Romancistas Essenciais - Eça de Queirós

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Aus der Reihe: Romancistas Essenciais #2
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E, rebuçando-se todo num mistério de Estado, acrescentou:

— Coisas de alta política, meu caro senhor.

Natário ergueu-se:

— De modo que...

— Impossibilis est, disse o secretário. De resto acredite, senhor cura, que, como particular, revolto-me contra o Comunicado; mas como autoridade devo respeitar a expressão do pensamento... Mas creia, e pode dizê-lo a todo o clero diocesano, a Igreja católica não tem um filho mais fervente que eu, Gouveia Ledesma... Quero porém uma religião liberal, de harmonia com o progresso, com a ciência... Foram sempre as minhas idéias; preguei-as bem alto, na imprensa, na universidade e no grêmio... Assim, por exemplo, não acho que haja poesia maior que a poesia do cristianismo! E admiro Pio IX, uma grande figura! Somente lamento que ele não arvore a bandeira da civilização! - E o antigo Bibi, contente da sua frase, repetia-a: - Sim, lamento que ele não arvore a bandeira da civilização... O Syllabus é impossível neste século de eletricidade, senhor cura! E a verdade é que nós não podemos querelar dum jornal, porque ele diz duas ou três pilhérias sobre o sacerdócio, nem nos convém, por altas razões de política, escandalizar o doutor Godinho. Aqui tem o meu pensamento.

— Senhor secretário-geral, disse Natário curvando-se.

— Um criado de V. S.a. Sinto que não tome uma chávena de chá. E como vai o nosso chantre?

— S. Ex. a nestes últimos dias, segundo creio, tem tornado a sofrer de tonturas.

— Sinto. Uma negligência também! Grande latinista... Tenha cuidado com o degrau!...

Natário correu à Sé, com um passo nervoso, resmungando alto de cólera. Amaro passeava devagar no terraço, com as mãos atrás das costas: tinha as olheiras batidas e a face envelhecida.

— Então? disse ele, indo rapidamente ao encontro de Natário.

— Nada!

Amaro mordeu o beiço: e enquanto Natário lhe contava, excitado, a conversação com o secretário-geral, "e como argumentara com ele, e como o homem tagarelara, tagarelara", - a face do pároco cobria-se duma sombra desconsolada, e ia arrancando raivosamente, com a ponta do guarda-sol, a erva que crescia nas fendas do terraço.

— Um patarata! resumiu o padre Natário com um grande gesto. Pela autoridade não se faz nada. É escusado... Mas a questão agora é entre mim e o liberal, padre Amaro! Eu hei-de saber quem é, padre Amaro! E quem o esmaga sou eu, padre Amaro, sou eu!...

No entanto, João Eduardo desde o domingo triunfava; o artigo fizera escândalo: tinham-se vendido oitenta números avulsos do jornal, e o Agostinho afirmara-lhe que na botica da Praça a opinião era "que o liberal conhecia a padraria a fundo e tinha cabeça" ! _

— És um gênio, rapaz, disse o Agostinho. É trazer-me outro, é trazer-me outro!

João Eduardo gozava prodigiosamente "daquele falatório que ia pela cidade".

Relia então o artigo com uma deleitação paternal; se não receasse escandalizar a S. Joaneira, desejaria ir pelas lojas dizer bem alto: fui eu, eu é que o escrevi! - e já ruminava outro, mais terrível, que se deveria intitular: O diabo feito eremita, ou O sacerdócio de Leiria perante o século XIX!

O doutor Godinho encontrara-o na Praça, e parara com condescendência, para lhe dizer:

— A coisa tem feito barulho. Você é o diabo! E a piada ao Brito é bem jogada. Que eu não sabia... E diz que é bonita, a mulher do regedor...

— V. Ex.a não sabia?

— Não sabia, e saboreei. Você é o diabo! Eu fui que disse ao Agostinho que publicasse a coisa como um comunicado. Você compreende... Eu não me convém ter turras de mais com o clero... E depois lá minha esposa tem seus escrúpulos... Enfim, é melhor e é conveniente que as mulheres tenham religião... Mas no meu foro interior saboreei... Sobretudo a piada ao Brito. O patife fez-me uma guerra dos diabos na eleição passada... Ah! e outra coisa, o seu negócio arranja-se. Lá para o mês que vem tem o seu emprego no governo civil.

