, dominar-se-hia, depois de passada a primeira impressão. Posta de sobre aviso, procuraria, de futuro, desnortear qualquer curiosidade que pretendesse penetrar mais intimamente no segredo que, até ao presente, tão bem tinha sabido occultar. Não. Para chegar a saber se effectivamente Valentina tinha qualquer mácula na sua vida, a principal condição era que esta nem sequer suspeitasse da descoberta. A primeira idêa de Joanna de Node, em presença do sobresalto d'uma tal revelação, foi fugir, para não ser vista pela prima, e ir para casa. Lá meditaria sobre o meio mais seguro de não perder o fio que um phantastico acaso acabava de pôr nas suas mãos, e que não abandonaria mais. Parecia-lhe até imprudente que qualquer pessoa da sua intimidade a encontrasse na visinhança do grande armazem, e podesse denunciar a sua estada ali, n'esta tarde, á marqueza de Chalinhy.

Só conseguiu tranquilisar-se, depois de ter subido para a carruagem, e dito ao cocheiro que a conduzisse á rua Barbet-de-Jouy.

– «É possivel?..» repetia ainda emquanto o cavallo d'aluguer da sua carruagem seguia ao longo das Tulherias, e depois pelo caes e ponte de Solferino. Mesmo contra sua vontade, tantas provas de seriedade dadas por Valentina desde a mais tenra infancia, influenciavam no seu espirito, destruiam a suspeita, luctavam contra a injuriosa hypothese sugerida repentinamente pelo indicio implacavelmente revelador.

Ha mulheres que praticam a caridade occultamente.

E se Valentina fosse a casa d'alguns pobres, modestamente, sem ir na sua carruagem, porque esses pobres habitavam n'alguns bairros escusos, onde a sua equipagem causasse escandalo, ou o cocheiro e trintanario corressem risco de ser insultados?..

Mas n'este caso teria entrado no armazem como uma criminosa, temendo evidentemente ser seguida? Sahiria com aquella precipitação e em taes condicções?

Todos os bairros populares ficam, hoje, nas proximidades dos boulevards ou de qualquer praça, onde uma mulher rica póde ir com os seus cavallos, sem necessitar servir-se de carruagem extranha…

«Tel-a-hia Norberto prohibido de dar esmolas?..

«Mas isso é facil de saber. Basta-me perguntar-lh'o…» Fez com a mão o gesto de apertar a pequena esphera de cautchú do aparelho que serve para chamar o cocheiro… Ia dar-lhe ordem para, de caminho, parar na rua Varenne. Eram as commodidades que a sua qualidade de prima proporcionava ao adulterio.

Deixou, porem, cahir a esphera sem a ter comprimido: «Seria perdel-a se estava culpada, isso não faria ella.»

Uma primeira tentação – nem sequer a sombra d'uma denuncia – passára rapidamente pelo seu pensamento, e o mesmo sentimento que, ha annos, a fazia invejar Valentina, apresentava esta agora aos seus proprios olhos, n'uma attitude generosa mas não sem uns laivos da sua habitual acrimonia.

«Não o faria…» repetia ainda. «E o que aproveito eu com isso? Não sei, porventura, que Norberto não se preocupa mesmo nada com os seus actos? Que deposita n'ella a mais absoluta confiança. Tambem eu a tinha. E igual. Não se faz, porem, o que acabo de lhe ver fazer, sem haver para isso muito poderosos motivos…»

– Porque, emfim, podia ser vista por qualquer outra pessoa que não fosse eu e que não seria certamente tão indulgente…

Onde iria ella?.. Ah! Eu o saberei! Mas como?

Era já noite e a baroneza de Node entrara em casa, passado muito tempo, sem que, atravez d'essas multiplas occupações d'uma tarde toda: – escrever bilhetes, receber visitas intimas, fazer a sua toilette para a noite – cessasse de dirigir a si mesma esta pergunta, para que não obtinha resposta: «Sim, como?»

