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O Regicida

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IX

Elle disse que não teria animo de se despedir da filha. Animo de partir sem vêl-a é que elle não teve.

Sahindo do palacio do marquez seguiu o trilho de sua casa. A cada rua e travessa, por onde podia desviar-se, parava, guinando os olhos tôrvos e cheios de lagrimas, entre os dous caminhos. Em uma d'essas paragens de dolorosa perplexidade avistou Roque da Cunha, que marchava de cara alta, mão na ilharga, consciencia tranquilla no aspecto ridente.

Esperou-o Domingos Leite, e disse-lhe offegante:

–Ámanhã sahiremos de Lisboa e passaremos a raia. Prepara-te.

–Então que ha?

–Uma ordem de prisão é o que vae haver contra nós. Fecha-se ámanhã a devassa.

–E para onde vamos? já resolveste?

–Para Hespanha.

–Está claro. O meu dinheiro são oitenta cruzados; mas tu vaes assombrar Madrid com o cofre do Traga-malhas, que Deus tem na gloria dos tanoeiros.

–Eu tenho de meu ainda menos do que tu—respondeu Domingos Leite com severidade—Escrevi a meu pae pedindo-lhe alimentos; se elle m'os não der, veremos em que trabalho a Providencia m'os depára.

–A Providencia, amigo Leite,—replicou o folião—não tem n'este mundo secretario das mercês conhecido, a não ser o padre santo. Este anda ás avessas com portuguezes, e não me parece que deva ser assaz amigo de quem lhe bate seriamente nos padres. Leva dinheiro, homem; que um portuguez pobre em Madrid vale menos que um judeu rico em Lisboa. Mas não esmoreças se fizeste voto de ir por Castella dentro com esclavina e bordão de peregrino. Lá está em Madrid minha mãe. Se ella me reconhecer e não tiver pejo de me haver gerado, não nos hade faltar boa meza em casa de meu padrasto o desembargador do Paço Francisco Leitão…

–Não percamos tempo—interrompeu Domingos Leite, aborrecido do tom jovial do interlocutor—Á noite, serei em tua casa, e de manhã partiremos.

–Olha lá, Domingos Leite,—volveu Roque, cingindo-lhe o braço pelas espaduas—conselho de amigo que anda cá n'este vale de lama ha quarenta e oito annos…

–Que é?

–Não deixes a mãe de tua filha á matroca, com lastro de vinte mil cruzados na falua, e vinte e dois annos de edade, e com mais tentações no rosto que todas as moiras juntas em noite de S. João. Convento com ella, ouviste?

Domingos Leite encarou torvamente Roque, e respondeu-lhe, passados dois segundos:

–Que me importa isso a mim? Sabes que, ha um anno, vivo ao lado da mãe de minha filha, como se entre nós se mettesse a pedra que separa duas sepulturas. Nunca pensei em lhe dar maior castigo que o do meu despreso. O enclausural-a dentro dos ferros do mosteiro não a lavava da mancha indelevel de donzella que foi as delicias d'um padre. Eu sentia por ella alguma coisa mais implacavel que o odio: era o nôjo. Que me faz a mim já agora que essa mulher cave com as proprias mãos mais um palmo no seu abysmo de lôdo?

–Palavrorio!—replicou o quadrilheiro—Se tua mulher te não fosse leal, enforcaval-a como o alcaide de Belmonte fez á mulher por causa de outro clerigo da casta do padre Luiz da Silveira. (Nota 11.ª) Contava-me o caso minha avó, que era do tempo em que se enforcavam as fidalgas adulteras.

–Acabemos esta semsaboria…—cortou Domingos Leite com trejeitos desabridos—Cuida de ti, e não entrevenhas nas coisas alheias da tua alçada…

–Intervim de mais…—murmurou Roque estomagado do repellão—Cá vou tratar de mim, amigo Leite… Sempre será bom que me não ponham a prumo no logar onde eu puz o padre de bruços, por intervir de mais nas coisas alheias da minha alçada. Até á noite.

Ao separarem-se assim irritados, Leite Pereira, pezaroso da sua impertinencia, ainda se voltou para chamar o amigo e dar-lhe satisfação das palavras rudes; mas Roque da Cunha estugára o passo, como quem ia mais preoccupado da devassa que da offensa.