— Oh, senhor doutor, V. Ex.a....

— Qual história, você é um benemérito!

João Eduardo foi para o cartório, trêmulo de alegria. O Sr. Nunes Ferral saíra: o escrevente aparou devagar uma pena, começou a cópia duma procuração, - e de repente, agarrando o chapéu, correu à Rua da Misericórdia.

A S. Joaneira costurava só á janela: Amélia fora ao Morenal: e João Eduardo, logo da porta:

— Sabe, D. Augusta? Estive agora com o doutor Godinho. Diz que lá para o mês que vem tenho o meu emprego...

A S. Joaneira tirou a luneta, deixou cair as mãos no regaço:

— Que me diz?...

— É verdade, é verdade...

E o escrevente esfregava as palmas, com risinhos nervosos de júbilo.

— Que pechincha! exclamou. De modo que agora, se a Ameliazinha estiver de acordo...

— Ai! João Eduardo! fez a S. Joaneira com um grande suspiro, que me tira um peso do coração... Que tenho estado... Olhe, nem tenho dormido!...

João Eduardo pressentiu que ela ia falar do Comunicado. Foi pôr o chapéu numa cadeira ao canto; e voltando à janela, com as mãos nos bolsos:

— Então por quê, por quê?

— Aquela pouca-vergonha no Distrito! Que diz você? Aquela calúnia! Ai! tenho-me feito velha!

João Eduardo escrevera o artigo sob as solicitações do ciúme, só para "enterrar" o padre Amaro; não previra o desgosto das duas senhoras; e vendo agora a S. Joaneira com duas lágrimas no branco dos olhos, sentia-se quase arrependido. Disse ambiguamente:

— Eu li, é o diabo...

Mas aproveitando o sentimento da S. Joaneira para servir a sua paixão, acrescentou sentando-se, chegando a cadeira para ao pé dela:

— Eu nunca lhe quis falar disso, D. Augusta, mas... olhe que a Ameliazinha tratava o pároco com muita familiaridade... E pelas Gansosos, pelo Libaninho, mesmo sem quererem, a coisa ia-se sabendo, ia-se rosnando... Eu bem sei que ela, coitada, não via o mal, mas... a D. Augusta sabe o que é Leiria. Que línguas, hem!

A S. Joaneira então declarou que lhe ia falar como a um filho: o artigo afligira-a, sobretudo por causa dele, João Eduardo. Porque enfim ele podia acreditar também, desfazer o casamento, e que desgosto! E ela podia dizer-lhe como mulher de bem, como mãe, que não havia entre a pequena e o senhor pároco, nada, nada, nada! Era a rapariga que tinha aquele gênio comunicativo! E o pároco tinha boas palavras, sempre muito delicado... Que ela sempre o dissera, o Sr. padre Amaro tinha maneiras que tocavam o coração...

— Decerto, disse João Eduardo mordendo o bigode, com a cabeça baixa.

A S. Joaneira então pôs a mão de leve sobre o joelho do escrevente, e fitando-o:

— E olhe, não sei se me fica mal dizer-lho, mas a rapariga quer-lhe deveras, João Eduardo.

O coração do escrevente teve uma palpitação comovida.

— E eu! disse. A D. Augusta sabe a paixão que eu tenho por ela... E lá do artigo que me importa a mim?

Então a S. Joaneira limpou os olhos ao avental branco. Ai! era uma alegria para ela! Ela sempre o dissera, como rapaz de bem, não havia outro na cidade de Leiria! .

— Você sabe, quero-lhe como filho!

O escrevente enterneceu-se:

— Pois vamos a isso, e tapam-se as bocas do mundo... E erguendo- se, com uma solenidade engraçada:

— Sra. D. Augusta! Tenho a honra de lhe pedir a mão...

Ela riu-se, - e na sua alegria João Eduardo beijou-a na testa, filialmente.

— E fale à noite à Ameliazinha, disse ao sair. Eu venho amanhã, e felicidade não há-de faltar...

