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Carlota Angela

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–Deixasses matar; antes isso, do que ficar assim… sem nada!

–Ainda temos com que viver, meu amigo. Se eramos ricos, as nossas despezas poucas eram. Faz de conta, Norberto, que o dinheiro está enterrado onde estava; tanto nos serve elle debaixo da terra, como na mão dos francezes. Sabes o que se ha de fazer? Tornemos a trabalhar como quando nos casamos. Para comer e vestir como até aqui sempre hemos de ter. Aos credores dá-se-lhe alguma cousa do que se deve, e vae-se pagando o resto aos poucos. A nossa Carlota quer ser freira, e o dote pequeno é. Eu lh'o arranjarei com as economias que poder fazer. Tenho algumas joias que se vendem, e pouco faltará para o dote de Carlota. Não achas que tenho razão, Norbertinho? Ora vamos, tem paciencia, e agradece ao Senhor em nos ter deixado a vida.

–De que diabo me serve a vida! ah! o meu dinheiro, o dinheiro da minha alma, que tanto me custou! Agora é que os outros me hão de pôr o pé no pescoço. Como não estarão contentes os invejosos! Foram elles que me roubaram. Esse homem que trazia o lenço pela cara era algum dos nossos visinhos, que não podia ver como eu ia medrando! Estou roubado! levaram-me o meu dinheiro, a minha vida, o meu suor, a minha alma. Agora matem-me, com trinta milhões de diabos! Quero morrer, antes que me vejam pobre! vou partir esta cabeça n'uma pedra, e tu fica para ahi a pedir uma esmola, já que disseste onde estava tudo quanto tinhamos.

N'estas e n'outras lamentações, em que a blasphemia não faltava nunca, curtiu, no Candal, a empeçonhada existencia o miserando arrozeiro, durante tres semanas, até que lhe pegou uma febre, e uns frenesis de energumeno, que o pozeram ás portas do inferno. Salvaram-o algumas tisanas, e os confortos de dois ou tres amigos compadecidos que, rogados por D. Rosalia, lhe foram dar esperanças de rehaver com capitaes emprestados, senão tanto quanto perdera, ao menos mais que o necessario para viver com decencia e satisfação. A convalescença foi morosa, e arriscada com recaídas, procedentes de vertigens que advinham depois dos prantos pelo seu dinheiro.

Voltando ao Porto, logo que o exercito francez saíu, fez uma honrosa concordata com os seus credores, e retomou as redeas do seu mester, ajudado pelos amigos e desvelos da mulher, que toda era energia, actividade, e carinho para fazer esquecer a pobreza a seu marido, preoccupando-o com a esperança de enriquecer outra vez.

N'aquelle tempo, porém, esta cousa a que hoje, em francez, se chama fortuna, não se alcançava com a rapidez de agora. A perda do proveito de quarenta annos lidados na vida commercial eram necessarios outros quarenta annos para restaural-a. Por isso que o caminho de ferro era uma utopia, e a celeridade do fio electrico um ideal dos contrasensos impossiveis, a maquina de fazer dinheiro era um mytho, em que se acreditava porque a moeda corrente era fundida e cunhada; mas nenhum particular julgava possivel fazer em sua casa dinheiro.

A posição de Norberto era, portanto, relativamente má. Descorçoado para as labutações do negocio, sufficientemente obtuso para chegar por devezas e atalhos á estrada que os outros palmilham tarde e a más horas, o negociante decaído lá sentia em si roer a desconfiança de que não havia para elle mais readquirir a centena de contos, que tão perto d'elle estavam encalhados entre as fendas de alguma rocha.

Esta descrença entibiava-lhe o animo, infundindo-lhe uma melancolia taciturna e lethargica, d'onde não havia nada que o podésse divertir.

Carlota Angela, recolhida ao seu suspirado mosteiro, soube da desgraça de sua familia. Ergueu as mãos ao Senhor, pedindo-lhe que alliviasse as mágoas de seus paes, e lhes désse, em troca da riqueza perdida, a esperança de maior felicidade no céo.

Quando D. Rosalia disse ao marido qual era a supplica incessante de Carlota, Norberto respondeu:

–Ora! qual céo, nem meio céo! Diz-lhe que peça a Deus que me dê dinheiro.

