Romancistas Essenciais - Camilo Castelo Branco

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Aus der Reihe: Romancistas Essenciais #4
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VI

As dez horas e meia da noite daquele dia, três vultos convergiram para o local, raro freqüentado, em que se abria a porta do quintal de Tadeu de Albuquerque. Ali se detiveram alguns minutos discutindo e gesticulando. Dos três vultos havia um, cujas palavras eram ouvidas em silêncio e sem réplica pelos outros. Dizia ele a um dos dois:

— Não convém que estejas perto desta porta. Se o homem aparecesse aqui morto, as suspeitas caiam logo sobre mim ou meu tio. Afastem-se vocês um do outro, tenham o ouvido aplicado ao tropel do cavalo. Depois apressem o passo até o encontrarem, de modo que os tiros sejam dados longe daqui.

— Mas... - atalhou um - quem nos diz que ele veio ontem a cavalo, e hoje vem a pé?

— E verdade! - acrescentou o outro.

— Se ele vier a pé, eu lhes darei aviso para o seguirem depois até o terem a jeito de tiro, mas longe daqui, percebem vocês? - disse Baltasar Coutinho.

— Sim, senhor: mas se ele sal. de casa do pai, e entra sem nos dar tempo?

— Tenho a certeza de que não está em casa do pai, já Iho disse. Basta de palavreado. Vão esconder-se atrás da Igreja, e não adormeçam.

Debandou o grupo, e Baltasar ficou alguns momentos encostado ao muro. Soaram os três quarto depois da dez. O de Castro-d'Aire colocou o ouvido à porta, e retirou-se aceleradamente, ouvindo o rumor da folhagem seca que Teresa vinha pisando.

Apenas Baltasar, cosido com o muro, desaparecera, um vulto assomou do outro lado a passo rápido. Não parou: foi direito a todos os pontos onde uma sombra podia figurar um homem. Rodeou a igreja, que estava a duzentos passos de distância. Viu os dois vultos direitos com o recanto que formava a junção da capela-mor, e sobre o qual caíram as sombras da torre. Fitou-os de passagem, e suspeitou; não os conheceu, mas eles disseram entre si, depois que ele desaparecera:

— E o João da Cruz, ferrador, ou o diabo por ele!...

— Que fará a estas horas por aqui?!

— Eu sei!

— Não desconfias que ele entre nisto?

— Agora! se entrasse, era por nós. Não sabes que ele foi mochila do nosso amo?

— Pois então que medo tens?

— Não há medo; mas também sei que foi o corregedor que o livrou da forca...

— Isso que tem! O corregedor não se importa com isso, nem sabe que o filho cá está...

— Assim será; mas não estou muito contente... Ele é homem dos diabos...

— Deixá-lo ser... Tanto entram as balas nele como noutro...

A discussão continuou sobre várias conjeturas. De tudo o que eles disseram uma coisa era certíssima: ser o vulto o João da Cruz, ferrador.

Teria este dado trezentos passos, quando os criados de Baltasar ouviram o remoto tropel da cavalgadura.

Ao tempo que eles saíam do seu esconderijo, saía João da Cruz à frente do cavaleiro. Simão aperrou as pistolas, e o arreeiro uma clavina.

— Não há novidade - disse o ferrador -; mas saiba vossa senhoria que já podia estar em baixo do cavalo com quatro zagalotes no peito.

O arreeiro reconheceu o cunhado, e disse:

— És tu, João?

— Sou eu. Vim primeiro que tu.

Simão estendeu a mão ao ferrador, e disse, comovido.

— Dê cá a sua mão; quero sentir na minha a mão dum homem honrado.

— Nas ocasiões é que se conhecem os homens - redargüiu o ferrador. - Ora vamos... não há tempo para falatórios. O senhor doutor tem uma espera.

— Tenho - disse Simão.

— Atrás da igreja estão dois homens que eu não pude conhecer; mas não se me dava de jurar que são criados do Sr. Baltasar. Salte abaixo do cavalo, que há de haver mostarda. Eu disse-lhe que não viesse; mas vossa senhoria veio, e agora é andar com a cara para frente.

