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Carlota Angela

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XII

Nous en avons les preuves irrécusables sous nos propres yeux.

Volney. (Leçons d'Histoire.)


Eis-aqui como o diabo os leva para o inferno sem appellação nem aggravo.

S. S. da S. e Silva. (Governo do mundo em secco.)

Junot recebera do imperador a graça de duque de Abrantes. Felicitaram-o as corporações civis e militares, e muitos particulares da alta nobreza, mercancia que o francez fizera sem blandicias nem razões de Estado persuasivas. A consciencia d'estes miseraveis transigira com o renegar tradições, nome, patria, pudor, e honra, logo que as palavras «contribuição e confisco» os ameaçou de expiarem na dureza das nobres privações a repleção estomacal de seculos. O conde da Ega, Ayres de Saldanha, o bispo do Porto, o principal Miranda, e outros que mais avultam na veniaga torpe, são uma parcella no rebanho das ovelhas tinhosas, immoladas na sua dignidade aos pés do soldado aventureiro, que lhes cuspira na cara o preço das almas, e nas quinas portuguezas a affronta d'elles.

Emquanto estes, envilecidos como nunca fora nação usurpada, pediam a Napoleão um rei francez, e nomeadamente Junot I para a terra de D. João I e D. Manoel; emquanto os fidalgos de sangue phenicio, carthaginez, suevo e godo, sem mescla do judaico, requeriam a Junot os empregos desamparados por outros fidalgos, que acompanharam o regente para o Brazil, aterrados de pavor, e, como elle, acocorados ao pé das velhas açafatas de D. Maria I; quem eram os portuguezes de consciencia e esforço n'esta nação desmembrada, n'esta metropole de tamanha parte do mundo, offerecida pelos netos dos que a conquistaram a um soldado francez?

Alguns ergueram a fronte, sem o ferrete da venda, por entre a turba dos nobres, que a devassidão herdada enfraquecera e deixara caír no tremedal d'onde o historiador severo ha de buscal-os para os inscrever no livro dos paroxismos vergonhosos da raça de piratas, que pouco tempo logrou o fructo dos seus flagicios.

Esses, que levantaram o rosto sem mancha, para saudar no throno reerguido o degenerado neto do Mestre da Aviz, eram uma classe menos timida que a do vulgacho, a mais quieta na sua obscuridade, a que fora, nos dois ultimos seculos, pouco e pouco espoliada dos seus antigos fóros municipaes, a classe média, emfim, cuja importancia na cidade delimitava-se a engrossar a veia da thesouro.

Foram esses homens, robustos de seiva e espiritos nacionaes, os unicos que se concatenaram em reacção, surda e tenacissima na oppressão, contra os tyrannos; foram esses os tributarios liberaes de fazenda e sangue á restauração duvidosa do throno, que lhes pediu, depois, com que reparar o antigo fausto; foram, para tudo dizer de um traço, foram elles os que nunca esmoreceram no resgate da terra captiva do Encelado, que quizera abarcar o mundo entre as duas extremidades da sua espada invencivel, salpicada com o sangue de nações poderosas.

O bacharel Joaquim Antonio de Sampayo (é de quem o leitor supercilioso quer que se lhe falle, e da melhor vontade me dispensa de reflexões impertinentes, que me manda pôr de conserva para quando escrever um livro serio, grave, e reflectido, que ninguem ha de comprar): o bacharel Joaquim Antonio de Sampayo vestiu-se á côrte, de chapéo armado, espadim, meia de seda, e fivelas de prata. Disseram que estas fivelas tinham pertencido a um santo da patriarchal: isto parece-nos calumnia. Folheamos, e esgaravatamos o agiologio europeu, e não deparamos santo contemporaneo das fivelas. O historiador veridico rejeita, como Tacito na biographia dos grandes scelerados de Roma, as toardas de phantasia para infamar caracteres onde sobejam crimes provados para a execração universal. Desculpem a intumecencia do estylo, que a materia não é tanto de sóco, como á primeira vista parece.