Este incidente carregou mais a treva d'aquella alma. Zoavam-lhe estridores metalicos na cabeça, e confragia-se-lhe a fronte crivada de dores como se esgarçassem por ella os espinhos mordentes de uma corôa. A revezes, parava, porque o respirar lhe dava afflições, ou o pavimento se lhe figurava um despenhadeiro. Quando chegou a sua casa, á Porta do Salvador, sentou-se no escabello do pateo, e arquejou largo espaço, olhando para a escada, ainda indeciso se subiria a despedir-se da filha, se encarregaria um criado de lhe levar a sua bagagem a casa de Roque da Cunha.

N'este comenos, entrava Maria Isabel, vinda de fóra, com a creancinha pela mão.

Estremeceu dando de rosto com o marido. Leite Pereira, ao vêl-a, ainda se esforçou por evital-a; mas a filha corrêra contra elle, com os braços abertos, balbuciando palavras cariciosas. O pae sentou-a sobre os joelhos, e rompeu em alto choro, que a menina acompanhava em gritos, affagando-lhe as faces e beijando-lh'as com ternissima anciedade.

N'isto, levantou-se de golpe, aconchegou do seio a filha, e subiu acceleradamente as escaleiras.

Seguiu-o Maria Isabel, sinceramente consternada, dizendo-lhe palavras maviosas; e, quando elle entrava no seu quarto e fazia menção de se fechar por dentro, a mulher, arrostando o perigo de soffrer o embate da meia-porta, rompeu de poz o marido, e, pondo-se de joelhos, exclamou:

–Se podes ser mais feliz com a minha morte, peço-te que me acabes de uma vez!.. Eu já não posso com o teu despreso; tenho procurado viver por amor desta creança; hoje creio que ella já não precisa de mim, visto que tu a amas, e a Virgem do céo attendeu os meus rogos. Desde que me abandonaste, não cessei de pedir a Deus que te voltasse o coração para a nossa filha, embora eu fosse a odiada. Agora que o meu querido anjo tem o teu amparo, peço a Deus que me tire d'este supplicio; peço-te a ti que me dês uma morte bem rapida, de modo que eu não possa vêr na minha agonia de morte esta menina a chorar!…

Domingos Leite, que havia sentado a filha sobre o leito, ouviu a exclamação de Maria Isabel, fitando-a com terrivel immobilidade de olhos. E, quando ella acabou a supplica, e parecia de mãos postas esperar a morte, o marido, avançando para ella os dois passos interpostos, disse-lhe com serena voz:

–Levante-se e escute-me!

Ella ergueu-se encarando-o espantada, e abeirou-se do leito em que a menina, de pé e tremente, relançava olhares espavoridos entre o pae e a mãe.

–Sou obrigado a desterrar-me, senhora!—disse elle pausadamente—Á mulher, que fez da sua mocidade o opprobrio do marido, e que fez do marido um assassino, é preciso que eu n'esta hora lhe diga que ámanhã a justiça me pedirá contas da vida d'um homem que devia morrer, visto que elle matára a honra da mulher de Domingos Leite. Vou homisiar-me, e não mais voltarei a Portugal, porque vae commigo a ignominia que lá fóra me hade espedaçar…

–Ó Domingos…—exclamou Maria Isabel—Ó filho do meu coração, leva-nos comtigo!..

–Não me atormente com interrupções frivolas!—obstou elle mal assombrado—Deve saber, senhora, que eu vou sahir de sua casa extremamente desvalido, pobrissimo, com umas migalhas que hontem recebi dos meus ordenados. Hade encontrar de portas a dentro tudo que seus paes lhe deixaram, e o mais que eu lhe pude accrescentar com os meus recursos. Se alguem na sua presença me alcunhar de homicida, não me defenda; mas, se lhe disserem que eu no desterro mitigo as saudades da patria com os haveres da mulher que a fatalidade me deu, negue, negue, senhora, porque eu fui cinco annos seu marido, e não toquei em um cruzado do seu patrimonio. Prouvera a Deus que esta creança tivesse a necessaria intelligencia para me ser testemunha da minha pobre honra, por essa parte illesa! Oxalá que depois da minha morte esta menina podesse dizer que seu pae foi um desgraçado sem nodoa na sua probidade!..