— Olhe que eu não tremo, mestre João! - disse o filho do corregedor.

— Bem sei que não; mas, à vista do inimigo, veremos.

Simão tinha apeado. O ferrador tomou as rédeas do cavalo, recuou alguns passos na rua, e foi prendê-lo à argola da parede duma estalagem.

Voltou, e disse a Simão que o seguisse a ele e ao cunhado na distância de vinte passos; e que, se os visse parar perto do quintal de Albuquerque, não passasse do ponto donde os visse.

Quis o acadêmico protestar contra um plano que o humilhava como protegido pela defesa dos dois homens; o ferrador, porém, não admitiu a réplica

— Faça o que eu lhe digo, fidal9o - disse ele com energia.

João da Cruz e o cunhado, espiando todas as esquinas, chegaram defronte do quintal de Teresa, e viram, um vulto a sumir-se no ângulo da parede.

— Vamos sobre eles - disse o ferrador - que lá passaram para o adro da igreja; nestes entrementes, o doutor chegará à porta do quintal e entra; depois voltaremos para lhe guardar a saída.

Neste propósito, moveram-se apressados, e Simão Botelho caminhou com as pistolas aperradas na direção da porta.

Em frente do muro do jardim de Teresa haviam uma cascalheira escarpada. que se esplainava depois numa alameda sombria.

Os dois criados de Baltasar, quando o tropel do cavalo parou, recordaram as ordens do amo, no caso de vir a pé Simão. Buscaram sitio azado para o espreitarem na saída, e entraram na alameda quando o acadêmico chegara à porta do quintal.

— Agora está seguro - disse um,

— Se lá não ficar dentro... - respondeu o outro, vendo-o entrar, e fechar-se a porta.

— Mas além vêm dois homens... - disse o mais assustado, olhando para a outra entrada da alameda.

— E vêm direitos a nós... Aperra lá a cravina...

— O melhor é retirarmos. Nós estamos à espera do outro, e não deste. Vamos embora daqui...

Este não esperou convencer o companheiro: desceu a ribanceira do cascalho. O mais intrépido teve também a prudência de todos os assassinos assalariados: seguiu o assustadiço, e deu-lhe razão, quando ouviu após de si os passos velozes dos perseguidores. Saiu-lhes o amo de frente quando dobravam a esquina do quintal, disse-lhes:

— Vocês a que fogem, seus poltrões?

Os homens pararam de envergonhados, aperrando os bacamartes.

João da Cruz e o arreeiro apareceram, e Baltasar caminhou para eles, brandando:

— Alto aí!

O ferrador disse ao cunhado:

— Fala-lhe tu, que eu não quero que ele me conheça.

— Quem manda fazer alto? - disse o arreeiro.

— São três clavinas - respondeu Baltasar.

— Olha se os demoras a dar tempo que o doutor saía - disse João da Cruz ao ouvido do arreeiro.

— Pois nós cá estamos parados - replicou o criado de Simão. - Que nos querem vocês?

— Quero saber o que têm que fazer neste sítio.

— E vocês o que fazem por cá?

— Não admito perguntas - disse o de Castro-d'Aire, aventurando alguns passos vacilantes para a frente. - Quero saber quem são.

Mestre João disse ao ouvido do cunhado:

— Diz-lhe que, se dá mais um passo, que o arrebentas.

O arreeiro repetiu a cláusula, e Baltasar parou.

Um dos criados deles chamou-o ao lado para lhe dizer que aquele dos dois que não falava parecia ser o João da Cruz. O morgado duvidou, e quis esclarecer-se; mas o ferrador ouvira as palavras do criado, e disse ao cunhado:

— Vem comigo, que eles conhecem-me.

Dizendo, voltou as costas ao grupo, e caminhou ao longo do quintal de Tadeu de Albuquerque. Os criados de Baltasar, gloriosos da retirada, como de uma derrota certa, apressaram o passo, na cola dos supostos fugitivos. O morgado ainda lhes disse que os não seguissem; mas eles, momentos antes cobardes, queriam desforrar-se agora, correndo após o inimigo tanto quanto lhe tinham fugido antes.