XIV

 
Que ansias, que deseos,
Que trabajos, conxogas, e sudores!…
 
P. Pedro de Salles. (Emblemas.)

Quando o corregedor Joaquim Antonio de Sampayo foi suppliciado, o general Botelho mandou examinar os papeis do jacobino com a esperança de encontrar algum que justificasse a violenta morte do magistrado, no caso de lhe serem pedidas contas do estranho feito.

As leis militares não permittiam tal excesso, quando os réos não eram encontrados com armas na mão defendendo os invasores.

No quartel general de Botelho andava um ajudante de ordens que fora condiscipulo e amigo de Francisco Salter de Mendonça no collegio militar. Foi esse o encarregado de examinar os papeis.

Mal tinha revolvido alguns massos de cartas sem importancia, e officios de serviço publico, uns assignados pelo governador do reino, outros pela junta governativa, louvando todos a energia e zelo do magistrado, quando reparou n'um rolo de papeis atados todos com uma guita, sendo a capa exterior um sobrescripto que dizia: Ao ill.mo snr. Francisco Salter de Mendonça.—Rio de Janeiro.

O examinador, espantado de encontrar o nome do seu amigo entre papeis do defuncto jacobino, receiou que algumas intelligencias desgraçadas e deshonrosas para Francisco Salter podessem existir com os clubs revolucionarios. Antes que alguem entrasse no escriptorio, o ajudante de ordens do general Botelho escondeu o masso de papeis, e ancioso de curiosidade, não tardou a examinal-os o mais escondidamente que pôde.

Viu uma, outra, e outra até vinte e tantas cartas assignadas por Carlota Angela. Outras tantas, se mais não eram, assignadas por Francisco Salter. Quem era esta Carlota Angela? interrogava-se o confuso leitor das lagrimosas cartas. Como viera esta correspondencia dar á mão do corregedor de ***? Qual seria o valor occulto de uns papeis que tão estranhos pareciam ao funccionalismo do magistrado?

O ajudante de ordens, logo que o exercito invasor desalojou do Porto, foi ao mosteiro de S. Bento da Avè Maria procurar Carlota Angela para esquadrinhar o mysterio da correspondencia. Não encontrou alguem que o informasse: no mosteiro tinham apenas ficado uma freira demente, e duas criadas entrévadas, que apenas souberam dizer que a noviça Carlota Angela fugira com sua tia para um convento da provincia.

Proseguia em inuteis averiguações o curioso militar, quando a junta provisoria o nomeou para ir ao Rio de Janeiro dar parte das occorrencias da infausta invasão, e da derrota fabulosa que os francezes iam soffrendo na retirada.

O emissario aceitou da melhor vontade a enviatura, esperançoso de encontrar no Rio de Janeiro o seu amigo da mocidade Francisco Salter de Mendonça.

Apenas desembarcou, o primeiro official de marinha que lhe saiu ao encontro foi Salter. Logo alli se aprasaram para uma conferencia de alguma importancia, depois de entregues ao governo as participações do reino.

–Que ha de commum entre ti, e um tal Joaquim Antonio de Sampayo, que foi enforcado no Minho?

–Enforcado!

–Sim, garroteado por jacobino, traidor ao rei e á patria e á santa religião, como lá se diz. Conhecial-o?

–Perfeitamente. Esse homem era tio de uma mulher que me obriga a desertar ámanhã, para ir procural-a no Porto.

–Se o teu fim é saber onde ella está, posso dar-te algumas informações.

–Conheces Carlota Angela?!—interrompeu alvorotado o capitão de marinha.

–Conheço pelas amarguradas cartas que te escrevia.

–Cartas! Quaes?! Eu não recebi cartas algumas de Carlota.

–Se as não recebeste, podes lel-as agora, porque eu sou o portador de duas duzias d'ellas, que fazem chorar as pedras.

–Como te vieram essas cartas á mão? Dá-m'as.

–Lá vamos; mas primeiro quero que me expliques como estas cartas foram á mão do tal corregedor enforcado.

–Isso é uma historia longa e atroz. Dá-me as cartas, que eu tudo te explicarei depois.