O duque de Abrantes recebeu affavelmente o bacharel, e, na presença dos fidalgos, que estendiam já a mão soberba ao ajudante do ex-intendente Manique, entregou-lhe a nomeação de juiz para um tribunal especial militar, creado no Porto por decreto de 9 de maio de 1808.

O fim ostensivo d'esta alçada era punir os perturbadores da segurança publica, nos variados delictos que a legislação do reino não previra.

A sentença d'este tribunal era executada no praso de vinte e quatro horas, sem revista ou appellação.

O bacharel agradecido caiu de joelhos aos pés do duque de Abrantes, que se dignou levantal-o pela gola da casaca; os copos do faim, porém, travando-se na fivela do calção, rasgaram-lhe a meia na barriga da perna, abrindo fenda por onde regorgitou uma almofada supplementar á tibia descarnada e cortante do atravancado palerma. Riu Junot, e os fidalgos riram tambem. Sampayo, ligeiramente corrido, arrancou o musculo de algodão, escorchou-o entre a mão nervuda, e pediu licença para ir remediar os estragos do espadim, que, no dizer mansinho do conde da Ega ao fidalgo immediato, só nas pernas postiças do seu dono faria tamanho estrago.

O juiz do tribunal militar partiu, no dia immediato, para o Porto, onde era preciso refrear os animos indomados dos portuenses.

Norberto de Meirelles contou de novo a seu cunhado o já dito em longa carta, que Sampayo não lera, ácerca do noviciado de Carlota.

–Tudo se ha de remediar, que temos muito tempo—disse o bacharel.—Em ultimo caso, nunca ella ha de alcançar licença regia para a profissão. Agora, do que se trata, é de me pôres a bom recado estes dois caixões de prata, que me foram confiados por um meu amigo que emigrou com o principe para o Brazil. Cuidado com isso, que estão ahi alguns contos de réis, e eu fiz responsavel a minha honra á entrega d'estes caixões, logo que o meu amigo volte com o favor de uma amnistia, que trato de lhe alcançar do meu particularissimo amigo duque de Abrantes.

–E que me diz o doutor a respeito do snr. Junot?—disse Norberto de Meirelles—Pelos modos, ouvi dizer que elle já está despachado rei de Portugal!

–Isso tem seus fundamentos, cunhado. Eu e os meus amigos conde da Ega e Ayres de Saldanha trabalhamos para a sua acclamação.

–Então o cunhado é amigo d'esses governos lá da côrte? Com effeito sempre lhe digo que o que o doutor não fizer, não o faz o deanho. Aquella de fazer ir o pintalegrete pela barra fóra, custou carita, mas fez-se… Andou por oito mil cruzados que eu lhe mandei, doutor!

–E acha muito? Não foi o seu dinheiro que fez o milagre, foi a minha influencia. Não sei se sabe que Francisco Salter de Mendonça mexia na côrte os pausinhos, e esteve por um triz a passar por cima do seu dinheiro e da minha influencia, e vir ao Porto tirar Carlota judicialmente!…

–Eu o arrenego! Se o berzabum morresse por lá, grande cousa era! Estou a arreceiar que elle volte antes d'ella professar.

–Não receie, Norberto. O principe não volta mais a Portugal, e o tal marinha cá estou eu para lhe tolher o desembarque. Cartas d'elle, está tudo prevenido para que não chegue alguma ás mãos de Carlota, e a esta hora está elle convencido de que ella casou.

–Homem, essa!… ó doutor, dou-lhe a minha palavra que estou pasmado da sua agencia! O cunhado é capaz de fazer com que ella esqueça o homem, e torne para a minha companhia! Faça isso, que lhe dou uma mula arreiada de novo para o cunhado dar os seus passeios ao Candal.

–Nada de susto, mano. Vossê não sabe o que são mulheres. A rapariga tem venêtas e caprichos; o acertado é deixal-a barafustar, e ella virá cá ter ao caminho das outras. De paixão ninguem morre; e, no convento, isso então digo-lhe eu que nunca se viu. Mulheres juntas dão tanto aos taramelos em cousas de amor, que lançam o amor pela bôca fóra, em logar dos figados. Deixe-a lá estar á vontade, e dê-lhe a entender que o seu maior gosto n'este mundo é vel-a freira. Nada de contradizel-a. Mulheres e creanças amuadas é deixal-as renhir. Se vossês começam a carpil-a, então não fico pelo resto.

