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Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial)

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Realismo de Machado de Assis (Clássicos da literatura mundial)
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Trilogia Realista




Índice





Memórias Póstumas de Brás Cubas







Quincas Borba







Dom Casmurro







Memórias Póstumas de Brás Cubas




Índice



1.

Obito do autor



2.

O emplasto



3.

Genealogia



4.

A idéa fixa



5.

Em que apparece a orelha de uma senhora



6.

Chimène, qui l’eut dit? — Rodrigue, qui l’eut cru?



7.

O delírio



8.

Razão contra sandice



9.

Transição



10.

Naquele dia



11.

O menino é pai do homem



12.

Um episódio de 1814



13.

Um salto



14.

O primeiro beijo



15.

Marcela



16.

Uma reflexão imoral



17.

Do trapézio e outras coisas



18.

Visão do corredor



19.

A bordo



20.

Bacharelo-me



21.

O almocreve



22.

Volta ao Rio



23.

Triste, mas curto



24.

Curto, mas alegre



25.

Na Tijuca



26.

O autor hesita



27.

Virgília?



28.

Contanto que...



29.

A visira



30.

A flor da moita



31.

A borboleta preta



32.

Coxa de nascença



33.

Bem-aventurados os que não descem



34.

A uma alma sensível



35.

O caminho de Damasco



36.

A propósito de botas



37.

Enfim!



38.

A quarta edição



39.

O vizinho



40.

Na sege



41.

A alucinação



42.

Que escapou a Aristóteles



43.

Marquesa, porque eu serei marquês



44.

Um Cubas!



45.

Notas



46.

A herança



47.

O recluso



48.

Um primo de Virgília



49.

A ponta do nariz



50.

Virgília casada



51.

É minha!



52.

O embrulho misterioso



53.

. . . . .



54.

A pêndula



55.

O velho diálogo de Adão e Eva



56.

O momento oportuno



57.

Destino



58.

Confidência



59.

Um encontro



60.

O abraço



61.

Um projeto



62.

O travesseiro



63.

Fujamos!



64.

A transação



65.

Olheiros e escutas



66.

As pernas



67.

A casinha



68.

O vergalho



69.

Um grão de sandice



70.

D. Plácida



71.

O senão do livro



72.

O bibliômano



73.

O "luncheon"



74.

História de D. Plácida



75.

Comigo



76.

O estrume



77.

Entrevista



78.

A presidência



79.

Compromisso de gato



80.

De secretário



81.

A reconciliação



82.

Questão de botânica



83.

13



84.

O conflito



85.

O cimo da montanha



86.

O mistério



87.

Geologia



88.

O enfermo



89.

In extremis



90.

O velho colóquio de Adão e Caim



91.

Uma carta extraordinária



92.

Um homem extraordinário



93.

O jantar



94.

A causa secreta



95.

Flores de antanho



96.

A carta anônima



97.

Entre a boca e a testa



98.

Suprimido



99.

Na platéia



100.

O caso provável



101.

A revolução dálmata



102.

De repouso



103.

Distração



104.

Era ele!



105.

Equivalência das janelas



106.

Jogo perigoso



107.

Bilhete



108.

Que se não entende



109.

O filósofo



110.

31



111.

O muro



112.

A opinião



113.

A solda



114.

Fim de um diálogo

 



115.

O almoço



116.

Filosofia das folhas velhas



117.

O humanismo



118.

A terceira força



119.

Parêntesis



120.

"Compelle intrare"



121.

Morro abaixo



122.

Uma intenção muito fina



123.

O verdadeiro Cotrim



124.

Vá de intermédio



125.

Epitáfio



126.

Desconsolação



127.

Formalidade



128.

Na câmara



129.

Sem remorsos



130.

Para intercalar no Cap. CXXIX



131.

De uma calúnia



132.

Que não é sério



133.

O princípio de Helvetius



134.

Cinqüenta anos



135.

"Oblivion"



136.

Inutilidade



137.

A barretina



138.

A um critico



139.

De como não fui ministro d'Estado



140.

Que explica o anterior



141.

Os cães



142.

O pedido secreto



143.

Não vou



144.

Utilidade relativa



145.

Simples repetição



146.

O programa



147.

O desatino



148.

O problema insolúvel



149.

Teoria do benefício



150.

Rotação e translação



151.

Filosofia dos epitáfios



152.

A moeda de Vespasiano



153.

O alienista



154.

Os navios do Pireu



155.

Reflexão cordial



156.

Orgulho da servilidade



157.

Fase brilhante



158.

Dois encontros



159.

A semi-demencia



160.