Simão Botelho ouvira passos ligeiros, e, compelido pelo susto de Teresa, abrira a porta do quintal, sem saber ainda de quem fossem os passos. João da Cruz, com ar galhofeiro, já quando os perseguidores se viam, disse ao filho do corregedor, se estavam ajustando o casamento, que não havia pano para mangas.

Simão entendeu o perigo, apertou convulsamente a mão de Teresa, e retirou-se. Queria ele reconhecer os dois vultos parados a distância, mas João da Cruz, com o tom imperioso de quem obriga à submissão, disse ao filho do corregedor:

— Vá por onde veio, e não olhe para trás. Simão foi indo até encontrar o cavalo. Montou, e esperou os dois inalteráveis guardas que o seguiam a passo vagaroso. Maravilhara-os o súbito desaparecimento dos criados de Baltasar, e recearam-se de alguma espera fora da cidade. O ferrador conhecia o atalho que podia levar os da emboscada ao caminho, e revelou o seu receio a Simão, dizendo-lhe que picasse a toda a brida, que ele e o cunhado lá iriam ter. O acadêmico recebeu com enfado a advertência, admoestando-os a que o não tivessem em tal vil preço. E acintemente sofreu as rédeas para não forçar os homens a aligeirar o passo.

— Vá como quiser - disse mestre João - que nós vamos por fora do caminho.

E subiram a uma rampa de olivais, para tornarem a descer encobertos por moitas de giesta, cosendo-se aos torcicolos duma parede paralela com a estrada.

— O atalho vai acolá onde a serra faz aquele cotovelo - disse o ferrador ao cunhado, - hão de ali passar, ou já passaram. A estrada vai mesmo na quebrada daquele outeirinho. Os homens é dali que vão atirar, encobertos pelos sobreiros. Vamos depressa...

E um pouco descobertos, e outro curvados à sombra das devesas, chegaram a um valado donde ouviram os passos dos dois homens que atravessavam o pontilhão de um córrego.

— Já não vamos a tempo - disse aflito o João da Cruz - os homens vão atirar-lhe, porque o cavalo trupa cá muito atrás.

E corriam já sem temor de serem vistos, porque os outros tinham dobrado o outeiro, em cujo vale corria a estrada.

 

— Os homens vão atirar-lhe... - disse o ferrador.

— Gritemos daqui ao doutor que não vá para diante.

— Já não é tempo... Ou o matem ou não matem, quando voltarem são nossos.

Tinham já passado o pontilhão, e subiam a ladeira quando ouviram dois tiros.

— Arriba! - esclamou João da Cruz - que não vão meter-se à estrada, se mataram o fidalgo.

Tinham vencido o chá, esbofados e ansiados, com as davinas aperradas. Os criados de Baltasar, ao invés da conjetura do ferrador, retrocediam pelo mesmo atalho, supondo que os companheiros de Simão iam adiante batendo os pontos azados à emboscada, ou se tinham retardado.

— Eles aí vêm! disse o arreeíro.

— Nós cá estamos - respondeu o ferrador, sentando-se a coberto de um cômoro. - Senta-te também, que eu não estou para correr atrás deles. Os assassinos, a dez passos, viram de frente erguerem-se os dois vulto, e ladearam cada qual para seu lado, um galgando os socalcos duma vinha e outro atirando-se a uns silveirais.

— Atira ao da esquerda - disse João da Cruz.

Foram simultâneas as explosões. A pontaria do ferrador fez logo um cadáver. Os balotes do arreeiro não estremaram o outro entre o carrascal onde se embrenhara.

A este tempo assomava Simão no teso donde lhe tinham atirado, e corria ao ponto onde ouvira o segundo tiro.

— É vossa senhoria, fidalgo - bradou o ferrador.

— Sou.

— Não o mataram?