Fez uma dilatada pausa, porque os soluços lhe cortavam as palavras, emquanto Maria Isabel, tomando a filha nos braços, lhe ajoelhava outra vez.

–Não serve de nada essa humildade, senhora!—volveu elle com desalento e desesperação—Levante-se; peço-lhe que se levante, se alguma pena tem de mim. Eu necessito pedir-lhe que seja boa mãe… que ame esta creança, que reduza a sua existencia em lhe preparar o futuro. Lembre-se que eu lá do desterro lhe estou sempre pedindo que se sacrifique á minha filha. Expie a sua culpa, formando-lhe o coração com as virtudes que até as mães pessimas conhecem quando chegam a ter pezar do seu vilipendio. Faça tudo que entender preciso para que sua filha não leve com um pouco de ouro um grande cabedal de infamia a seu marido. Vigie-lhe os passos da mocidade afim de que o marido, que lhe escolher, não tenha de apartar-se d'ella com o ferrete de assassino na fronte. Não tenho mais que lhe pedir. Agora, rogo-lhe que me deixe.

–Não, não te deixamos…—tornou a esposa—Ó Angela, ó minha querida filha, pede com as mãos erguidas a teu pae que nos deixe acompanhal-o!

A creança ajoelhou, supplicando:

–Deixe, deixe, meu pae!..

Domingos Leite poz na mulher um olhar enfurecido, fez arremêço de indignação, e bradou:

–Quem lhe disse, mulher, que eu lhe perdoei?! Se estava morta para mim, como heide eu dar-lhe vida de esposa, fazel-a minha companheira do desterro, quando a justiça me persegue porque eu lhe matei o amante?

E, ao proferir a palavra indecorosa, olhou vertiginosamente para a filha, travou d'ella com impeto phrenetico, ergueu-a á altura dos labios, e murmurou:

–Eu morreria de vergonha, se me tivesses comprehendido!..

E, voltando-se para Maria Isabel, que tiritava apoiada no espaldar de uma cadeira, bradou-lhe:

–Deixa-me levar minha filha? deixa-m'a levar só a ella?..

–Meu Deus!—exclamou a mãe.

–Diga, diga!—instou elle com crescente vehemencia—Fica-lhe tudo, riquesa, mocidade, liberdade, tudo; mas deixe-me levar Angela… Não deixa?

–Não posso, não posso!.. Mate-me, mate-me, e depois leve-a!..

–Que a mate!.. Olhe que eu não tenho sangue nas minhas mãos, mulher!.. Veja-as, que estão limpas… eu levo sobre a consciencia o peso de uma enorme vergonha; não levo o peso de um cadaver, percebeu-me?… Pois cuida que as entranhas que tanto amam uma filha podem ser as d'um carniceiro? Poderia matal-a o homem que viveu anno e meio n'esta mesma casa, sem vêr a mulher que o mundo chamava minha esposa, e que viveu aqui, e d'aqui sahia todas as manhãs com apparencias de feliz, para que o mundo duvidasse de que a senhora tinha sido a recatada amante de…

 

Soffreou de novo a palavra infamante; e, cravando os olhos nos de Angela, parecia indeciso sobre a intelligencia da creança.

–Ó infindo tormento!—clamou Domingos Leite apertando a cabeça, e debruçando-se prostrado sobre o leito.

N'este lance, Maria aproximou-se do marido, poz-lhe a mão no hombro, e murmurou:

–Olha, Domingos, escuta… Leva a nossa filha.

–O quê?! bradou elle, erguendo-se.

–Leva a creança. Queres ir com teu pae, Angela?

A menina deteve-se a responder, olhando para ambos alternadamente.

–Queres ir commigo, filha?—perguntou o pae.

–E a mãe tambem vae?—disse a menina assustada e irresoluta.

–Eu vou-me embora, e nunca mais volto—tornou o pae—Não me tornas a vêr. Queres ir com o teu pae?

–E não torno a vêr a mãe?

–Hasde vêr, menina—acudiu Maria Isabel engulindo as lagrimas—Tu depois has de pedir ao pae que me deixe ir vêr-te, sim?.. pedes, filhinha?