–Então o doutor não vae lá tirar-lhe a tolice do miolo?!

–Não, senhor, não vou, é escusado lá ir, e se for é para lhe dizer que muito me agrada a sua resolução, e, ao mesmo tempo, elogiar com finura a liberdade do mundo, e pintar-lhe com côres tristes o jugo do convento. Assim é que se levam as mulheres, snr. Norberto, e, se ellas teem a soberba de Carlota, então nada de disputar. A astucia manda dizer com ellas, até as fazer passar á contradicção, porque a harmonia é impossivel em indoles orgulhosas.

–Oh doutor! o senhor tem uma labia que revira a gente! Homem, eu estou a dar-lhe razão! Parece-me que o melhor é isso! Está dito! deixemol-a lá com a mania, e diga-se-lhe que faz muito bem. Vou dizer tudo isso á minha Rosalia; mas, antes que me esqueça, cunhado, esta cousa de governo está segura?

–Segurissima.

–É que eu tenho alguns valores, que queria acautelar para o que désse e viesse.

–Não tenha susto; mas tanto faz ter o seu dinheiro na burra, como debaixo da terra. Sabe o que ha de fazer? Pegue no seu dinheiro, e nos meus caixões de prata, e vá enterral-os na adêga do Candal. Eu tenho mais mêdo á canalha nacional que aos soldados de Napoleão. Quando correu na capital que s. exc.ª o snr. governador ia dar a Lisboa a saque, saíram para as praças as turbas da gentalha portugueza, esperando a hora do assalto. D'estes é que eu tenho mêdo, e por isso sou de parecer que se acautele o nosso precioso, com summa prudencia. O Candal é bom sitio, porque fica arredado da estrada. Ponto está que o mano encarregue o serviço de enterrar os caixões a pessoa fiel, que não denuncie o escondedouro.

–Não me fio em ninguem, cunhado. Quem ha de enterrar esse todo-nada de dinheiro que por ahi está, e mais os caixotes de prata, hei de ser eu, se Deus quizer.

Assentiram n'isto, e, logo no dia immediato, Norberto de Meirelles pôz mãos á obra, com o auxilio de sua mulher e cunhado. Fez-se o transporte para o Candal com disfarce. Os caixões sairam de noite, e os conductores, depondo-os no quinteirão da quinta, não poderiam malsinar o local do enterro, se alguma vez, feitos com os salteadores, tentassem esquadrinhal-o.

 

Norberto de Meirelles, auxiliado por D. Rosalia e o proprietario das pratas da patriarchal, enterrou os caixotes debaixo da dorna do lagar, e ficou assim desaffrontado dos sustos que lhe traziam o animo opprimido, desde que Francisco Salter de Mendonça lhe presagiara um possivel assalto ao seu dinheiro.

Sampayo, atarefado com o julgamento dos réos processados no tribunal de que elle era juiz inconfidente, só teve ensejo de visitar Carlota, um mez depois da sua chegada. Encontrou-a na grade com a mãe, que de proposito preparara este encontro, porque sua filha houvera mostrado repugnancia em receber a visita do tio.

O bacharel, conforme com os seus ardis, expostos ao cunhado, começou por louvar e abençoar a acertada resolução de sua sobrinha, exaltando os merecimentos de uma boa religiosa, e aconselhando-a com sãs doutrinas preventivas contra as tentações do demonio, acerrimo inimigo dos votos claustraes.

Carlota ouviu-o com aprazimento, e D. Rosalia com enfado. A boa senhora não comprehendia a esperteza de seu irmão, e confrontando-a com a estupidez de seu marido, dava tanto pela bondade de um como pela do outro. Foi-lhe á mão com as suas razões cem vezes repetidas á filha. Chorou copiosamente, pedindo ao irmão que desvanecesse a tenção de Carlota; e a esta, com ternas supplicas, implorava que saísse do convento, se não queria cêdo ficar sem mãe.