— Louvado seja Nosso Senhor, acrescentou a S. Joaneira retomando a sua costura, com um suspiro de muito alivio.

Apenas, nessa tarde, Amélia voltou do Morenal, a S. Joaneira, que estava pondo a mesa, disse-lhe:

— Esteve ai o João Eduardo...

— Ah!...

— Ai esteve a falar, coitado...

Amélia, calada, dobrava a sua manta de lã.

— Aí esteve a queixar-se, continuou a mãe.

— Mas de quê? perguntou ela muito vermelha.

— Ora de quê! Que se falava muito na cidade do artigo do Distrito; que se perguntava a quem aludia o periódico com as donzelas inexperientes, e que a resposta era: "Quem há-de ser? a Amélia da S. Joaneira, da Rua da Misericórdia!" O pobre João diz que tem andado tão desgostoso!... Não se atrevia, por delicadeza, a falar-te... Enfim...

— Mas que hei-de eu fazer, minha mãe? exclamou Amélia com os olhos subitamente cheios de lágrimas, àquelas palavras que caíam sobre os seus tormentos como gotas de vinagre sobre feridas.

— Eu digo-te isto para seu governo. Faz o que quiseres, filha. Eu bem sei que são calúnias! Mas tu sabes o que são línguas do mundo... O que te posso dizer é que o rapaz não acreditou no periódico. Que era isso que me dava cuidado!... Credo! tirou-me o sono... Mas não, diz que não lhe importa o artigo, que te quer da mesma maneira, e está a arder por que se faça o casamento... E eu por mim o que fazia, para calar toda essa gente, era casar-me já. Eu bem sei que tu não morres por ele, bem sei. Deixa lá! Isso vem depois. O João é bom rapaz, vai ter o emprego...

— Vai ter o emprego!?

— Pois foi o que ele me veio dizer também... Esteve com o doutor Godinho, diz que lá para o fim do mês está empregado... Enfim tu fazes o que entenderes... Que olha que eu estou velha, filha, posso faltar-te dum momento para o outro!...

Amélia não respondeu, olhando de frente no telhado voarem os pardais - menos desassossegados, naquele instante, que os seus pensamentos.

Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a donzela inexperiente a que aludia o Comunicado era ela, Amélia, e torturava-a o vexame de ver assim o seu amor publicado no jornal. Depois (como ela pensava, mordendo o beiço numa raiva muda, com os olhos afogados de lágrimas), aquilo vinha estragar tudo! Na Praça, na Arcada já se diria com risinhos perversos: - "Então a Ameliazita da S. Joaneira metida com o pároco, hem?" Decerto o senhor chantre, tão severo em "coisas de mulheres", repreenderia o padre Amaro... E por alguns olhares, alguns apertos de mão, aí estava a sua reputação estragada, estragado o seu amor!

 

Na segunda-feira, ao ir ao Morenal, parecera-lhe sentir pelas costas risinhos a escarnecê-la; no aceno que lhe fez da porta da botica o respeitável Carlos julgou ver uma secura repreensível; à volta encontrara o Marques da loja de ferragens, que não lhe tirou o chapéu, e ao entrar em casa julgava-se desacreditada - esquecendo que o bom Marques era tão curto de vista que usava na loja duas lunetas sobrepostas.

— Que hei-de eu fazer? que hei-de eu fazer? murmurava, às vezes, com as mãos apertadas na cabeça. O seu cérebro de devota apenas lhe fornecia soluções devotas - entrar num recolhimento, fazer uma promessa a Nossa Senhora das Dores "para que a livrasse daquele apuro", ir confessar-se ao padre Silvério... E terminava por se vir sentar resignadamente ao pé da mãe com a sua costura, considerando, muito enternecida, que desde pequena fora sempre bem infeliz!

A mãe não lhe falara claramente sobre o Comunicado: tivera apenas palavras ambíguas:

— É uma pouca-vergonha... É deitar ao desprezo... Quando a gente tem a sua consciência sossegada, o mais histórias...