Angela, sem perceber a profundesa do trance que ali se passava, abraçou-se na mãe, chorando. Domingos Leite cruzou os braços contemplando mãe e filha que se estreitavam num abraço convulso como o estorcer de suprema angustia. Volvidos alguns segundos, disse com o desanimo d'alma emfim sossobrada:

–Irei só. Tu ficas, Angela. Deus não quer que o anjo de innocencia vá nos braços d'um pae homicida mendigar o pão de estranhos. Não deves ter quinhão do meu castigo, pobre menina!… Agora, peço de novo á sua compaixão… Maria Isabel… que leve sua filha, e me deixe só…

A esposa sahiu com vacilantes passos, levando a menina á força. Domingos Leite volveu de novo a beijal-a, e impelliu-a brandamente para fóra do quarto. Depois, correndo a lingua da chave, voltou-se para um Senhor Crucificado, e disse mentalmente:

–Forças, meu Deus! Guardae-me os maiores tormentos para o desterro, e dae-me alento n'este lance!

X

Quando se divulgou em Lisboa que o escrivão do civel, secretario do mordomo-mór, desapparecera com Roque da Cunha, duas opiniões se formaram ácêrca do successo estrondoso.

Quanto a Domingos Leite, dizia-se que, tendo o santo officio, no começo d'aquelle anno de 1647, aferrolhado nos seus carceres alguns sujeitos amigos do escrivão, este, receando sorte egual, se evadira. A criminalidade dos réos presos era suspeita do peccado infame (veja Larraga, passim); porém, o delito que o vulgo attribuia ao marido da Traga-malhas era de menos impudica especie: dizia-se que o fugitivo andava gafado de herezia, e dava noticia de livros lutheranos procedentes de Hollanda. Os propagadores do boato, querendo explicar a fuga simultanea de Roque da Cunha, asseveraram que elle se passara a Madrid, onde vivia sua mãe, D. Vicencia Corrêa, loureira famosa de Lisboa, antes de ser casada com Francisco Leitão, o Guedêlha, que tinha sido do conselho de Portugal em Madrid, de boas avenças com o usurpador, e, como renegado incontricto, lá se ficara contraminando a restauração do reino. (Nota 12.ª)

Poucos dias passados, avultou mais acirrante explicação da fuga, que necessariamente ressumou do tribunal ou das testemunhas da devassa.

Affirmava-se que Domingos Leite matara o padre Luiz da Silveira, coadjuvado pelo facinoroso meirinho Roque. A causa da morte fundavam-a na jactancia do padre em ter corrompido quando muito moça a sua discipula, que depois casou com Domingos Leite Pereira. Accrescentavam os mais imaginosos que o padre lhe escrevera depois de casada, e ella dera a carta ao marido. Sahia então um dos mais enfronhados em segredos de palacio, e explicava que el-rei, por não affrontar a memoria do clerigo, julgando racionavel a indignação do marido, avisara ao marquez de Gouvêa para que este obrigasse Domingos Leite a expatriar-se. A voz commum, afinal, era que o escrivão do civel da côrte ia caminho de Roma a negociar sua absolvição, e que Roque da Cunha estava em Madrid, vendendo barata a Filippe IV, por intermedio de D. Vicencia, a damnada alma.

Pelo que respeita ao matador de Pedro Barbosa e padre Luiz da Silveira, a opinião publica ferira certeiramente o alvo. A esposa do desembargador do paço, bem segura da indulgencia do marido, quando Roque lhe escreveu, noticiando a sua chegada a Madrid, não renegou o fructo de suas entranhas, ou por escrupulos de velha temente ao diabo com quem andara muito mana quando rapariga, ou por medo á lingua do filho, que desde os dezoito annos se emancipara envergonhando-a com suas turbulencias e gandaices.

A filha da celebrada Barbara, em cujo bordel, na rua dos Cabides, os abastardados fidalgos de D. Sebastião, velavam as armas com que se infamaram em Alcacer-Quibir, orçava então cêrca dos oitenta annos; e, não obstante edade tão avêssa de aspirações, era ardentissima faccionaria de Castella, e gosava-se de ser o cabresto de seu marido, o doutor Guedêlha, em cuja casa reunia os fidalgos portuguezes que ficaram em Hespanha, depois da acclamação do duque de Bragança, ou lá se foragiram, depois do supplicio dos conjurados de 1641.