Carlota respondeu que a perda de sua mãe lhe seria muito sensivel; mas que estava deliberada a aceitar todas as mortificações que o Senhor lhe mandasse, com tanto que podesse offerecer o coração espedaçado ajoelhada no altar, onde jurara votos de eterno sacrificio.

Joaquim Antonio de Sampayo, piscando o olho á irmã, louvava de novo a devoção de Carlota, e citava-lhe, como para acorçoal-a, quatro exemplos de santidade no convento de Santa Anna de Lisboa, onde elle almoçava, e contava os milagres da prata da patriarchal, salvo o ultimo.

Carlota, saíndo da grade, foi pedir a Deus perdão do odio que tinha a seu tio. Soror Rufina, confidente d'esta ruim paixão, orou com ella, e penitenciou-a com o preceito duro de escrever a seu tio uma carta, em que lhe agradecesse, com humildade e amor, os paternaes conselhos que lhe dera, e o applauso com que a ajudava a defender-se das instancias de seus paes.

O bacharel, maravilhado d'esta carta, modificou a sua opinião a respeito da sobrinha, e planisou uma nova traça para despersuadil-a. Qual ella fosse, não sabemos nós, porque não houve tempo para executal-a.

Sampayo exerceu as funcções do juizado quatro mezes, e foi despachado juiz de fóra para uma pingue comarca do Minho. A causa d'esta mudança, ingrata ao despachado, explicou-a elle como grandemente honrosa para si, dizendo que a moderação das suas sentenças desagradara ao governo. O governo, porém, dizia que o venal juiz riscava das denuncias os nomes que representavam réos dinheirosos, de quem recebia, com maior ou menor recato, avultosas quantias.

Partiu para a sua comarca o juiz de fóra, recommendando ao cunhado que vigiasse os caixotes da prata, cujo descaminho viria a ser causa da sua deshonra. Por essa occasião, entregou-lhe um caixãosinho supplementar aos outros, que constava de uma duzia ou pouco mais de contos de réis, de seus ordenados e propinas, e mercês dos beneficios que fizera caridosamente aos réos absolvidos no terrivel tribunal.

Dispensam-nos de boa vontade a historia sabida dos decorridos successos que expulsaram os francezes do territorio portuguez. É certo que o juiz de fóra de ***, Joaquim Antonio de Sampayo, ingrata creatura de Junot, pôz luminarias quando soube que o exercito francez recuava ao exercito alliado. Proclamou aos povos comarcãos, chamando ás armas, e incitando os frades a que prégassem o odio contra Napoleão, e promettessem indulgencia plenaria, e salvação segura a todos os que morressem na defeza do seu legitimo principe, e dos augustos fóros da religião catholica-apostolica-romana.

O bispo do Porto, presidente da junta, e renegado como elle, sympathisou com as manhas do juiz de fóra, e nomeou-o, provisoriamente, corregedor da comarca onde estava servindo.

Entra, porém, o general Soult as mal defezas raias do reino, e chega a Braga a artilheria de Laborde. Sampayo medita seriamente na sua situação, e, apasiguando os animos das turbas com discursos ácerca da inutilidade da resistencia, resolve ir ao encontro do general Lorge, que marchava contra a villa onde elle exercia a suprema auctoridade.

Diz-lhe que intimas relações o prenderam a Junot e Lagarde, exulta com a volta dos francezes, e faz accender o resto das torcidas das luminarias á entrada do general francez. As guerrilhas, porém, queriam resistir, e os chefes emprasavam o corregedor para lhes dar conta da sua apostasia, mais tarde. Sampayo, arreceiando-se d'aquelles caudilhos, denunciou os principaes ao seu hospede Lorge, e fez que dois fossem espingardeados diante da sua aposentadoria, simulando, ao mesmo tempo, amargo pezar de acontecimento tão funesto.

Retirou o general para occupar outro ponto; mas a pedido do corregedor, deixou uma numerosa guarnição á terra.