–Pois sim: ahi vão as cartas da Carlotinha, mas tenho no outro bolso outras tantas escriptas á tua dama.

–Por quem?

–Por um nosso condiscipulo do collegio militar, que, segundo se deprehende do ardor da linguagem, deve amal-a como um louco.

–Quem é elle?

–Um terrivel paralta, que saíu da patria deixando por lá nos mosteiros noviças apaixonadas.

–Quem? depressa… diz-me o nome d'esse homem.

–Francisco Salter de Mendonça é como elle assigna as lamuriantes epistolas: eil-as aqui.

Tu me dirás agora se o corregedor era o teu alcayote para a dolorida noviça.

Salter devorava as palavras da primeira carta de Carlota, sem entender as ideias. De uma passava a outra, examinando nem elle sabia o quê. O sangue subiu-lhe á flor do rosto, inflammando-lhe as pupillas irrequietas. Era uma d'essas alegrias que chegam a doer em seu frenesi. Ao rubor succedeu a pallidez subita, e o suor da vertigem. Não lhe cabia o coração no peito, nem bastava ao afogo dos pulmões o ar que aspirava a profundos haustos. Soltou uma exclamação puxada do intimo da alma, um ai desafogado, vibrante, e das entranhas como se lhe desentalassem a garganta quando o laço o fazia já estrebuxar em arrancos de morte.

O condiscipulo estava pasmado d'este conflicto, e tanto se lhe afigurou respeitavel o jubilo ou a agonia de Salter, que não ousou interromper a scena muda d'aquelle lance. Salter lançou-se-lhe aos braços, chorando como uma creança, e proferindo afogadas exclamações, que pareciam os gemidos que faz soltar uma dor physica incomportavel.

–Então isto é muito mais valioso do que eu suppunha!—disse o ajudante de ordens—Que feliz eu sou, se vim tirar-te de alguma duvida tormentosa.

–Trouxeste-me a esperança, a vida, o céo. Estas cartas são d'ella, da minha esposa.

–Tua esposa? Pois Carlota Angela não é uma noviça?

 

–Não; é apenas uma secular no mosteiro de S. Bento.

–Não foi isso o que me disseram no convento.

–Pois o que te disseram?!

–Procurei-a para ver se ella me aclarava o mysterio d'essas cartas. Disse-me uma criada que todas as religiosas tinham fugido aos francezes, e a noviça Carlota Angela fugira com sua tia freira.

–A noviça! Isso é impossivel!

–Será; mas foi isto o que se me repetiu fóra do convento. Casualmente me encontrei n'uma casa onde se fallava no grande roubo feito pelos francezes a um tal Meirelles, rico negociante do Porto, que ficara pobre. Alguem disse que esse Meirelles era o pae de uma noviça creança, que já tinha acabado o tempo do noviciado, e se chamava Carlota Angela. Quiz inquirir mais particularidades que me explicassem as tuas relações com a tal menina, e nada colhi. Propunha-me procurar directamente informações do negociante, quando fui encarregado da commissão que trouxe. Aqui tens o que sei, e o que não sei has de tu sabel-o explicar melhor do que eu.