Roque, historiando á mãe, na presença de Diogo Soares e do Conde de Figueiró, o motivo da sua fuga em companhia de Domingos Leite Pereira, não allegou fraudulentamente designios politicos: acingiu-se á verdade, calculando que seria bastante recommendação para ambos o terem apunhalado Luiz da Silveira, muito conhecido do ex-secretario Diogo Soares, no tempo em que a recovagem da correspondencia de Madrid com o arcebispo D. Sebastião de Mattos era desempenhada habilmente pelo padre. Sabia-se lá que o confidente delatara os conjurados. A nova da sua morte mysteriosa, receberam-na os fidalgos expatriados jubilosamente, e não menos grata lhes foi a presença dos vingadores das victimas do traidor. Além d'isso, o desforço do marido de Maria Isabel foi encarecido como feito de fidalgos espiritos; e tanto que, o velho Francisco Leitão, que só sahia do seu palacio para o d'el-rei, foi pessoalmente visitar Domingos Leite, e apresentar-lhe o habito de cavalleiro da ordem de Christo, com que a magnanimidade de Filippe IV o agraciava pelos motivos honrosos que o desterravam.

Quando o desembargador procurou o brioso portuguez na estalagem, estava com o fugitivo um homem entre cincoenta e sessenta annos, vigoroso, encorpado, vestido de baeta, e coberto de tabardo de borel.

–Pelo vestido, parece-me portuguez do Minho do nosso Portugal, este homem:—disse Leitão a Domingos Leite.

–É meu pae; chama-se Antonio Leite; é de Guimarães, cuteleiro de officio. Avisei-o de minha fuga, pedindo-lhe meios para subsistir em Madrid. O meu pobre pae veio trazer-m'os, e volta para a sua forja.

–V. m.ce não precisava de pedir recursos a alguem, sabendo que estão aqui portuguezes. E voltando-se para o cuteleiro, proseguiu:—Bom pae, escusa de mandar dinheiro ao seu honrado filho, que nada lhe hade faltar em Madrid.

–Mercês, meu senhor—respondeu Antonio Leite—mas, em quanto eu poder lidar na officina, o meu Domingos, querendo Deus, hade viver do que é seu. Só tenho este filho; e, graças ao Senhor, ainda sinto braços para a bigorna. Oxalá que o rapaz nunca me sahisse de casa; que, a esta hora, não andaria por terras alheias…

Terras alheias!…—objectou o velho ministro de Filippe III.—Não é terra alheia Hespanha; hespanhoes todos nós somos…

–Nemja eu!—acudiu o cuteleiro—nem meu filho o hade ser, sem a minha maldição. Tanto eu como elle nascemos na rua de Infesta, em Guimarães, onde tudo é portuguez, desde que lá nasceu e se baptisou o primeiro rei de Portugal.

Francisco Leitão espirrou uns jactos de riso zombeteiro, e regougou por entre os insultos do catharro caquetico:

–Estas abusoens do povo, filhas da ignorancia, ainda mal que nos trazem divididos os filhos do mesmo tronco visigodo, e teimam em fazer nação um retalho de Castella, que já valeu muito sobre o mar, mas que pouco monta em terra firme. Meu honrado homem de Guimarães, dou-vos de conselho que não façais alardo do vosso patriotismo em Madrid, agora principalmente que tendes cá o filho, bem acolhido nos braços dos seus compatriotas, quando os compatriotas de lá o exterminam, e o enforcariam, se o houvessem ás mãos…

–Mas, sr. desembargador—interrompeu o vimaranense—o meu filho não tem crime de ir á forca; á forca devia ir o outro que…

–Meu pae—atalhou Domingos Leite, obstando referencias á causa do homicidio—o sr. desembargador não me accusa, para que meu pae me defenda. Isso pertence á justiça, que não se hade ver embaraçada com a minha defeza.

–Nem v. m.ce com a condemnação—accrescentou o ex-conselheiro de Portugal em Madrid.—Se em Lisboa os desforços das almas nobres são punidos como os crimes dos facinorosos de profissão, el-rei nosso senhor Filippe IV galardoa Domingos Leite Pereira com o habito da ordem de Christo, e admira-se que o duque de Bragança tão indignamente remunerasse a intelligencia do secretario do marquez de Gouvêa, alentado villão que se lhe vendeu pela mesma causa, que ainda se hade vender a el-rei de Hespanha.

–O sr. marquez de Gouvêa—observou Domingos Leite—não se vendeu.