— Creio que não - respondeu Simão.

— Este desalmado deixou fugir o melro - tomou João da Cruz - mas o meu lá está a pernear na vinha. Sempre lhe quero ver as trombas...

O ferrador desceu os três socalcos da vinha, e curvou-se sobre o cadáver, dizendo:

— Alma de cântaro, se eu tivesse duas clavinas, não ias sozinho para o inferno.

— Anda daí! - disse o arreeiro - deixa lá esse diabo, que o senhor doutor está ferido num ombro. Vamos depressa, que está o sangue a escorrer-lhe.

— Eu vi duas cabeças a espreitarem-me de cima da ribanceira, e cuidei que eram vocês - disse Simão, enquanto o ferrador, com a destreza de hábil cirurgião, lhe enfaixava com lenços o braço ferido. - Parei o cavalo, e disse: "Olé! há novidade?" Logo que me não responderam, saltei para terra; mas ainda eu tinha um pé no estribo quando me fizeram fogo. Quis saltar à ribanceira, mas não pude romper o mato. Dei uma voltar grande para achar subida, e foi então que dei fé de estar ferido.

— Isto é uma arranhadura - disse João da Cruz - olhe que eu sei disto, fidalgo! Estou afeito a curar muitas feridas.

— Nos burros, mestre João? - disse o ferido, sorrindo.

— E nos cristãos também, senhor doutor. Olhe que houve em Portugal um rei que não queria outro médico senão um alveitar. Hei de mostrar-lhe o meu corpo, que está uma rede de facadas, e nunca fui ao cirurgião. Com ceroto e vinagre sou capaz de ir ressuscitar aquela alma do diabo que ali está a escutar a cavalaria.

Nisto ouviu-se um leve rumor de folhagem no matagal para onde tinha saltado o companheiro do morto.

João da Cruz, como galo de fino olfato, fitou a orelha e resmungou:

— Querem vocês ver que eles se armam!.

Dar-se-á caso que o outro ainda esteja por ali a tremer maleitas?

O rumor continuou, e logo um bando de pássaros rompeu dentre a folhagem, chilreando.

— O homem está ali - tornou o ferrador. - Passe-me cá uma pistola, senhor Simão!

Correu mestre João, e ao mesmo tempo uma grande restolhada se fez entre as moitas de codessos e urzes.

— Ele estrinça lenha como um porco do monte! - exclamou o ferrador, - Ó cunhado, bate este mato com alguns penedos; quero ver sair o javali da moita!..

Para o outro lado da bouça estava um plaino cultivado. Simão, rodeando a sebe, conseguira saltar ao campo por sobre a pedra dum agüeiro.

— Tenha lá mão, mestre; não vá você atirar-me! - bradou Simão ao ferrador.

— Pois o fidalgo já aí anda!? Então está fechado o cerco. Eu cá vou fazer de furão. Se este nos escapa, não há nada seguro neste mundo!

Não se enganaram. O criado de Baltasar Coutínho, quando se atirara desamparado à brenha, deslocara um joelho, e caíra atordoado. O arreeiro não examinou o efeito do tiro, porque atirara à ventura, e achava natural que o fugitivo se não molestasse. Quando volveu a si do aturdimento da queda, o homem arrastou-se até encontrar um cercado de árvores silvestres, em que pernoitava a passarinhada. Como os melros cacarejassem, esvoaçando, o criado de Baltasar retrocedeu para o mato, cuidando que aí escaparia; mas o arreeiro jogava enormes calhaus em todas as direções, e alguns acercavam mais que as balas do seu bacamarte. João da Cruz tirou do bolso da jaqueta um podão, e começou a cortar a selva de carvalhas novas e giestas que se emaranhavam em redor do esconderijo. Já cansado, porém, e vendo o pouco fruto do trabalho, disse ao arreeiro:

— Petisca lume, vai ali dentro buscar um pouco de restolho seco, e vamos pegar fogo ao mato, que este ladrão há de morrer assado.