–Sei tudo!—exclamou com força e precipitação Mendonça—Sei tudo… Ámanhã vou para Portugal. Já pedi licença, e não m'a deram. Não importa. Deserto. Julguem-me como quizerem; condemnem-me, arcabuzem-me, mas que eu veja Carlota antes de morrer. Esta mulher é tudo quanto eu tenho na vida. Se eu não morrer por ella, se me não sacrificar na honra, em tudo quanto ha mais sagrado na vida, sou um infame sem rehabilitação perante Deus e a minha consciencia. Se ella está morta, fui eu que a matei, não foi o malvado que me roubou estas cartas, e privou a desgraçada Carlota de ver as minhas. Já comprehendes o segredo d'estas cartas? Esse homem que mataram, solicitou o meu desterro, para obstar ao meu casamento com a sobrinha. Interceptou a nossa correspondencia com o fim de matar n'ella o amor com a certeza da ingratidão. Foi elle quem me enviou aqui um homem com a noticia de que ella se tinha casado. Eu esforço-me ha seis mezes em vão para conseguir licença de ir a Portugal salvar este anjo, e curar-me da desesperação que me tem levado ao extremo do suicidio muitas vezes. Agora creio que perdi Carlota. Quando chegar ao Porto estará ella já professa. Não importa. Quero vel-a, quero que ella me veja morrer braçado aos ferros que a separam de mim para sempre. Esta minha agonia não tem igual n'este mundo, meu amigo. Separam-me duas mil leguas da mulher que eu poderia salvar, se a visse n'este momento. Por que a não procuraste tu? por que lhe não mostraste estas cartas, que nos salvariam ambos? Podias ter-nos feito um bem, que eu te agradeceria de joelhos, e ella endoudeceria de jubilo… Paciencia… já agora devorarei todas as torturas da duvida com menos angustia. Ainda tenho uma esperança… Disseste-me que o pae de Carlota estava pobre. Talvez que não possa dar-lhe o dote para a profissão, talvez que uma doença retarde esse terrivel acontecimento. Talvez que Deus se compadeça de nós ambos, e lhe inspire a esperança de tornar-me a ver. Nunca tive tanta confiança na misericordia divina. É impossivel que Deus veja com indifferença o terrivel resultado da profissão. Eu vou arrancal-a do altar, vou disputal-a a Deus, vou amaldiçoar a religião cruenta que receber uma mulher que me pertence por um juramento mais sagrado que todos os votos do claustro.

Não cansou ainda aqui o fôlego da estirada declamação. Salter fallou horas, e o amigo escutou-o com admiravel paciencia, até que pôde admoestal-o que não fugisse, nem saísse do Brazil sem licença. Nem ao menos conseguiu com as mais atiladas razões retardar um dia a deserção. Já o amigo se offerecia para pedir ao principe regente a licença, trocando por ella a commenda da torre e espada com que sua magestade o agraciara, ao ouvir-lhe as novidades prósperas do reino. Salter rejeitava conselhos e favores. O brigue saía no dia immediato, e não estava ainda marcada a saída de outro navio. Negarem-lhe a licença era já um capricho, senão antes uma desconfiança fomentada pelo bacharel Sampayo. Ao lado do ministro havia alguem que lhe insinuava a suspeita de ser Mendonça um forçado vassallo do principe, e um jacobino que Manique soubera desterrar a tempo.

O governo não dera ao capitão de marinha satisfação alguma pelos arbitrios do capitão-general, durante o tempo que estivera preso. O mais que fez foi dar-lhe liberdade, reprehendendo-o por ter feito justiça com suas proprias mãos, sobre um homem que viera ao Rio em commissão de confiança.

Salter tragou em silencio o novo vilipendio, e protestou, não só desertar, mas alistar-se no exercito francez, e atirar-se como desesperado aos braços da morte, na primeira batalha que lhe deparasse a sua negra fortuna.

Eram, pois, baldadas todas as reflexões do ajudante de ordens.

A bordo do brigue inglez havia ordem para receber um marinheiro portuguez, e um preto marinheiro tambem. Ao anoitecer d'esse dia Francisco Salter de Mendonça, e o escravo que lhe assistiu durante a prisão, vestidos de marinheiros, foram recebidos no brigue. Na manhã do dia immediato, quando o ajudante de ordens, ancioso de alegria, procurava Salter para lhe entregar a licença que o principe assignara, contra as suggestões do ministro, o vaso inglez já tinha saído.

O solicitador da licença foi dizer ao principe que o capitão da armada não poderá vir beijar a mão de sua magestade antes de sair, porque o brigue já tinha levantado ancora, quando a licença chegou.

Este expediente fez que Francisco Salter não fosse julgado desertor, posto que as averiguações feitas pelo ministro contrariassem o depoimento do generoso amigo, que ficara destruindo a intriga.

O romance deixa de ser impertinente e aborrecido. Vamos entrar nas scenas tristes e sombrias.

XV

 
Crescei, mágoas, crescei, e crescei, dores;
Quebrai o vagaroso e triste fio
Que alonga a cruel Parca…
 
Ferreira. (Eleg. 5.ª)

As freiras dispersas recolheram ao seu convento da Avè Maria, um mez depois da entrada do exercito anglo-luso no Porto.