–Então deu-se de graça como quem não achou comprador?—replicou o sarcastico Guedêlha, casquinando a sua asperrima risada.—Está v. m.ce bem informado. D. Manrique, filho do castelhano conde de Portalegre, não se vendeu: atraiçoou o rei que lhe deu a coroa de marquez. Mais infame, por consequencia, que os vendidos; que estes tem a desculpa da necessidade subornada pelo ouro; em quanto o marquez de Gouvêa se infamou gratuitamente.

Pereira Leite submetteu a replica ao respeito devido á provecta edade do conselheiro, e desviou a pratica incommoda, pedindo licença para não acceitar a mercê do habito de Christo.

–Porque não?—sobreveio o desembargador.

–Porque as honras, sem a procedencia dos serviços, não lisongeam o agraciado, nem grangeam a consideração publica. Eu, como v. s.ª sabe, sou pobre. Está aqui meu pae de quem me soccorro, falta-me posses para me ostentar, e contentamento para me prezar em mais do que valho. Digne-se v. s.ª ponderar a sua magestade a minha situação qual ella é. O meu prazer, se algum posso haver n'este mundo, é a obscuridade, a solidão, o chorar tudo quanto perdi, e mais que tudo uma filha, que era toda a minha vida, e brevemente me será a morte…

–Sei isso;—interrompeu Francisco Leitão—já tudo nos contou Roque da Cunha; e minha mulher disse logo que a sua filha hade vir para a nossa companhia; e, desde menina, hade pisar as alcatifas do paço.

–Beijo as mãos de v. s.ª e de sua illustrissima esposa—disse commovido e grato Domingos Leite, desafogando em esperanças a saudade que lhe apertava o coração.

–Havemos de gizar o melhor modo—prosegiu o ministro—de trazer sua filha a Madrid, quer a mãe queira, quer não queira. V. m.ce tem um amigo capaz de tudo que é difficil. Se Roque da Cunha tentar trazer-lhe sua filha, vae a Portugal, e só não voltará, se os carrascos do duque de Bragança tiverem grande faro e grande sêde de sangue. Entretanto, se me deixa dar-lhe um conselho de amigo, de ancião, e de homem, que ha cincoenta annos lida com o capricho dos reis, digo-lhe que acceite o habito de Christo, e não perca azo de ajoelhar a sua magestade, agradecendo-lh'o. Lembre-se, emfim, sr. Domingos Leite, que D. João de Bragança, podendo rasgar a sua devassa, como rasgou tantas outras de inimigos pessoaes que se lhe venderam, ordenou ao mordomo-mór que lhe impozesse o desterro, como quem diz: «escolher entre o exterminio e o patibulo!» Bom amigo! raça de Bragança pura! couce de quartão gallego em quem o affaga, e orelha cahida ao ver o látego na mão do potreiro… Conhecemos de ha muito quem são os Braganças: por uma linha coito damnado, pela outra o lavrador de Veiros que não se tosquiou, desde que o bastardo de Pedro I lhe pegou da filha para fabricar em ella uma vergontea ducal. Ora bem… estou cansado de taramelar, meu amigo e sr. Leite. Vou-me com Deus, e cá deixo á apreciação do seu espirito intelligente estas phrases que, bem espremidas, hão de estillar muito succo. Medite-as, e… seja esperto, porque o facto de ser infeliz não o força a ser inepto. Sem mais. Escuso dizer-lhe que o deixo na obrigação de me visitar. Minha mulher quer conhecel-o, e perguntar-lhe por certas fidalgas das suas relações. O nosso grande amigo D. Rodrigo da Cunha ha quatro annos que foi dar contas a Deus do logro que pregou ao povo, fazendo cumplice das suas tramoias o braço do Senhor Crucificado. Quem diria que um prelado de tantas lettras havia de socorrer-se de tamanhas trêtas! E aquillo feito por um politico, derrancado pelo mimo com que el-rei nosso senhor o tratou a elle e a toda a parentella! Emfim, adeus; que eu, se começo a bacharellar, não despego d'aqui. Eu lhe contarei quem são os faccionarios do duque de Bragança; e, se Deus quizer, cêdo o convencerei de que o fidalgo mais facil de vender Portugal a Castella é esse a que lá chamam rei. (Nota 18.ª)

 