Das negativas




AO VERME



QUE



PRIMEIRO ROEU AS FRIAS CARNES



DO MEU CADAVER



DEDICO



COMO SAUDOSA LEMBRANÇA



ESTAS





MEMORIAS POSTHUMAS








1





Obito do autor



Algum tempo hesitei se devia abrir estas memorias pelo principio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro logar o meu nascimento ou a minha morte. Supposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adoptar differente methodo: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escripto ficaria assim mais galante e mais novo. Moysés, que tambem contou a sua morte, não a poz no introito, mas no cabo: differença radical entre este livro e o Pentateuco.



Dito isto, expirei ás duas horas da tarde de uma sexta feira do mez de agosto de 1869, na minha bella chácara de Catumby. Tinha uns sessenta e quatro annos, rijos e prosperos, era solteiro, possuia cerca de tresentos contos e fui acompanhado ao cemiterio por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem annuncios. Accresce que chovia — peneirava — uma chuvinha miuda, triste e constante, tão constante e tão triste, que levou um daquelles fieis da ultima hora a intercalar esta engenhosa idéa no discurso que proferiu á beira de minha cova:— « Vós, que o conhecestes, meus senhores, vós podeis dizer commigo que a natureza parece estar chorando a perda irreparavel de um dos mais bellos caracteres que tem honrado a humanidade. Este ar sombrio, estas gotas do céu, aquellas nuvens escuras que cobrem o azul como um crepe funereo, tudo isso é a dor crua e má que lhe róe á Natureza as mais intimas entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso illustre finado. »



Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apolices que lhe deixei. E foi assim que cheguei à clausula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ansias nem as duvidas do moço principe, mas pausado e tropego, como quem se retira tarde do espetaculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre ellas tres senhoras,— minha irmã Sabina, casada com o Cotrim,— a filha, um lyrio do valle,— e... Tenham paciencia! daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que essa anonyma, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. E' verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, epileptica. Nem o meu obito era cousa altamente dramatica... Um solteirão que expira aos sessenta e quatro annos, não parece que reuna em si todos os elementos de uma tragedia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anonyma era apparental-o. De pé, á cabeceira da cama, com os olhos estupidos, a boca entreaberta, a triste senhora mal podia crer na minha extincção.



— Morto! morto! dizia consigo.



E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o vôo desde o Ilysso ás ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, — a imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até ás ribas de uma Africa juvenil... Deixal-a ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando eu me restituir aos primeiros annos. Agora, quero morrer tranquillamente, methodicamente, ouvindo os soluços das damas, as fallas baixas dos homens, a chuva que tamborila nas folhas de tinhorão da chacara, e o som estridulo de uma navalha que um amolador está afiando lá fóra, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orchestra da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em deante chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns impetos de vaga marinha, esvaia-se-me a consciencia, eu descia á immobilidade physica e moral, e o corpo fazia-se-me planta, e pedra, e lodo, e cousa nenhuma.



Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéa grandiosa e util, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe summariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.







2





O emplasto



Com effeito, um dia de manhã, estando a passear na chacara, pendurou-se-me uma idéa no trapezio que eu tinha no cerebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volantim, que é possivel crer Eu deixei-me estar a contemplal-a. Subito, deu um grande salto, estendeu os braços e as pernas, até tomar a fórma de um X: decifra-me ou devoro-te.



Essa idéa era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hypocondriaco, destinado a alliviar a nossa melancholica humanidade. Na petição de privilegio que então redigi, chamei a attenção do governo para esse resultado, verdadeiramente christão. Todavia, não neguei aos amigos as vantagens pecuniarias que deviam resultar da distribuição de um producto de tamanhos e tão profundos effeitos. Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornaes, mostradores, folhetos, esquinas, e emfim nas caixinhas do remedio, estas tres palavras: emplasto Braz Cubas. Para que negal-o? Eu tinha a paixão do arruido, do cartaz, do foguete de lagrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão de reconhecer os habeis; e eu era habil. Assim, a minha idéa trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o publico, outra para mim. De um lado, philanthropia e lucro; de outro lado, sêde de nomeada. Digamos:—amor da gloria.



Um tio meu, conego de prebenda inteira, costumava dizer que o amor da gloria temporal era a perdição das almas, que só devem cobiçar a gloria eterna. Ao que retorquia outro tio, official de um dos antigos terços de infantaria, que o amor da gloria era a coisa mais verdadeiramente humana que ha no homem, e, conseguintemente, a sua mais genuina feição.



Decida o leitor entre o militar e o conego; eu volto ao emplasto.







3





Genealogia



Mas, já que fallei nos meus dous tios, deixem-me fazer aqui um curto esboço genealogico.