O perseguido, quando tal ouviu, tirou do maior perigo coragem para fugir, rompendo a espessura e saltando a parede da tapada para o campo do restolho em que o arreeiro andava apanhando palha e Simão esperava o desfecho da montaria. Correram a um tempo o arreeiro e o acadêmico sobre ele, O fugitivo, sentindo-se alcançado, lançou-se de joelhos e mãos erguidas, pedindo perdão, e dizendo que o amo o obrigaria àquela desgraça. Já a coronha do bacamarte do arreeiro lhe ia direita ao peito, quando Simão lhe reteve o braço.

— Não se bate num homem ajoelhado! - disse o moço - Levanta-te, rapaz!

— Eu não posso, senhor. Tenho uma perna quebrada e estou aleijado para a minha vida!

Neste comenos chegou o ferrador, e exclamou:

— Pois esse tratante ainda está vivo!?

E correu sobre ele com o podão.

— Não mate o homem, senhor João! - disse o filho do corregedor'.

— Que o não mate! Essa é de cabo de esquadra! Com que então o fidalgo quer pagar-me com a forca o favor de o acompanhar... hein?

— Com a forca?! - atalhou Simão.

— Pudera não! Quer que este homem fique para ir contar a história? Acha bonito? Lá vossa senhoria, como é filho de ministro, não terá perigo; mas eu, que sou ferrador, posso contar que desta vez tenho o baraço no pescoço. Não me faz jeito o negócio. Deixe-me cá com o homem...

— Não o mate, senhor João; peço-lhe eu que o deixe ir. Uma testemunha não nos pode fazer mal.

— O quê! - redargüiu o ferrador - vossa senhoria é doutor, saberá muito, mas de justiça não sabe nada. e há de perdoar o meu atrevimento. Basta uma só testemunha para guiar a justiça na devassa. As duas por três, uma testemunha de vista, e quatro de ouvir dizer, com o fidalgo de Castrod'ALre a mexer os pauzinhos, é forca certa, como dois e dois serem quatro.

— Eu não digo nada; não me matem, que eu nem torno a ir para Castro-d'Aire - exclamou o homem.

— Deixe-o ficar, João da Cruz... vamos embora...

— Isso! - acudiu o ferrador - Chame-me João da Cruz... para este maroto ficar bem certo de que sou o João da Cruz... Como efeito, não sei o que me parece vossa senhoria querer deixar com vida uma alma do diabo que lhe deu um tiro para o matar.

— Pois sim, tem você razão; mas eu não sei castigar miseráveis que não resistem.

— E, se ele o tivesse matado, castigava-o? Responda a isto, senhor doutor.

— Vamos embora - tornou Simão - deixemos por aí esse miserável.

Mestre João cismou alguns momentos, coçando a cabeça, e resmungou com descontentamento:

— Vamos lá. .. Quem o seu inimigo poupa nas mãos lhe morre.

Tinham já saído do plano e saltado o tapada, e iam descendo para a estrada, quando o ferrador exclamou:

— Lá me ficou a minha clavina escostada à sebe... Vão indo que eu venho já.

O arreeiro conduzia o cavalo, que pacificamente estivera tosando a relva das paredes marginais da estrada, quando Simão ouviu gritos. Conjeturou com certeza o que era.

— O João lá está a fazer justiça! - disse o arreeiro - Deixá-lo lá, meu amo, que ele é homem que sabe o que faz.

João da Cruz apareceu daí a pouco, limpando com fentos o podão ensangüentado.

— Você é cruel, sr. João - disse o acadêmico.

— Não sou cruel - disse o ferrador - o fidalgo está enganado comigo; é que, diz lá o ditado, morrer por morrer, morra meu pai, que é mais velho. Tanto faz matar um como dois. Quando se está com a mão na massa, tanto faz amassar um alqueire como três. As obras devem ser acabadas, ou então o melhor é não se meter a gente nelas. Agora levo a minha consciência sossegada. A justiça que prove, se quiser; mas não há de ser porque lho digam aqueles dois que eu mandei de presente ao diabo.