O general Botelho estanciava nas immediações da villa, e investiu com o presidio, que fugira rechaçado e mal ferido do encontro. Sampayo queria fugir com elle, sobre o Porto, para onde convergiam os differentes chefes do exercito invasor. Demorou-se, porém, um quarto de hora, carregando os bahús da sua bagagem, onde avultavam preciosidades que soubera esbulhar á comarca sob os mil pretextos faceis ao seu engenho.

Esta demora foi-lhe fatal. Era tarde para fugir. Reflectiu um instante, em lance tão apertado, e saíu a lume com uma ideia, da qual esperava a sua salvação.

Mandou tocar immediatamente os sinos das igrejas, foi elle proprio, bradando vivas ao principe, espertar o animo perplexo dos moradores da terra, e recrutar garotos para repicarem os sinos.

Este expediente era já um destino da desesperação, uma loucura, que devia ter o resultado que teve. Joaquim Antonio de Sampayo viu-se rodeado de povo, e este povo pedia a cabeça do corregedor, sobrelevando á vozeria os gritos da parentela dos caudilhos que tinham sido espingardeados á ordem do general Lorge.

O chefe das forças portuguezas occorreu n'este momento afflictivo. O corregedor ajoelhou de mãos erguidas, pedindo-lhe a salvação.

Um do povo, que parecia ser o mais auctorisado, contrariou as supplicas do corregedor, contando ao general as façanhas. Botelho ouviu com attenção, e exclamou com serenidade:

–Enforquem-o já, que é o mais seguro.

Mais de um leitor maior de sessenta annos está recordando, n'este momento, a cabeça de comarca, na provincia do Minho, onde foi enforcado um corregedor.

Se se lembra, saiba que o fatal triangulo foi erguido para Joaquim Antonio de Sampayo. Ahi perneou esse homem de grandes espiritos, que veio cedo de mais para morrer ministro de Estado.

Rezemos-lhe por alma, mas duvide-se do aproveitamento dos suffragios. É de fé que o thaumaturgo das pratas da patriarchal caiu da forca ao inferno, onde o tortura a desesperação de ver como cá em cima andam nedios e honrados alguns que o sobrepujaram em amor da patria, amor do proximo, e abnegação do alheio.

Joaquim Antonio de Sampayo nascera em 5 de janeiro de 1752. Trapaceara o direito e a justiça por espaço de trinta annos, nos auditorios do Porto. Entrara com fortuna próspera na carreira das honras aos cincoenta e seis annos.

Revelara, ainda que tardio, um espirito sobre-excellente para engrandecer-se, e reflectir na sua familia as honras merecidas á custa de infamias necessarias para se ser alguma cousa n'uma terra, onde Duarte Pacheco e Camões tiveram fome. Mal tinha dado os primeiros passos propicios, atalhou-o uma morte feia aos 23 de março de 1809.

Piamente cremos que os santos da patriarchal de Lisboa, esbulhados de seus adornos, lhe urdiram este affrontoso traspasse.

Como quer que seja, homens taes, diz uma epigraphe d'este capitulo, que os leva o diabo. Levará, não duvido; mas, se lanço os olhos em redor de mim, afigura-se-me que o diabo leva uns, e traz outros.

XIII

La justicia de Dios espantosa…

Quevedo. (El sueño del Inferno.)

O noviciado de Carlota Angela terminara em abril de 1808. As licenças impetradas para a profissão não foram concedidas, porque a desorganisação em que se achavam as repartições governativas era impedimento a que se deferissem requerimentos que não importavam ao bem immediato do Estado.

Norberto de Meirelles folgava com a demora da licença, e o cunhado lá da comarca onde lhe cortaram a previdente cabeça, socegara-o com a certeza de que em Lisboa estavam prevenidas as cousas para que a noviça requeresse sempre em vão a licença indispensavel.

Carlota não se impacientava com as delongas, nem se queixava de seu pae ou tio: com tanto que a não arrancassem ao claustro, noviça ou professa, o seu coração estava com o mesmo apêgo entranhado no suave sacrificio á religião dos infelizes.