Se taes pesquizas são já difficeis e trabalhosas para um homem que tem o previlegio de poder andar por toda a parte, quasi sem ser notado, para uma mulher, nova, bonita e um tanto elegante, tornam-se impossiveis. Deve-se pensar. Não lhe é permitido sahir de casa senão vestida com fato proprio da sua classe. Basta isto para limitar muito o seu campo d'acção. Ha agencias particulares cujos prospectos, com promessas de segredo absoluto, pontualidade e rapidez, são enviados, de tempos a tempos, pelo correio, ás diversas pessoas que, por qualquer motivo, figuram em um dos numerosos annuarios do mundo parisiense, grande ou pequeno. Joanna tinha muitas vezes ouvido falar a alguns homens do meio em que vivia havia dez annos, do perigo de similhantes processos, para se expôr, de caso pensado, em emprezas certas de exploração e talvez de chantage.

Revelar a policias incompetentes o vehemente desejo de saber o segredo de sua prima, não era pol-os ao corrente de outro segredo – o seu?

Estes obstaculos, levantados deante da curiosidade do mundo, explicam como tantas historias adivinhadas e assacadas á bocca pequena, ficam sempre inverificadas, e, portanto, facilmente negaveis. Poucas pessoas teem geralmente um tão grande interesse em as conhecer nos seus mais intimos e insignificantes detalhes, que se aventurem a arrostar com tantas difficuldades.

A mór parte permanece n'uma incerteza que lhes permitte misturar justos indicios com infames calumnias, alliviando a sua consciencia com estas phrases classicas:

«Em todo o caso se não é verdade, podia muito bem sel-o!.. – Se é possivel acreditar-se tudo quanto se diz!.. – Eu cá nada vi, e isto são coisas tão graves!..» – indulgentes formulas tão deploraveis como os ditos maliciosos que pretendem attenuar.

Attestam bem quanta leviandade ha nas conversas dos salões e dos clubs, e tambem que n'ellas caminham a par o indifferentismo e a ferocidade!

Mas a baroneza de Node não se achava em presença de um «diz-se», tratava-se d'um facto, com consequencias funestas!

O procurar conhecer toda a verdade, sem compromisso proprio, tendo a luctar com a finura d'uma mulher tão prudente, que havia sido necessario um inacreditavel concurso de circumstancias para pôr a sua parenta mais proxima, quasi sua irmã, sobre esta pista, muito vaga, quasi perdida já – é trabalho para esgotar todas as paciencias, mas não a d'uma invejosa!

Quando, um pouco antes das oito horas, a baroneza sahiu de caza para ir jantar com os Guy de Sarliévre, das relações de ambas, e aonde sua prima devia tambem estar – a resolução de pôr inteiramente a claro o enygma, que subitamente se lhe deparou, era tão irrevogavel como um juramento corso, e a primitiva idéa estava posta de parte.

O ardor d'uma lucta começada – a mais forte das sensações para os nervos d'uma parisiense de habitos tão monotonos – dava á sua belleza, um tanto apagada, uma animação singular. Os olhos pretos, a que faltava muitas vezes a expressão, tinham um brilho desusado; o rosto quasi sempre descórado, um vivo colorido; toda a sua pessoa, mixto de frieza e fadiga, muita vitalidade e movimento.

A impaciencia de tornar a ver Valentina obrigara-a a partir muito cedo para a casa aonde ia jantar, chegando a sua nevrose ao mais elevado grau, quando a marqueza de Chalinhy que, por acaso, foi a ultima a apparecer, entrou, acompanhada pelo marido, na sala em que se achavam reunidos os convidados – quatorze, contando os recem-chegados.

 

A marqueza tinha aquella expressão de doçura e candidez que tão bem sabia guardar, mesmo quando vestia uma toilette de soirée, que punha inteiramente a descoberto os seus hombros finos opulentos, os braços d'um contorno delicioso, a nuca graciosa e robusta – toda a graça dos seus trinta annos. Era o agrado da sua encantadora cabeça de cabellos louros, illuminada pelos olhos d'um azul tão curioso – era o pudor, e a pureza.