Mas Amélia via-lhe bem o desgosto - na face envelhecida, nos tristes silêncios, nos suspiros repentinos quando fazia meia à janela com a luneta na ponta do nariz: e então mais se convencia que havia "grande falatório na cidade", de que a mãe, coitada, estava informada pelas Gansosos e pela D. Josefa Dias - cuja boca produzia o mexerico mais naturalmente que a saliva. Que vergonha, Jesus!

E então o seu amor pelo pároco, que até ai, naquela reunião de saias e batinas da Rua da Misericórdia se lhe afigurara natural, agora, julgando-o reprovado pelas pessoas que desde pequena fora acostumada a respeitar - os Guedes, os Marques, os Vaz, - aparecia-lhe já monstruoso: assim as cores dum retrato pintado à luz de azeite, e que à luz de azeite parecem justas, tomam tons falsos e disformes quando lhes cai em cima a luz do sol. E quase estimava que o padre Amaro não tivesse voltado à Rua da Misericórdia.

No entanto, com que ansiedade esperava todas as noites o seu toque de campainha! Mas ele não vinha; e aquela ausência, que a sua razão julgava prudente, dava ao seu coração o desespero de uma traição. Na quarta- feira á noite não se conteve, disse, corando sobre a sua costura: - Que será feito do senhor pároco?

O cônego, que na sua poltrona parecia dormitar, tossiu grosso, mexeu-se, rosnou:

— Mas que fazer... E escusam de esperar por ele tão cedo!...

E Amélia, que ficara branca como a cal, teve imediatamente a certeza que o pároco, aterrado com o escândalo do jornal, aconselhado pelos padres timoratos, zelosos "do bom nome do clero" tratava de se descartar dela! Mas, cautelosa, diante das amigas da mãe, escondeu o seu desespero: foi mesmo sentar-se ao piano, e tocou mazurcas tão estrondosas - que o cônego, tomando a mexer-se na poltrona, grunhiu:

— Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga!

Passou uma noite agoniada, e sem chorar. A sua paixão pelo pároco flamejava mais irritada; e todavia detestava-o pela sua cobardia. Mal uma alusão num jornal o picara, ficara a tremer na sua batina, apavorado, não se atrevendo sequer a visitá-la - sem se lembrar que também ela se via diminuída na sua reputação, sem ser satisfeita no seu amor! E fora ele que a tentara com as suas palavrinhas doces, as suas denguices! Infame!... Desejava violentamente apertá-lo ao coração - e esbofeteá-lo. Teve a idéia insensata de ir ao outro dia à Rua das Sousas atirar-se-lhe aos braços, instalar-se-lhe no quarto, fazer um escândalo que o obrigasse a fugir da diocese... Por que não? Eram novos, eram robustos, poderiam viver longe, noutra cidade, - e a sua imaginação começou a repastar-se logo histericamente nas perspectivas deliciosas dessa existência, em que se figurava constantemente a dar-lhe beijos! Através da sua intensa excitação, aquele plano parecia-lhe muito prático, muito fácil: fugiriam para o Algarve; lá, ele deixaria crescer o cabelo (que mais bonito seria então!) e ninguém saberia que era um padre; poderia ensinar latim, ela coseria para fora; e viveriam numa casinha - onde o que mais a atraia era o leito com as duas travesseirinhas chegadas... E a única dificuldade que via em todo este plano radiante, era fazer sair de casa, ás escondidas da mãe, o baú com a sua roupa! - Mas quando acordou, essas resoluções mórbidas, à luz clara do dia, desfizeram-se como sombras: tudo aquilo que parecia agora tão impraticável, e ele tão separado dela, como se entre a Rua da Misericórdia e a Rua das Sousas se erguessem inacessivelmente todas as montanhas da Terra. Ai, o senhor pároco abandonara-a, era certo! Não queria perder os lucros da sua paróquia nem a estima dos seus superiores!... Pobre dela! Considerou-se então para sempre infeliz e desinteressada da vida. Guardou, todavia, muito intenso, o desejo de se vingar do padre Amaro.