O fundador da minha familia foi um certo Damião Cubas, que floresceu na primeira metade do seculo XVIII. Era tanoeiro de officio, natural do Rio de Janeiro, onde teria morrido na penuria e na obscuridade, se sómente exercesse a tanoaria. Mas não; fez-se lavrador, plantou, colheu, permutou o seu producto por boas e honradas patacas, até que morreu, deixando grosso cabedal a um filho, o licenciado Luiz Cubas. Neste rapaz é que verdadeiramente começa a serie de meus avós — dos avós que a minha familia sempre confessou —, porque o Damião Cubas era afinal de contas um tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que o Luiz Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do vice-rei conde da Cunha. Como este appellido de Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria, allegava meu pae, bisneto do Damião, que o dito appellido fôra dado a um cavalleiro, heroe nas jornadas da Africa, em premio da façanha que praticou, arrebatando tresentas cubas aos mouros. Meu pae era homem de imaginação; escapou à tanoaria nas azas de um calembour. Era um bom caracter, meu pae, varão digno e leal como poucos. Tinha, é verdade, uns fumos de pacholice; mas quem não é um pouco pachola nesse mundo? Releva notar que elle não recorreu à inventiva senão depois de experimentar a falsificação; primeiramente, entroncou-se na familia daquelle meu famoso homonymo, o capitão-mór, Brás Cubas, que fundou a villa de S. Vicente, onde morreu em 1592, e por esse motivo é que me deu o nome de Braz. Oppos-se-lhe porém a familia do capitão-mór, e foi então que elle imaginou as tresentas cubas mouriscas.



Vivem ainda alguns membros de minha familia, minha sobrinha Venancia, por exemplo, o lyrio do valle, que é a flor das damas do seu tempo; vive o pae, o Cotrim, um sujeito que... Mas não antecipemos os successos; acabemos de uma vez com o nosso emplasto.







4





A idéa fixa



A minha idéa, depois de tantas cabriolas, constituira-se idéa fixa. Deus te livre, leitor, de uma idéa fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho. Vê o Cavour; foi a idéa fixa da unidade italiana que o matou. Verdade é que Bismarck não morreu; mas cumpre advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a historia uma eterna loureira. Por exemplo, Suetonio deu-nos um Claudio, que era um banana,— ou «uma abóbora» como lhe chamou Seneca, e um Tito, que mereceu ser as delicias de Roma. Veiu modernamente um professor e achou meio de demonstrar que ambos esses conceitos eram erroneos e abstrusos, e que dos dous cesares, o delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o «abóbora» de Seneca. E tu, madama Lucrecia, flor dos Borgias, se um poeta te pintou como a Messalina catholica, appareceu um Gregorovius incredulo que te apagou muito essa qualidade, e, se não vieste a lyrio, tambem não ficaste pantano. Eu deixo-me estar entre o poeta e o sabio.

 



Viva pois a historia, a voluvel historia que dá para tudo; e, tornando á idéa fixa, direi que é ella a que faz os varões fortes e os doudos; a idéa mobil, vaga ou furta-cor é a que faz os Cláudios, — formula Suetônio.



Era fixa a minha idéa, fixa como... Não me occorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as pyramides do Egypto, talvez a finada dieta germanica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja dahi a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegámos á parte narrativa destas memorias. Lá iremos. Creio que prefere a anedocta á reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escripto com pachorra, com a pachorra de um homem já desaffrontado da brevidade do seculo, obra supinamente philosophica, de uma philosophia desegual, agora austera, logo brincalhona, cousa que não edifica nem destróe, não inflamma nem regéla, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.



Vamos lá; rectifique o seu nariz, e tornemos ao emplasto. Deixemos a historia com os seus caprichos de dama elegante. Nenhum de nós pelejou a batalha de Salamina, nenhum escreveu a confissão de Augsburgo; pela minha parte, se alguma vez me lembro de Cromwell, é só pela idéa de que Sua Alteza, com a mesma mão que trancára o parlamento, teria imposto aos inglezes o emplasto Braz Cubas. Não se riam dessa victoria commum da pharmacia e do puritanismo. Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, publica, ostensiva, ha muitas vezes varias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteam e fluctuam á sombra daquella, com ella cahem, e não poucas vezes lhe sobrelevam? Mal comparando, é como a arraia-miuda, que se acolhia á sombra do castello-feudal; cahiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castellã... Não, a comparação não presta.







5





Em que apparece a orelha de uma senhora



Vae se não quando, estando eu occupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me tratei. Tinha o emplasto no cerebro; trazia comigo a idéa fixa dos doudos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas, e remontar ao ceu, como uma aguia immortal; e não é deante de tão excelso expectaculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia estava peor; tratei-me emfim, mas incompletamente, sem methodo, nem cuidado, nem persistencia; tal foi a origem do mal que me trouxe á eternidade. Sabem já que morri n’uma sexta-feira, dia aziago, e creio haver provado que foi a minha invenção que me matou. Ha demonstrações menos lucidas e não menos triumphantes.