Carlota Angela acompanhara sua tia, com quanto jubilo podia caber-lhe no ambito da alma. Considerando a grandeza das penas que a flagellavam, só á religião deve conceder-se o mystico poder de allivios, e alegrias para a pobre, que tão infeliz era, e mais infeliz seria, se não tivesse a táboa da religião em naufragio tão procelloso.

Apenas entrou no convento, quiz ver seus paes, dizendo que talvez elles, na desgraça, precisassem de que lhes fallasse a linguagem da paciencia, e da esperança nas riquezas do céo. D. Rosalia, foi chorar ao pé da filha, e retirou-se consolada. Norberto de Meirelles contou-lhe tres vezes a horrivel historia do roubo, e chorou outras tantas lagrimas como punhos. Acudia Carlota com as uncções piedosas da paciencia, promettendo-lhe alcançar de Deus com orações e penitencias a prosperidade do negocio que seu pae recomeçara. O arrozeiro dava como impossivel a restauração dos haveres perdidos, e afiançava que não viveria muito tempo, porque a paixão do seu peculio, adquirido com tanta honra e trabalho, o levaria á cova. No tocante ao auxilio que os santos podiam dar-lhe para repôr o seu commercio no antigo pé, Norberto era um iconoclasta requintado; não fiava nada dos santos, nem das jaculatorias, antiphonas, e responsos de sua filha.

Teimoso e cabeçudo como um philosopho, argumentava contra a religião, allegando em favor da sua heratica parvidade que se houvesse céo e inferno não estava elle arrozeiro sem o seu peculio, porque tinha sido sempre bom christão, e fora roubado por hereges.

Este argumento não é de certo o mais stolido que se tem envidado contra a religião christã, por parte da philosophia; d'onde se conclue que detraz de qualquer balcão se póde erguer um Ario, um Luthero, um Calvino, um Voltaire de tamancos, e arrojar ao seio da sociedade uma bomba recheiada de argumentos incendiarios como aquelle.

Assim como nós não sabemos que responder de repente ao atheismo de Norberto de Meirelles, Carlota Angela não se nos avantajava em promptidão de dialectica theologica, do que resultou sair o pae duas ou tres vezes, da grade incredulo como entrara.

Uma vez lhe disse elle que perdesse a esperança de ser freira, porque não tinha dote, nem pedia emprestados cinco mil cruzados para empatar n'um modo de vida que não rendia sequer o juro da lei.

Carlota sabia de mais as circumstancias de seu pae, quando esta esperada revelação lhe foi feita. Serena e carinhosa, como sempre o fora, desde que a desgraça entrara em sua casa, respondeu-lhe que não tivesse elle cuidado com a sua profissão, porque a prelada a recebia pela prenda da musica, em que ella estudava continuamente, e a tia Rufina lhe fazia as pequenas despezas necessarias para a profissão.

Estavam as cousas n'este pé, quando Antonio José da Silva, mercador de pannos que foi na rua das Flores, pessoa a todos os respeitos digna de larga chronica (como de feito a teve na Filha do arcediago) e um dos maiores credores de Norberto, se apresentou pedindo em casamento Carlota Angela, estipulando as seguintes clausulas:

1.ª Pagaria todas as dividas do sogro, e adiantaria dez contos de réis para casco de novo negocio, a juro de quatro e meio por cento.

2.ª Compraria a quinta do Candal, já traspassada para pagamento de dividas, e daria o usofructo d'ella a seus sogros, reservando para si a hortaliça necessaria ao consumo da casa, dois gigos de maçã camoeza, dez alqueires de feijão branco, e os pastios necessarios para quatro cevados.

Item. Daria aos paes de Carlota paga e quitação das quantias que lhe estivessem devendo no acto de se lavrarem as escripturas de casamento.

Item. Sua mulher iria viver na rua das Flores, e não tornaria a ir aos balancés por onde costumava andar em solteira, nem trajaria vestidos como as fidalgas, nem andaria de corpo bem feito sem mantilha, quando fosse á missa, ou désse, aos domingos de tarde, um passeio até Campanhã, ou Valbom.