Quando a noticia da feia morte de seu tio lhe chegou, levada pela aterrada mãe, Carlota perdoou-lhe, nos labios e no coração, o mal que lhe fizera, compensando-lh'o com incessantes suffragios, da virtude dos quaes, em alma tão apodrentada de velhacadas e perfidias, é licito duvidar.

Norberto de Meirelles, n'este desgosto de familia, mostrou o grande porte de seu animo, insufflando em sua mulher espirituaes doutrinas de paciencia e conforto na vontade do Altissimo. Á socapa, porém, o arrozeiro esfregava as mãos com jubiloso frenesi, bem sabia elle pelo quê. Se D. Rosalia lhe perguntava que destino se devia dar aos dois caixotes de prata, que não eram de seu irmão, Norberto dizia-lhe que calasse o bico, e não désse á lingua ácerca de taes caixotes, que ninguem sabia de quem eram. Os escrupulos entravam na consciencia de D. Rosalia; o alheio dizia ella que chorava pelo seu dono. A este e outros anexins de sã moral replicava Norberto que se alguma vez apparecesse o dono dos caixões, munido das necessarias provas de ser o dono d'elles, seria entregue do deposito.

Entretanto que o dono não vinha, o herdeiro do bacharel fechou-se na adêga da granja do Candal, e exhumou os thesouros enterrados para conhecer do conteúdo dos caixões. Este exame dizia elle á timida consorte que era preciso para, munido de um rol, peça por peça, obrigar o dono a dar uma relação exacta dos objectos.

Tentação diabolica fora aquella! Norberto, vendo a rica baixella do culto divino contida no primeiro caixão que abriu, tão encantado ficou do bem lavrado das corôas, dos resplendores, dos calices, das ambulas, dos thuribulos, das lampadas, das bandejas, e dos ex-votos, tão encantado, tão edificado, tão preso áquelles mysticos ornatos do templo do Deus-vivo, que logo alli prometteu á sua consciencia guardar e venerar aquelles sagrados objectos, de modo que mãos impias de francezes, de portuguezes afrancezados, e ainda as do dono nunca os profanassem. Este protesto entendia-se com o primeiro caixão: o segundo antes de ser aberto, havia o negociante tenção de restituil-o, se o recheio não fosse tão veneravel e digno da sua devota guarda.

Ora o segundo caixão não era menos tentador: nem mais nem menos os doze apostolos de prata maciça, com as suas barbas venerabundas a incutirem seraphico temor e amor! Norberto alçou nos braços um dos apostolos, não tanto para fazer-lhe oração mental, como para calcular-lhe o peso, e, aproximadamente, ajuizou doze arrateis, os quaes, multiplicados por doze, davam cento e quarenta e quatro arrateis de prata. Entendeu piedosamente o arrozeiro que o segundo caixão era thesouro não menos credor dos seus desvelos que o primeiro, em razão de conter as imagens dos doze primeiros santos da religião christã, e n'este presupposto de bom juizo resolveu recommendar á sua vigilancia a guarda de tão augustas imagens, que talvez providencialmente vieram enterrar-se na sua adêga, para se esconderem á perseguição de Bonaparte, bem como os christãos primitivos se escondiam nas catacumbas para fugirem á perseguição dos Neros e Trajanos.

A escrupulosa irmã do defuncto bacharel não assistira á exhumação dos caixões; mas, sabendo dos doze apóstolos, tal ancia lhe entrou de os ver, que não houve remedio senão desenterral-os de novo.

D. Rosalia ficou encantada dos aspectos magestosos de S. Pedro e S. Thiago. Quiz que seu marido rezasse emparceirado com ella uma jaculatoria aos dois santos em particular, e a todos em geral. Norberto annuiu com a mais fervente uncção, e edificou sua mulher, propondo a repetição das ditas jaculatorias, para que os bemaventurados discipulos do divino mestre não permittissem que mãos sacrilegas dos francezes tocassem nas suas devotas imagens. Lembrou logo alli a snr.ª D. Rosalia que, passada a guerra, se não apparecesse o dono d'aquelles objectos, se havia de fazer uma capella na quinta do Candal, para que os santinhos fossem adorados por toda a gente. Concordou o arrozeiro, enterrando-os outra vez, e recommendando a sua mulher, que não dissesse a ninguem que a sua adêga estava tendo as honras de cenaculo.