Foi então que refletiu, pela primeira vez, que João Eduardo desde a publicação do Comunicado não aparecera na Rua da Misericórdia. Também me volta as costas - pensou com amargura. Mas que lhe importava? No meio da aflição que lhe dava o abandono do padre Amaro, a perda do amor do escrevente, piegas e pesado, que lhe não trazia utilidade nem prazer, era uma contrariedade imperceptível: uma infelicidade viera que lhe arrebatava bruscamente todas as afeições - a que lhe enchia a alma, e a que apenas lhe acariciava a vaidadezinha; e irritava-a, sim, não sentir já o amor do escrevente colado a suas saias, com a docilidade dum cão - mas todas as suas lágrimas eram para o senhor pároco "que já não queria saber dela"! Só lamentava a deserção de João Eduardo, porque perdia assim um meio sempre pronto de fazer enraivecer o padre Amaro...

Por isso nessa tarde à janela, calada, olhando no telhado defronte voarem os pardais - depois de saber que João Eduardo certo do emprego, viera falar enfim a mãe - pensava com satisfação no desespero do pároco ao ver publicados na Sé os banhos do seu casamento. Depois as palavras muito práticas da S. Joaneira trabalhavam-lhe silenciosamente na alma: o emprego do governo civil rendia 25$000 réis mensais; casando, reentrava logo na sua respeitabilidade de senhora; e se a mãe morresse, com o ordenado do homem e com o rendimento do Morenal, podia viver com decência, ir mesmo no Verão aos banhos... E via-se já na Vieira, muito cumprimentada pelos cavalheiros, conhecendo talvez a do governador civil.

— Que lhe parece, minha mãe? - perguntou bruscamente. Estava decidida pelas vantagens que entrevia; mas, com a sua natureza lassa, desejava ser persuadida e forçada.

— Eu ia pelo seguro, filha - foi a resposta da S. Joaneira.

— É sempre o melhor - murmurou Amélia entrando no quarto. E sentou-se muito triste aos pés da cama porque a melancolia que lhe dava o crepúsculo tornava-lhe agora mais pungente a saudade "dos seus bons tempos com o senhor pároco".

Nessa noite choveu muito, as duas senhoras passaram sós. A S. Joaneira, repousada agora das suas inquietações, estava muito sonolenta, a cada momento cabeceava com a meia caída no regaço. Amélia então pousava a costura, e com o cotovelo sobre a mesa, fazendo girar o abajur verde do candeeiro, pensava no seu casamento: o João Eduardo era bom rapaz, coitado; realizava o tipo de marido tão estimado na pequena burguesia - não era feio e tinha um emprego; decerto o oferecimento da sua mão, apesar das infâmias do jornal, não lhe parecia, como a mãe dissera, "um rasgo de mão-cheia"; mas a sua dedicação lisonjeava-a, depois do abandono tão cobarde de Amaro: e havia dois anos que o pobre João gostava dela... Começou então laboriosamente a lembrar tudo o que nele lhe agradava - o seu ar sério, os seus dentes muito brancos, a sua roupa asseada.

Fora ventava forte, e a chuva, fustigando friamente as vidraças, dava-lhe apetites de confortos, um bom lume, o marido ao lado, o pequerrucho a dormir no berço - porque seria um rapaz, chamar-se-ia Carlos e teria os olhos negros do padre Amaro. O padre Amaro... Depois de casada, decerto, tornaria a encontrar o Sr. padre Amaro... E então uma idéia atravessou todo o seu ser, fê-la erguer bruscamente, ir por instinto procurar a escuridão da janela para ocultar a vermelhidão do rosto. Oh! isso não, isso não! Era horrível!... Mas a idéia implacavelmente apoderara-se dela como um braço muito forte que a sufocava e lhe dava uma agonia deliciosa. E então o antigo amor, que o despeito e a necessidade tinham recalcado no fundo da sua alma, rompeu, inundou-a: murmurou repetidamente, com paixão, torcendo as mãos, o nome de Amaro: desejou avidamente os seus beijos - oh! adorava-o! E tudo tinha acabado, tudo tinha acabado! E devia casar, pobre dela!... Então à janela, com a face contra a escuridão da noite, choramingou baixinho.

Ao chá a S. Joaneira disse-lhe, de repente:

— Pois a coisa, a fazer-se, filha, deve ser já... Era começar o enxoval, e se fosse possível casar-te para o fim do mês.