Estes artigos depôl-os sobre a mesa Antonio José da Silva, em seguida á proposta de casamento, a que Norberto, embrutecido pela fortuna de similhante proposta, respondeu logo que o negocio se havia de arranjar.

E sem perda de tempo, entrou o arrozeiro no pateo de S. Bento com uma cara tão festiva e gozosa, que deu nos olhos á madre porteira.

Mandou chamar a filha, e rompeu assim o dialogo, com assomos de boçal jucundidade:

–Estamos outra vez ricos, rapariga!

–Ricos?!

–Sim, ricos! alegra-te, Carlota.

–Pois que foi, meu pae? Appareceu-lhe o seu dinheiro?

–Quem dera isso! É cá outra cousa, menina! Estamos ricos, porque tu vaes ser muito rica.

–Eu!? De que maneira?

–O Antonio da rua das Flores pediu-te em casamento.

Carlota engasgou-se, quando soltava uma palavra ou exclamação imperceptivel.

–Não conheces o Antonio José da Silva? Aquelle rapaz que está podre de rico? aquelle que herdou a casa do patrão, aqui ha tres annos? Ora essa! não conheces?!

–Não conheço, nem quero conhecer, meu pae.

–Tu que dizes, Carlota!? Pois tu não queres casar com elle?!

–Não, senhor.

–Ó pobretaina de uma figa! pois tu vês que não tens nada, que teus paes estão pobres como Job, e não queres valer aos auctores de teus dias?

–Não, meu pae, eu dou a minha vida aos auctores d'ella, se a quizerem; mas o coração, que já dei a Deus, não póde ser de mais alguem. O pae não é tão innocente como parece. Devia suppôr que a minha resposta era esta. Quando entrei n'esta casa, disse-lhe francamente as minhas tenções. Como ellas não estavam dependentes dos thesouros de meu pae, a perda d'esses thesouros não as alterou na minima cousa. Sou a mesma que era, e brevemente serei o que já não posso deixar de ser: uma freira pobre sem precisão de ser rica, com muito mais do que me é necessario para ir amparando a minha curta vida no serviço de Deus, e na penitencia dos meus peccados, e dos peccados alheios.

–Não quero sermões, com mil diabos! vociferou o arrozeiro, batendo um retumbante punhado sobre a banqueta—Não venho ouvir prédicas! És minha filha, e has de fazer o que eu quizer. Não te dou o consentimento para seres freira!

–Paciencia: sel-o-hei na intenção; mas não sairei do convento.

–Has de sair por justiça.

–Morta, póde ser.

–Viva, e muito viva, eu t'o juro por esta luz que nos alumia!

–Não jure, pae, que se engana. Ninguem será capaz de me arrancar com vida para fóra d'esta casa. Quando eu não tiver forças com que me agarrar a estes ferros, nada se me dá que me levem para fóra, porque a minha alma já terá subido d'aqui á presença de Deus.

–Conta-me lônas, que eu te ensinarei. Filha maldita, que viste teu pae pobre e desgraçado, e não lhe valeste! Filha cruel, eu te amaldiçôo em nome do Padre, e do Filho, e do Espirito Santo. Amen.

 

–Meu Deus!—exclamou Carlota—Ó meu pae, não profira similhantes palavras! Não augmente a triste vida que eu tenho. Eu lhe prometto de trabalhar toda a minha vida para que em sua casa nunca haja a menor privação. Pedirei esmolas ás senhoras religiosas ricas, para lhe mandar, meu pae. Não me amaldiçôe, que eu não lhe mereço esse castigo, nem é possivel que Deus consinta que a sua maldição seja valiosa. Pelas chagas de Christo, arrependa-se d'essas amargas palavras que disse…

A pobre menina, banhada em lagrimas, supplicava ainda de joelhos, quando Norberto de Meirelles saíu da grade esbaforido, resfolegando vapores do interior vulcanico do peito.

Ao passar por Antonio José da Silva, que o esperava á porta da loja, na rua das Flores, disse-lhe:

–Nada feito.

–Venha cá, snr. Norberto, conte lá isso. Com que então não é o mel p'ra bôca do asno; aqui calha melhor dizer da asna, digo bem, snr. Norberto?