N'este dia usava um vestido á moda do tempo de Luiz XIII, d'uma tonalidade rosea, com bordados antigos, laços de setim e fivelas de diamantes. O penteado, em dois espessos bandós, d'onde se escapavam sobre a testa pequenos anneis, harmonisava com a toilette e lembrava os retratos d'essas mulheres do primeiro quartel do seculo XVII, que realisavam tão completamente o typo exquisito da franceza de outro tempo, por uma mistura unica de delicadeza e distincção, feminidade e sensatez, gentileza e honestidade.

– «Não é deliciosa esta gentil Chalinhy?..» perguntou alguem atraz da baroneza de Node, «é preciso que Norberto seja muito tolo para não o comprehender, pois não é verdade?..»

Era o duque de Arcole que assim falava, dirigindo-se ao visinho, um dos irmãos Mosé, o conde Abel, um dos parisienses mais circumspectos da sociedade elegante; tão circumspecto que Luciano d'Arcole ficou sem resposta.

A justificação de bravo official, que tem um nome glorioso, estava em que, mesmo com licença, só pensava no seu esquadrão. Não tinha reparado que a amante de Chalinhy se achava na sua frente. A um rapido signal, uma leve inclinação de cabeça, feito por Mosé, percebeu a sua inconveniencia. Joanna, que os via perfeitamente no espelho que lhe ficava fronteiro, poude observar o gesto dissimulado de Mosé, e que o duque se ruborisou um pouco.

Quando reconhecia por estes e outros pequenos indicios que se suspeitava da sua aventura com Norberto, sentia uma viva irritação. N'aquelle momento, foi-lhe quasi intoleravel que o elogio da prima fosse misturado com uma expressão mal contida da censura com que a sociedade a feria.

Desejaria poder gritar a Mosé, ao duque de Arcole, a todos os presentes, os quaes estava bem certa d'isso, tinham já ouvido censurar ou elles mesmo censurado a sua falta: «Sim, Chalinhy é meu amante.

«É verdade, atraiçoa a mulher comigo. Mas perguntai-lhe tambem a ella, para que entrevista ia hoje, de carruagem, ás 3 horas da tarde?..»Desejaria tambem poder fulminar com aquella phrase vingadora o proprio Chalinhy que se lhe dirigiu para a cumprimentar, com um certo ar de constrangimento, que já por mais vezes lhe tinha notado, quando estavam em publico. Nunca se tinha podido habituar a taes reservas, muito insultantes para esta ligação, e contra as quaes só as suas caricias eram soberanas – durante os momentos em que as proporcionava a esse amante, ao mesmo tempo tão invejavel como incomprehensivel.

Quizera ainda dirigir a phrase insultuosa á propria Valentina, cuja doce serenidade contrastava, d'uma maneira imprudente, com o seu procedimento d'aquelle dia, se tal procedimento era culposo, e a verdadeira confirmação d'essa culpabilidade seria a resposta á pergunta insidiosa que sua prima ia fazer-lhe em seguida – primeiro passo andado no caminho d'uma devassa que, por perfidia, se devia transformar, bem depressa, em denuncia.

– «Cheguei a imaginar que mudarias de tenção» começou Joanna, «e que me mandasses dizer esta manhã que podiamos sahir juntas. Esperei, porém, em vão, uma palavra tua…»

– «Acompanhar-te-hei ámanhã se quizeres, respondeu Valentina. Hoje não tive um momento de meu. Tinha muitas coisas atrazadas que pôr em ordem. Para a semana vamos para Pont-Yonne…»

– «Percebo, poseste as tuas visitas em dia. Onde foste então?»

– «Oh! A dez casas differentes e só em duas deixei bilhetes.»

– «A maior parte das familias das minhas relações são estrangeiras. É esta a sua estação em Paris; mas não se comprehende muito bem o que veem cá fazer, visto estarem sempre em casa.»