Ela não respondeu - mas a sua imaginação alvoroçou-se àquelas palavras. Casada daí a um mês, ela! Apesar de João Eduardo lhe ser indiferente, a idéia daquele rapaz, novo e apaixonado, que ia viver com ela, dormir com ela, deu uma perturbação a todo o seu ser.

E quando a mãe ia descer ao quarto, disse-lhe:

— Que lhe parece, minha mãe? Eu está-me a custar entrar em explicações com o João Eduardo, dizer-lhe que sim. O melhor era escrever-lhe...

— Também acho, filha, escreve-lhe... A Ruça leva a carta pela manhã... Uma carta bonita, e que agrade ao rapaz.

Amélia ficou na sala de jantar até tarde fazendo o rascunho da carta. Dizia:

"SR. JOÃO EDUARDO.

A mamã cá me pôs ao fato da conversação que teve consigo. E se a sua afeição é verdadeira, como creio e me tem dado muitas provas, eu estou pelo que se decidiu com muito boa vontade, pois conhece os meus sentimentos. E a respeito de enxoval e papéis, amanhã se falará, pois que o esperamos para o chá. A mamã está muito contente e eu desejo que tudo seja para nossa felicidade, como espero há-de ser, com a ajuda de Deus. A mamã recomenda-se e eu sou

a que muito lhe quer,

Amélia Caminha".

Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante dela deram-lhe o desejo de escrever ao padre Amaro. Mas o quê? Confessar-lhe o seu amor, com a mesma pena, molhada na mesma tinta, com que aceitava por marido o outro?... Acusá-lo da sua cobardia, mostrar o seu desgosto - era humilhar-se! E apesar de não ter motivo para lhe escrever, a sua mão ia traçando com gozo as primeiras palavras: "Meu adorado Amaro..." Deteve-se, considerando que não tinha por quem mandar a carta. Ai! tinham de separar-se assim, em silêncio, para sempre!... Separarem-se por quê? - pensou. Depois de casada podia bem ver o Sr, padre Amaro. E a mesma idéia voltava, sutilmente, mas numa forma tão honesta agora, que a não repelia: decerto, o Sr. padre Amaro podia ser o seu confessor; era em toda a cristandade a pessoa que melhor guiaria a sua alma, a sua vontade, a sua consciência; haveria então entre eles uma troca deliciosa e constante de confidências, de doces admoestações; todos os sábados iria receber ao confessionário, na luz dos seus olhos e no som das suas palavras, uma provisão de felicidade; e aquilo seria casto, muito picante, e para a glória de Deus.

Sentiu-se quase satisfeita com a impressão, que não definia bem, duma existência em que a carne estaria legitimamente contente, e a sua alma gozaria os encantos duma devoção amorosa. Tudo vinha a calhar bem, por fim... E daí a pouco dormia serenamente, sonhando que estava na sua casa, com o seu marido, e que jogava a manilha com as velhas amigas, no meio do contentamento de toda a Sé, sentada nos joelhos do senhor pároco.

Ao outro dia a Ruça levou a carta a João Eduardo, e toda a manhã as duas senhoras, costurando à janela, falaram do casamento. Amélia não se queria separar da mãe, e, como a casa tinha acomodações, os noivos viveriam no primeiro andar, e a S. Joaneira dormiria no quarto em cima; decerto o senhor cônego ajudaria para o enxoval; podiam ir passar a lua-de-mel para a fazenda da D. Maria. E Amélia àquelas perspectivas felizes fazia-se toda escarlate, sob o olhar da mãe que, de luneta na ponta do nariz, a admirava, babosa.

 

Às Ave-Marias a S. Joaneira fechou-se embaixo no seu quarto a rezar a sua coroa, e deixou Amélia só "para se entender com o rapaz". - Dai a pouco, com efeito, João Eduardo bateu à campainha. Vinha muito nervoso, de luvas pretas, enfrascado em água-de-colônia. Quando chegou à porta da sala de jantar não havia luz, e a bonita forma de Amélia destacava de pé, junto à claridade da vidraça. Ele pôs o xale-manta a um canto como costumava, e vindo para ela que ficara imóvel, disse-lhe, esfregando muito as mãos:

— Lá recebi a cartinha, menina Amélia.