–V. m. é pouco cortez, snr. Antonio. Se vamos a pôr as cousas no direito, ninguem póde ser asno sem sua licença. Lá por que a minha filha me desobedece não dou ousio a v. m. de lhe chamar nomes, que é o mesmo que chamarm'os a mim. Se é rico, snr. Antonio, eu tambem já o fui, e não tratava ninguem de asno, porque aprendi a cortezia com as pessoas de bem com quem sempre tratei.

–Não se enfade, homem,—replicou o irmão da snr.ª Angelica (honrosamente mencionada na Filha do arcediago) pondo-lhe as mãos vermelhas, como dois mólhos de rábanos, sobre os hombros—não vá a Vallongo por tão pouco, snr. Norberto. Isto que eu lhe disse foi assim um modo de fallar, sem aquella de injuriar a sua filha, nem a v. m., que tem os figados, como lá diz o dictado, muito ao pé da bôca. Entre cá, sente-se, desabafe, e veja se quer tomar um copo do da instituição da Companhia, e uma cavaca de Arouca pare lhe dar animo.

–Obrigado; não quero nada; passe v. m. muito bem, e rasgue quando quizer o tal papelucho das condições que me deu… Aqui o tem. Emquanto ao que lhe devo, se v. m. não quizer esperar que eu lhe possa pagar, mande tomar conta do que eu tiver, e fica d'aqui já arrumada esta pendencia.

–Espere, homem, que ainda não chegaram as cousas a esse ponto. Eu quero fallar com a sua filha, e mau é se ella me não dá o sim. Uma cousa é ir, outra mandar.

–Não faz nada, snr. Antonio, digo-lh'o eu. A rapariga não falla como nós, e tem lá na cabeça um palavriado da breca, que não sei onde ella o foi aprender. Dizia-me o meu cunhado doutor (Deus lhe falle n'alma), que a cabeça de Carlota era um vulcão. V. m. sabe o que é um vulcão?

Vulcão, pelos modos, é… é o mesmo que balcão

–Bem no digo eu! Vulcão é uma cousa de lume que sáe debaixo da terra.

–Ah!—interrompeu o snr. Antonio, abrindo a bôca como em testimunho da sua admiração—Já entendo… Quer dizer que ella tem grandes fumaças de ser bonita!… Olha o milagre! bonita é, mas ha-as por ahi tão bonitas como ella, que tomaram que eu as quizesse. Emfim, eu sempre lá quero ir, dê no que der. Assim como assim, nada se perde. O que for soará. Appareça por aqui ámanhã, snr. Norberto.

Afoutado por tão estupida esperança, Antonio José da Silva teve a audacia de procurar Carlota Angela. Vae ler-se o texto d'esta visita, porque foi ella uma das maiores affrontas que a desgraça fez á pobre menina. Todas as outras, confrontadas com esta, eram favores da fortuna.

O snr. Antonio ignorava a pratica dos conventos, ao tocante a locutorios. Quando o introduziram, pela primeira vez de sua vida, em uma grade, o alapuzado moço achou-se affrontado com a vista dos ferros. Carlota appareceu com sua tia, meia hora depois que a esperavam. Esse espaço de tempo fora necessario á freira para convencer a sobrinha de que não era civil nem bonito deixar de receber a visita, qualquer que fosse a intenção da pessoa que a visitava.

–Bons dias, minhas senhoras—disse Antonio, avançando e recuando, tres vezes, uma assaralhopada cortezia.—Não me conhecem?

–Já soubemos que era o snr. Antonio José da Silva que procurava minha sobrinha—disse soror Rufina.

–Já sabem ao que vim, pelos modos.

–Ignoramos.

–Venho a troco do que se passou com o snr. Norberto.

–Parece impossivel!—acudiu Carlota—Eu creio que disse claramente a meu pae o que é escusado repetir ao snr. Silva.

–A menina ha de fazer favor de me ouvir um bocadinho, se não tem muito que fazer.

–Pois não! queira fallar—disse Rufina.