 

Estas scenas passavam-se oito dias antes da invasão dos francezes no Porto.

Á noticia da aproximação de Soult nas trincheiras, Norberto de Meirelles fechou a casa da rua das Taipas, e foi para o Candal.

D. Carlota Angela, com sua tia e a noviça Dorothea saíram do convento para o mosteiro de Arouca. D. Rosalia instara para que a seguissem; mas Carlota vencera a vontade condescendente de sua tia, com lagrimas e rogos para que não aceitasse asylo que não fosse o de outro mosteiro menos susceptivel de ser assaltado pelos francezes.

O exercito invasor derramou-se pelo Porto, no cevo do saque e da carnagem. As portas da casa da rua das Taipas, malsinada aos francezes como bem recheiada, não resistiram ao machado. Pouco lá havia que saciasse a cubiça dos salteadores. O denunciante esteve em perigo de ser acutilado, por lhes ter feito perder tempo em arrombar as portas para saque tão mesquinho. Ora, o denunciante era um visinho de Norberto, seu inimigo, e capaz de dar um olho para que arrancassem os dois ao arrozeiro. Disse elle aos francezes que o seguissem além do rio, e elle lhes promettia boa presa, porque as immensas riquezas do negociante deviam estar na quinta.

Seguiram-o os francezes, promettendo-lhe repartir com elle da presa, ou tirar-lhe a alma e os figados, se os enganasse, ou levasse a alguma emboscada.

Ao avisinharem-se do Candal, deram rebate as espias de Norberto de Meirelles. Calou-lhe na alma o mêdo, que amarellece a cara de gemma de ovo, tapa os respiros do pulmão e promove a desordem dos intestinos todos. D. Rosalia caíu de cocoras, e entrou a bater os queixos como em maleitas, e a resmungar fragmentos da Salvè-rainha e do Padre-nosso. Dois criados da quinta, que, momentos antes, tinham estado renovando a escorva das clavinas, e apostando a qual d'elles mataria mais francezes, apenas avistaram os penachos de dez ou doze d'aquelles, que, segundo os seus projectos homicidas, deviam ser levados a murro, deram a fugir por aquelles pinhaes, como envergonhados de se baterem com tão poucos francezes. Chamava-os com desesperados berros Norberto, emquanto elles podiam ouvil-o; mas não houve gritos nem promessas que os volvessem ao posto da honra.

O negociante travou do braço da mulher, para que o seguisse, fiando a salvação na fuga. D. Rosalia ainda se ergueu; mas vacillaram-lhe as pernas frouxas, e recaíu, dizendo que morria, e queria alli morrer. O arrozeiro cuidou que a movia, assustando-a com a ideia de que os francezes a matariam, se ella não confessasse o escondrijo do dinheiro. A pobre mulher, petrificada de terror, não respondia a taes estimulos, e recalcitrava na pertinacia de se deixar matar.

Emquanto ella murmurava um acto de contrição, preparando-se para morrer o mais catholicamente que podesse, Norberto de Meirelles seguiu a pista dos criados, pela porta travessa da quinta, com o intuito de alarmar a freguezia, tocando a rebate a sineta da proxima capella.

Os francezes arrombaram a primeira porta, e outras menos robustas, até entrarem no quarto onde estava D. Rosalia de mãos erguidas, pedindo misericordia. Um da malta, com o rosto coberto por um lenço, disse-lhe em claro e chão portuguez que lhe não fariam mal a ella nem ao marido, se lhe dissesse onde estava escondido o dinheiro. D. Rosalia respondeu que não sabia. A um signal convencionado do interprete, dois refles ameaçadores ladearam o pescoço da moribunda senhora. O homem da cara coberta admoestou-a de novo, pedindo aos francezes que suspendessem a morte por alguns momentos. Rosalia, revalidando tres vezes a condição de que não matariam seu homem, disse que o dinheiro estava enterrado na adêga; mas que tambem lá estavam dois caixões de prata, e esses pedia que não levassem, porque não eram d'ella. Feito o juramento de respeitarem, não os caixões, mas a vida dos depositarios, levaram em braços D. Rosalia á adêga, para a fazerem apontar o local onde convinha cavar.