— Eu mandei-a pela Ruça logo pela manhã para o pilhar em casa - disse ela imediatamente com as faces a arder.

— Eu ia para o cartório, até já ia na escada... Haviam de ser nove horas...

— Haviam de ser... - disse ela.

Calaram-se, muito perturbados. Ele então tomou-lhe delicadamente os pulsos, e baixo:

— Então sempre quer?

— Quero, murmurou Amélia.

— E o mais depressa possível, hem?

— Pois sim...

Ele suspirou, muito feliz.

— Havemos de nos dar muito bem, havemos de nos dar muito bem, dizia. E as suas mãos, com pressões temas, iam-se apoderando dos braços dela, dos pulsos aos cotovelos.

— A mamã diz que podemos viver juntos, disse ela, esforçando-se por falar tranquilamente.

— Está claro, e eu vou mandar fazer lençóis, acudiu ele, todo alterado.

Atraiu-a então a si, subitamente, beijou-lhe os lábios; ela teve um soluçozinho, abandonou-se-lhe entre os braços, toda fraca, toda lânguida.

— Oh filha! murmurava o escrevente.

Mas os sapatos da mãe rangeram na escada, e Amélia foi vivamente para o aparador acender o candeeiro.

A S. Joaneira parou à porta; e para dar a sua primeira aprovação maternal, disse, com bonomia:

— Então vocês estão aqui às escuras, filhos?

Foi o cônego Dias que participou ao padre Amaro o casamento de Amélia, uma manhã na Sé. Falou no a propósito do enlace, e acrescentou:

— Eu estimo, porque é a contento da rapariga, e é um descanso para a pobre velha...

— Está claro, está claro... - murmurou Amaro, que se fizera muito branco.

O cônego pigarreou grosso, e ajuntou:

— E você agora apareça por lá, agora está tudo na ordem... A patifaria do jornal isso pertence à história... O que lá vai, lá vai!

— Está claro, está claro... - rosnou Amaro. Traçou bruscamente a capa, saiu da igreja.

Ia indignado; e continha-se, para não praguejar alto, pelas ruas. À esquina da viela das Sousas quase esbarrou com Natário, que o agarrou, logo, pela manga, para lhe soprar ao ouvido:

— Ainda não sei nada!

— De quê?

— Do liberal, do Comunicado. Mas trabalho, trabalho!

Amaro, que ansiava por desabafar, disse logo:

— Então ouviu a novidade? O casamento de Amélia... Que lhe parece?

— Disse-me o animal do Libaninho. Diz que o rapaz apanhou o emprego... Foi o doutor Godinho... E outro que tal!... Veja você esta corja. O doutor Godinho do jornal às bulhas com o governo civil, e o governo civil a atirar postas aos afilhados do doutor Godinho. Vá lá entendê-los! Isto é um país de biltres!

— Diz que há grande alegrão na casa da S. Joaneira! - disse o pároco, com um azedume negro.

— Que se divirtam! Eu não tenho tempo de lá ir... Eu não tenho tempo para nada!... Eu cá ando no meu fito, saber quem é o liberal e escachá-lo! Não posso ver esta gente que leva a chicotada, coça-se, e curva a orelha. Eu cá não! eu guardo-as! - E, com uma contração de rancor, que lhe curvou os dedos em garra, e lhe encolheu o peito magro, disse por entre os dentes cerrados: - Eu, quando odeio, odeio bem!

Esteve um momento calado, gozando o sabor do seu fel.

— Você se for à Rua da Misericórdia dê lá os parabéns a essa gente... - E acrescentou com os olhinhos em Amaro: - O palerma do escrevente leva a rapariga mais bonita da cidade! Vai encher o papo!

— Até à vista! exclamou bruscamente Amaro, abalando pela rua furioso.