–Eu sympathiso com a snr.ª D. Carlotinha desde que a vi nas endoenças da Misericordia faz agora cinco annos. Já então me deu na venêta de a pedir ao snr. seu pae; mas rosnava-se por ahi que a menina não gostava de rapazes do negocio, e tinha lá suas tendencias para a farda. Metti a falla no bucho, e esperei até ver no que paravam as cousas. Depois aconteceu em sua casa a desgraça d'aquelle grande roubo, o snr. Norberto ficou mal arranjado de fortuna, e eu, como o outro que diz, fiquei sendo o mesmo homem a respeito da menina. Fui pedil-a a seu pae em casamento, e elle ficou a pular de contente, porque, a fallar-lhe a verdade, não é por me gabar, mas seu pae não endireita mais a cabeça se eu não casar com a menina. Em primeiro logar, rasgo as letras que se vencem contra o snr. Norberto no mez que vem, depois empresto-lhe quasi sem juro o capital necessario para elle montar o negocio no pé em que estava antes da quebra; depois, arremato a quinta do Candal em nome da snr.ª D. Carlotinha, porque já ouvi dizer que a menina gosta muito da aldeia, e eu tambem não desgosto, porque lá cômo muito melhor, e as aguas são mais leves. Pois é verdade: eu venho para este fim. Agora veja lá a menina o que decide. Se quer ser minha esposa, trato de arranjar os papeis, botam-se os banhos, e vamos a isto. Então que diz?

–Já respondi a meu pae—disse, com mal disfarçada cólera, Carlota Angela.—Não me queixo do snr. por aqui vir com similhante fim; creio que meu pae, por delicadeza, lhe não diria sem rebuço a minha resposta. Eu não caso com o snr. Silva, nem com alguem. Resolvi ser religiosa. O meu tempo de noviciado acabou. Estou esperando a licença regia para professar.

–Deixe-se de asneiras—atalhou Antonio José, soltando um boçal frouxo de riso que indignou Rufina e enojou Carlota—Pois a menina quer-se vir aqui metter n'esta espelunca, podendo ser rica e viver regaladamente como pouca gente! Tenha juizo, creaturinha! Isto de convento é bom para quem não tem, como o outro que diz, um marido que lhe dê tudo o que for necessario para o augmento da sua pessoa, e que a traga nas pontinhas.

Carlota erguera-se para sair. Rufina seguira o exemplo da sobrinha. Antonio José da Silva permanecera refestellado na cadeira, até que se ergueu, forçado pela silenciosa mesura das duas senhoras, exclamando:

–Então que diz?!

–Minha sobrinha já respondeu ao snr. Antonio—disse a freira affavelmente.

–Com que então, nada feito?—redarguiu o lêrdo aspirante ao matrimonio, que, dez annos depois, lhe empeçonhou a existencia, segundo reza a chronica já citada, da qual entendemos que a leitora deve prover-se, se a zanga que lhe faz o bronco mercador de pannos requer uma vingança superior ao delicto—Pois sabe que mais, snr.ª D. Carlota?—proseguiu, erguendo-se, com modos colericos, e brutalmente canhotos—Eu entendo o que isso é, e bem sei por que a menina anda a fingir que quer ser freira p'ra dar tempo a que elle volte lá do Brazil.

–Elle! quem?!—exclamou Carlota com assomos de indignação, que o só olhar da tia sofreou.

–Faça-se de novas! pois não sabe quem?! o da marinha, aquelle que lhe caiu lá no gôto, porque trazia a cintura arrochada no fardalhão, que sabe Deus a quem elle o ficou devendo, quando foi para Lisboa…

Carlota Angela saiu precipitadamente da grade; soror Rufina ficou para explicar ao sandeu a descortezia da sobrinha; aconteceu, porém, que elle não se julgou affrontado pelo impeto da saida.

–Snr. Antonio—disse a freira—v. m. está ahi fallando n'uma pessoa que morreu. Minha sobrinha não espera alguem.

–Eu não sabia que elle morreu! Isso agora é outro caso… Acho que fiz uma asneira em lembral-o á pobre moça! Faça favor de lhe dizer que me desculpe. Ora olhem quem havia de dizer que o tal rapaz dera á casca lá no Brazil! Pois eu cuidava que ella estava, como diz lá o outro, encantada por elle, como a doninha com o sapo. Ainda bem que ella lhe não caíu nas mãos, porque pelos modos o homem era jacobino, e melhor foi assim, não lhe parece, senhora Madre?

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