Annunciava-se que ia ser servido o jantar, na occasião em que Valentina acabava de descrever a sua prima como tinha occupado toda a tarde d'esse dia, acompanhando a descripção com um sorriso tão infantil, tão fresco, que punha de parte qualquer idêa de mentira.

As duas primas separaram-se.

A senhora de Sarliévre, na qualidade de dona de casa, julgava faltar a um dever de delicadeza, se não proporcionasse a duas pessoas, suspeitas d'um amor clandestino, estando em sua casa, mais uma occasião de passarem algumas horas ao lado uma da outra. Reservou tambem, naturalmente, a Chalinhy o prazer de conduzir para a mesa a baronesa de Node. É o processo habitualmente empregado em Paris, pelas mulheres levianas, quando desejam que lhes façam o mesmo, e pelas mulheres honestas, quando querem recrutar frequentadores assiduos para os seus salões.

Enganam-se muitas vezes, pensando que, procedendo por esta fórma, são agradaveis para com os seus convivas.

Acontece frequentemente que estas complacencias obrigam amantes arrufados a uma visinhança deveras incommoda e impertinente. Acontece tambem que magoam certas susceptibilidades um pouco desconfiadas, como sendo uma indelicadesa. É mostrar muito claramente que se conhecem os segredos da sua vida. Chalinhy pertencia ao grupo dos amorosos susceptiveis.

Vinte vezes Joanna de Node o tinha visto, em jantares como este, sentar-se junto d'ella com o mesmo aspecto melancolico, contrafeito, com os mesmos modos retrahidos d'um homem que se encontra n'uma situação falsa, e vinte vezes lhe disse, para o empolgar, para readquirir o imperio sobre elle, phrases de estimulante ternura como a que lhe murmurou, quasi em segredo, aproveitando o primeiro bulicio da instalação á mesa:

– «É uma felicidade para mim passarmos juntos alguns momentos. Ha mais de uma semana que lá não vaes».

– «Sabes perfeitamente que a culpa não é minha, tenho caçado quasi todos os dias…»

– «Sei tambem que isso te não pode servir de desculpa,» disse galantemente. «Tinhas um ar tão contrafeito quando a Emiliana te pediu para me conduzires á mesa…»

– «Respeito-te muito,» replicou, «por isso confesso-te que fiquei contrariado… Sempre que jantamos fóra, nos collocam propositadamente um junto do outro. Sei perfeitamente o que isto significa…»

– «E eu tambem,» respondeu ella. «Sejamos francos, Norberto, não é a minha pessoa que te preoccupa…»

– «Quem é então?..»

Joanna lançou um olhar para o lado de Valentina, d'uma significação tão clara que Chalinhy respondeu vivamente:

– «E se tiver por ella toda a consideração? Se desejar evitar-lhe um desgosto?»

– «E imaginas que ella tem a teu respeito iguaes sentimentos?» replicou a amante. Depois, com uma expressão singular que ainda esse dia não tinha tido, deixou escapar dos seus labios um: «Estás bem certo d'isso?» que acompanhou com um sorriso ainda mais singular, e voltou-se para o visinho do lado, que lhe perguntou:

– «O que está dizendo o Chalinhy que tanto a faz rir?..»

– «Oh! nada», respondeu, «é a historia d'um marido. São sempre divertidas.»

Poz-se a rir, mas mais alegremente, da enormidade da sua insolencia. Não pensou senão no effeito a produzir em Chalinhy, e, por acaso, o visinho a quem se dirigiu n'aquelles termos, era nem mais nem menos do que Paulo Moraines, o marido «mais marido» de toda aquella sociedade. Peor do que isso. Era publico e notorio que o luxo da sua esposa fôra pago primeiramente pelo velho Desforges e depois por um outro dos Mosé, o conde Abrahão. Mas Moraines não desconfiou nunca das galanterias venaes da sua Suzanna – da aventura com o elegante Casal, por exemplo, ou da ligação com o poeta René Vincy.