Depois daquele terrível domingo em que aparecera o Comunicado, o padre Amaro, ao principio, muito egoistamente, apenas se preocupara com as consequências - "consequências fatais, Santo Deus!" - que lhe podia trazer o escândalo. Hem! se pela cidade se espalhasse que era ele o padre ajanotado que o liberal apostrofava! Viveu dois dias aterrado, tremendo de ver aparecer o padre Saldanha, com a sua cara ameninada e voz melíflua, a dizer-lhe "que sua excelência o senhor chantre reclamava a sua presença"! Passava já o tempo preparando explicações, respostas hábeis, lisonjas a sua excelência. - Mas quando viu que, apesar da violência do artigo, sua excelência parecia disposto "a fazer a vista grossa", ocupou-se então, mais tranquilo, dos interesses do seu amor tão violentamente perturbados. O medo tornava-o astucioso; e decidiu não voltar algum tempo à Rua da Misericórdia.

— Deixar passar o aguaceiro, pensou.

Ao fim de quinze dias, três semanas, quando o artigo estivesse esquecido, apareceria de novo em casa da S. Joaneira: deixaria ver bem à rapariga que a adorava sempre, mas evitaria a antiga familiaridade, as conversazinhas baixas, os lugarzinhos chegados ao quino; depois, pela D. Maria da Assunção, pela D. Josefa Dias, obteria que Amélia deixasse o padre Silvèrio e se confessasse a ele: poderiam então entender-se, no segredo do confessionário: combinariam uma conduta discreta, encontros cautelosos aqui e além, cartinhas pela criada: e aquele amor assim conduzido, com prudenciazinha, não teria o perigo de aparecer uma manhã anunciado no periódico! E regozijava-se já da habilidade desta combinação, quando lhe vinha o grande choque - casava-se a rapariga!

Depois dos primeiros desesperos, desabafos em patadas no soalho e blasfêmias de que pedia logo perdão a Nosso Senhor Jesus Cristo, quis serenar, estabelecer a razão das coisas. Aonde o levava aquela paixão? Ao escândalo. E assim, casada ela, cada um entrava no seu destino legitimo e sensato - ela na sua família, ele na sua paróquia. Depois, quando se encontrassem, um cumprimento amável; e ele poderia passear a cidade com a sua cabeça bem direita, sem medo dos apartes da Arcada, das insinuações da gazeta, das severidades de sua excelência e das picadinhas da consciência! E a sua vida seria feliz. - Não, por Deus! a sua vida não poderia ser feliz sem ela! Tirado à sua existência aquele interesse das visitas à Rua da Misericórdia, os apertozinhos de mão, a esperança de delicias melhores - que lhe restava a ele? Vegetar, como um dos tortulhos nos cantos úmidos da Sé! E ela, ela que o entontecera com os seus olhinhos e as suas maneirinhas, voltava-lhe as costas mal lhe aparecia outro, bom para marido, com 25$000 por mês! Todos aqueles suspiros, aquelas mudanças de cor - chalaça! Mangara com o senhor pároco!

O que a odiava! - menos que ao outro porém, o outro que triunfava porque era um homem, tinha a sua liberdade, o seu cabelo todo, o seu bigode, um braço livre para lhe dar na rua! Repastava então a imaginação rancorosamente nas visões de felicidade do escrevente: via-o trazendo-a da igreja triunfantemente; via-o beijando-lhe o pescoço e o peito... E a estas idéias dava patadas furiosas no soalho - que assustavam a Vicência na cozinha

Depois procurava sossegar, retomar a direção das suas faculdades, aplicá-las todas a achar uma vingança, uma boa vingança! E voltava então o antigo desespero de não viver no tempo da Inquisição, e com uma denúncia de irreligião ou de feitiçaria, mandá-los ambos para um cárcere. Ah! nesse tempo um padre gozava! Mas agora, com os senhores liberais, tinha de ver aquele miserável escrevente a seis vinténs por dia apoderar-se lhe da rapariga - e ele, sacerdote instruído, que podia ser bispo, que podia ser papa, tinha de vergar os ombros e ruminar solitariamente o seu despeito! Ah! se as maldições de Deus tinham algum valor - malditos fossem eles! Queria vê-los cheios de filhos, sem pão na prateleira, com o último cobertor empenhado, ressequidos de fome, injuriando-se, - e ele a rir-se, ele a regalar-se!...