Não era impossivel, entretanto, que eu chegasse a galgar o cimo de um seculo, e a figurar nas folhas publicas, entre macrobios. Tinha saude e robustez. Supponha-se que, em vez de estar lançando os alicerces de uma invenção pharmaceutica, tratava de colligir os elementos de uma instituição politica, ou de uma reforma religiosa. Vinha a corrente de ar, que vence, em efficacia, o calculo humano, e lá se ia tudo. Um sopro de ar foi portanto o meu grão de arêa de Cromwell. Assim corre a sorte dos homens.



Com esta reflexão me despedi eu da mulher, não direi mais discreta, mas com certeza mais formosa entre as contemporaneas suas, a anonyma do primeiro capitulo, a tal, cuja imaginação á semelhança das cegonhas do Ilysso... Tinha então 54 annos, era uma ruina, uma imponente ruina. Imagine o leitor que nos amámos, ella e eu, muitos annos antes, e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar á porta da alcova...







6





Chimène, qui l’eut dit? — Rodrigue, qui l’eut cru?



Vejo-a assomar á porta da alcova, pallida, commovida, trajada de preto, e alli ficar durante uns dez segundos, sem animo de entrar, ou detida pela presença de um homem que estava commigo. Da cama, onde jazia, contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de fazer nenhum gesto. Havia já dous annos que nos não viamos; e eu via-a agora não qual era, mas qual fôra, quaes foramos ambos, porque um Ezechias mysterioso fizera recuar o sol até os dias juvenis. Recuou o sol, sacudi todas as miserias; e este punhado de pó, que a morte ia espalhar na eternidade do nada, pôde mais do que o tempo, que é o ministro da morte. Nenhuma agua de Juventa egualaria alli a simples saudade.



Cream-me, o menos mau é recordar; ninguem se fie da felicidade presente; ha nella uma gota da baba de Caim. Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e outra dessas duas ilusões, melhor é a que se gosta sem doer.



Não durou muito a evocação; a realidade dominou logo; o presente expeliu o passado. Talvez eu exponha ao leitor, em algum canto deste livro, a minha teoria das edições humanas. O que por agora importa saber é que Virgília — chamava-se Virgília — entrou na alcova, firme, com a gravidade que lhe davam as roupas e os anos, e veio até o meu leito. O estranho levantou-se e saiu. Era um sujeito, que me visitava todos os dias para falar do câmbio, da colonização e da necessidade de desenvolver a viação férrea; nada mais interessante para um moribundo. Saiu; Virgília deixou-se estar de pé; durante algum tempo ficamos a olhar um para o outro, sem articular palavra. Quem diria? De dois grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dois corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados. Virgília tinha agora a beleza da velhice, um ar austero e maternal; estava menos magra do que quando a vi, pela última vez, numa festa de São João, na Tijuca; e porque era das que resistem muito, só agora começavam os cabelos escuros a intercalar-se com alguns fios de prata.



— Anda visitando os defuntos? disse-lhe eu. — Ora, defuntos! respondeu Virgília com um muxoxo. E depois de me apertar as mãos: — Ando a ver se ponho os vadios para a rua.



Não tinha a carícia lacrimosa de outro tempo; mas a voz era amiga e doce. Sentou-se. Eu estava só, em casa, com um simples enfermeiro; podíamos falar um ao outro, sem perigo. Virgília deu-me longas notícias de fora, narrando-as com graça, com um certo travo de má língua, que era o sal da palestra; eu, prestes a deixar o mundo, sentia um prazer satânico em mofar dele, em persuadir-me que não deixava nada.



— Que ideias essas! interrompeu-me Virgília um tanto zangada. Olhe que não volto mais. Morrer! Todos nós havemos de morrer; basta estarmos vivos.



E vendo o relógio:



— Jesus! são três horas. Vou-me embora.



— Já?



— Já; virei amanhã ou depois.



— Não sei se faz bem, retorqui; o doente é um solteirão e a casa não tem senhoras...



— Sua mana?



— Há de vir cá passar uns dias, mas não pode ser antes de sábado.



Virgília refletiu um instante, levantou os ombros e disse com gravidade:



— Estou velha! Ninguém mais repara em mim. Mas, para cortar dúvidas, virei com o Nhonhô.



Nhonhô era um bacharel, único filho de seu casamento, que, na idade de cinco anos, fora cúmplice inconsciente de nossos amores. Vieram juntos, dois dias depois, e confesso que, ao vê-los ali, na minha alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permitiu corresponder logo às palavras afáveis do rapaz. Virgília adivinhou-me e disse ao filho:



— Nhonhô, não repares nesse grande manhoso que aí está; não quer falar para fazer crer que está à morte.



Sorriu o filho, eu creio que também sorri, e tudo acabou em pura galhofa. Virgília estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse denunciar nada; uma igualdade de palavra e de espírito, uma dominação sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como t

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