Na ausencia de Francisco Leitão, o cavalleiro da ordem de Christo olhou para a cara espantada do pae, e disse tristemente:

–Por desgraça, este inimigo de Portugal disse verdades horriveis. Eu sei que ha torpezas reconditas nas secretarias dos ministros de D. João IV: e, se essas são sabidas em Madrid, o edificio de 1640 hade vir a terra, derribado pelos mesmos que o levantaram. Ainda assim Deus sabe que eu desejo morrer debaixo das suas ruinas. Prouvera ao ceo que eu não estivesse em Madrid no dia em que a nossa querida terra hade ser juncada de cadaveres do povo; do povo sómente; que os fidalgos esses hão de ter novas cedulas em aberto como no tempo…

–Em que teu avô morreu na hoste do sr. D. Antonio—atalhou o pae—e eu, se Deus até lá me der vida, não hei de ver soldados hespanhoes no castello de Guimarães. Domingos!—proseguiu o artifice com vehemencia—não me ponhas essa venera ao peito; deixa-me primeiro fechar os olhos; e, depois, cá te avêm com a tua vida; que eu não veja isso, nem ouça lá dizer aos meus visinhos que tu és castelhano.

–Não ouvirá, meu pae…—refutou o filho.—Mas attenda á minha situação de foragido, em meio dos encarniçados inimigos dos bons portuguezes. Se eu campar de patriotismo em Madrid, de certo não terei amigo que me avise para fugir d'este reino para outro. Procederei de modo que não dê suspeitas a Portugal nem a Hespanha, até que um dia possa ir obscuramente morrer á casa onde nasci…

–Irás, meu filho—atalhou o cuteleiro, debulhado em lagrimas—Eu d'aqui vou direito a Lisboa, e irei lançar-me aos pés de el-rei…

–Não dê similhante passo—despersuadiu Domingos Leite.—Dois homens unicamente poderiam dominar o animo de D. João IV. Um, o mordomo-mór, rogou e foi seccamente desattendido; o outro é o alcofa do rei, Antonio Cavide, o secretario de estado, que me odeia, porque eu ousei censurar ao ouvido de quem me denunciou, que um ministro da sua polpa andasse negociando com as açafatas do paço os amores do seu rei. Desista do seu intento, que é humildade e abjecção inutil. O que eu lhe rogo é que vá ver minha filha....

–Não!—objectou o velho tregeitando um gesto de indignado.

–Porque, meu pae?

–Porque terei de ver a mãe! Não hei de ver essa mulher que te fez desgraçado! A creança não tem culpa; é verdade; mas, se eu lá for, parto a cabeça da mãe contra uma parede!

E, dizendo, estirava os ligamentos das mãos e arqueava os dedos, como se entre elles sentisse a cabeça da nora.

N'este comenos entrou Roque da Cunha, galhardeando capa e sombreiro novos, espada no telim, meias de seda, gibão de passamanes, calças golpeadas, e um tregeitar de corpo que denotava estar lá dentro uma alma espanejando-se em jubilos.

–Soube agora mesmo—exclamou com alvoroço o filho de D. Vicencia—que estava aqui teu pae. Venha de lá esse abraço!—proseguiu Roque, estreitando ao peito o cuteleiro, que se deixou abraçar impassivelmente.

–Este é o meu amigo Roque—interveiu Domingos apresentando-lh'o.

–Ah!—disse o velho, abaixando a cabeça, sem lhe desfitar os olhos onde se espelhava a desagradavel impressão que lhe incutira o aspeito do cumplice de seu filho.

–E amigo como poucos!—confirmou Roque—Amigo como nenhum! Amigo como eu só sei ser, quando os homens cá me chegam ao coração.

–Sim, senhor…—balbuciou Antonio Leite, forcejando por sopezar a antipathia que os gestos e maneiras do homem lhe oppunham aos transportes de gratidão, proprios da conjunctura.

–Teu pai está sorumbatico, ó Leite!—observou Roque, despeitado da recepção fria do velho.

–Está triste…—explicou o filho.