Meia hora depois, corriam contra a quinta de Norberto de Meirelles, mais de duzentos homens da freguezia, reunidos pelo toque guerreiro da sineta, afóra os fugitivos do Porto, que tinham atravessado a ponte, horas antes de lhe serem abertos os alçapões. Quando entraram na casa, com grandes alaridos e descargas, encontraram D. Rosalia á porta da adêga, prostrada n'um desmaio. Norberto adivinhou o successo horroroso. Entrou, foi direito ao tonel protector do escondrijo, achou a terra revolvida, levou as mãos á cabeça, soltou um grito cavernoso, e foi bater com as costas nos tampos sonoros do tonel. «Roubado! roubado!» exclamava elle, emquanto a multidão compadecida se derramava pelos aditos da quinta, procurando os francezes, e outros tratavam de restituir á vida a mulher do negociante, que parecia morta.

Ao mesmo tempo, embarcavam os francezes, com a opima presa, defronte de Miragaya. No meio do rio, combinaram entre si desfazer-se do denunciante, que os importunava lembrando-lhes a promessa de um quinhão do roubo. A execução foi rapida como o plano. O portuguez foi arrojado ao rio com algumas pancadas na cabeça; mergulhou, veio á tona da agua, fincando-se na quilha do barco, á maneira de rémora, pendurou-se n'um dos bordos, os francezes convergiram para o ponto, os caixões escorregaram para esse lado, o barco inclinou-se tanto, e o barqueiro com tal arte ajudou á catastrophe, que se virou o barco: francezes e caixões tudo se sumiu nos abysmos, salvando-se, apenas, o barqueiro, por ser grande nadador, e merecer salvar-se como instrumento que foi da justiça providencial.

Não sabemos ao certo quantos contos de réis o Douro sepultou nos seus reconcavos. Mais de cem, afóra o dinheiro e caixões do bacharel Sampayo, se calcula a perda. Os haveres de Norberto de Meirelles estavam todos alli. Restava-lhe, apenas, a granja do Candal e a casa da rua das Taipas; mas, o arrozeiro, no mez immediato, tinha que pagar letras, que os portadores, fiados na segurança do aceitante, não haviam apresentado no dia do seu vencimento, rogando-lhe, por favor, o conservar em seu poder os pagamentos até se restabelecer a ordem no giro commercial.

Era, pois, desgraçadissima a posição do pae de Carlota Angela. Via-se pobre, e sentia-se desfallecido e velho para reconquistar o producto do trabalho e da astucia, nem sempre legitima, de quarenta annos. Ainda mesmo que amigos e credores o ajudassem, como de feito ajudariam, esse balsamo não fecharia a chaga. A pena do seu dinheiro era uma angustia infernal, que as palavras animadoras da christã e resignada esposa não alliviavam.

–Deus o deu, Deus o tirou, Norberto,—dizia ella, convidando-o pela religião á paciencia.

–Vae-te d'aqui com as tuas beatices!—respondia elle—Estamos pobres por tua causa. Se fosses uma mulher amiga de teu marido e de tua filha, não dizias onde estava o meu dinheiro, o meu dinheiro, o dinheiro da minha alma!

E, exclamando assim com vozes que derretiam o coração, chorava como uma creança o pobre homem, arrepellando as suissas e os cabellos.

Atalhava Rosalia:

–Não te mortifiques, Norbertinho. Eu se disse onde estava o dinheiro foi para te salvar a ti, porque o tal homem da cara coberta disse-me que tu estavas preso, e te matariam se eu não dissesse onde estava o dinheiro.

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