–Porque?!—volveu o jovial enteado de Francisco Leitão, fazendo posturas gymnasticas e reviravoltas.—Triste devia o nosso velhote estar, se em vez de vir a Madrid visitar um filho, cavalleiro da ordem de Christo, o houvesse de ir visitar a Lisboa, ao Limoeiro, d'onde alguns cavalleiros costumam sahir para dar cavallaria aos carrascos. Por que está v. m.ce triste? Diga lá! Cuida que em Hespanha não medra a melhor gente de Portugal? Tem medo que o seu filho soffra privações em uma nação, onde é recebido nos braços de um desembargador do paço, e coberto com o manto de cavalleiro que el-rei Filippe IV lhe manda, sabendo que Domingos Leite Pereira foi o discursador fogoso nos tumultos de Evora, e um dos mais estrondosos gritadores da acclamação do duque de Bragança?…

–Legitimo rei dos portuguezes—accrescentou o cuteleiro, baixando reverentemente a cabeça.

–Isso agora—replicou Roque da Cunha—é questão que nem v. m.ce nem eu decidiremos, em quanto não tivermos gráo de doutores de Salamanca. Deixemos esse officio a quem toca. V. m.ce faça partazanas na sua officina; e eu, em quanto não tiver officio, preferirei não fazer nada a fazer legitimos reis, que é coisa que não sei fabricar. Sr. Leite, sabe que mais?… Seu filho nada deve ao duque de Bragança. Se teve bom officio, maiores serviços prestou seu filho ao duque, e maiores premios devia D. João á sabedoria de Domingos Leite. A final, pagou-lhe como era de esperar de um aventureiro que subiu de duque a rei, e desceu de rei a villão, desprezando o amor provado dos amigos e galardoando o odio solapado dos inimigos, para firmar sobre consciencias vendidas a segurança do throno, de cuja legitimidade e firmeza tanto crê elle como eu. Chegada a occasião de provar que estimava Domingos Leite, não só pelo que lhe devia, mas tambem pela honra do seu delicto, que fez o seu rei? Ordena-lhe que se desterre voluntariamente, que se despoje do seu officio, que perca a patria e o pão, sob pena de ser preso, julgado, sentenciado e talvez inforcado, porque as testemunhas da devassa o culpam, de cumplicidade na morte de um clerigo torpe. E sabe v. m.ce a rasão que tem o duque para querer fingir-se justiceiro na morte do clerigo? é porque elle preza os traidores, e premeia-os á conta de os ter sempre á volta de si. Ora, como o padre Silveira lhe delatou os fidalgos em 1641, quer agora o tal chamado rei honrar-lhe a memoria, exterminando este honrado moço, a fim de que elle não possa defender-se; porque, se Domingos Leite entrasse em julgamento, havia de sahir absolvido na consciencia do povo, embora o levassem do tribunal para o oratorio.

Com quanto Antonio Leite não objectasse ao longo arrasoado de Roque da Cunha, o silencio do velho não desapprovava nem assentia; todavia, os modos grutescos do amigo de seu filho cada vez lhe azedavam mais a invencivel repugnancia.

Quando, emfim, o alegre e palavroso neto da Barbara da rua dos Cabides se despediu para ir visitar homisiados portuguezes chegados recentemente a Madrid, Antonio Leite disse ao filho:

–Tenho má fé com este homem, Domingos!…

–Porque, meu pai?!.. Não vê que elle me deu provas de amisade tamanhas, que por amor de mim perdeu a patria e o officio que tinha?

Provas de amisade…—murmurou o artifice—Maiores te daria eu, se, antes de resolveres matar o padre, me contasses a tua vida. Bom amigo seria o que te aconselhasse a não o matar…

–Então?… que me aconselharia meu pai?!

–Já t'o dei a perceber logo que me contaste as tuas desgraças. Eu, se fosse tu, fazia de conta que não tinha mulher. Tirar a vida a um homem sem rasões muito fortes, não se conforma com a minha rasão. Se elle fosse teu falso amigo, ou te desinquietasse a companheira, vá; mas, se nem ella era tua mulher nem elle sabia que tu a pretendias, mal aconselhado andaste; e, se foi este amigo que te aconselhou, máo amigo foi. Dizes tu que não puzeste a mão no padre: que foi Roque da Cunha quem o matou. Peor, peor! Quem mata um homem, que o não offendeu de longe nem de perto só por ser agradavel a um amigo, e anda depois, á laia d'este, contente e prazenteiro, olha que não é a primeira vez que mata, nem lhe custou muito essa prova que deu. Tens um máu amigo, Domingos… Acautella-te d'elle.

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