Simão teve um instante de horror do homicida, e de arrependimento de se ter ligado com tal homem.

VII

O ferimento de Simão Botelho era melindroso demais para obedecer prontamente ao curativo do ferrador, enfronhado em aforismos de alveitaria. A bala passara-lhe de revés a porção muscular do braço esquerdo; mas algum vaso importante rompera, que não bastavam compressas a vedar-lhe o sangue. Horas depois de ferido, o acadêmico deitou-se febril, deixando-se medicar pelo ferrador. O arreeiro partiu para Coimbra, encarregado de espalhar a notícia de ter ficado no Porto Simão Botelho.

Mais que as dores e o receio da amputação, o mortificava a ânsia de saber novas de Teresa. João da Cruz estava sempre de sobrerrolda, precavido contra algum procedimento judicial por suspeitas dele. As pessoas que vinham de feirar na cidade contavam todas que dois homens tinham aparecido mortos, e constava serem criados dum fidalgo de Castrod'Aire, Ninguém, porém, ouvira imputar o assassínio a determinadas pessoas.

Na tarde desse dia recebeu Simão a seguinte carta de Teresa:

"Deus permita que tenhas chegado sem perigo a casa dessa boa gente. Eu não sei o que se passa. mas há coisa misteriosa que eu não posso adivinhar. Meu pai tem estado toda a manhã fechado com o primo, e a mim não me deixa sair do quarto. Mandou-me tirar o tinteiro; mas eu felizmente estava prevenida com outro. Nossa Senhora quis que a pobre viesse pedir esmola debaixo da janela do meu quarto; senão, eu nem tinha modo de lhe dar sinal para ela esperar esta carta. Não sei o que ela me disse Falou-me em criados mortos; mas eu não pude entender... Tua mana Rita está-me acenando por trás dos vidros do teu quarto...

Disse-me agora tua mana que os moços de meu primo tinham aparecido mortos perto da estrada. Agora já sei tudo. Estive para lhe dizer que tu aí estás, mas não me deram tempo. Meu pai de hora a hora dá passeios no corredor, e solta uns ais muitos altos.

Ó meu querido Simão, que será feito de ti?... Estás ferido? Serei eu a causa da tua morte?

Dize-me o que souberes. Eu já não peço a Deus senão a tua vida. Foge desses sítios: vai para Coimbra, e espera que o tempo melhore a nossa situação. Tem confiança nesta desgraçada, que é digna da tua dedicação... Chega a pobre: não quero demorá-la mais... Perguntei-lhe se se dizia de ti alguma coisa, e ela respondeu que não. Deus o queira".

Respondeu Simão a querer tranqüilizar o ânimo de Tereza. Do seu sofrimento falava tão de passagem, que dava a supor que nem o curativo era necessário. Prometia partir para Coimbra logo que o pudesse fazer sem receio de Teresa sofrer na sua ausência. Animava-a a chamá-lo assim que as ameaças do convento passassem a ser realizadas.

Entretanto, Baltasar Coutinho, chamado às autoridades judiciárias para esclarecer a devassa instaurada, respondeu que efetivamente os homens mortos eram seus criados, de quem ele e sua família se acompanhara de Castro-d'Aire. Acrescentou que não sabia que eles tivessem inimigos em Viseu, nem tinha contra alguém as mais leves presunções.

Os mais próximos vizinhos da localidade onde os cadáveres tinham aparecido apenas depunham que, alta noite, tinham ouvido dois tiros ao mesmo tempo, e outro pouco depois. Um apenas adiantava coisa que não podia alumiar a justiça, e vinha a ser que o mato, nas vizinhanças do local, fora chapotado. Nesta escuridade a justiça não podia dar passo algum.

Tadeu de Albuquerque era conivente no atentado contra a vida de Simão Botelho. Fora seu ó alvitre, quando o sobrinho denunciou a causa das saídas freqüentes de Teresa na noite do baile. Tanto ao velho como ao morgado convinha apagar algum indício que pudesse envolvê-los no mistério daquelas duas mortes. Os criados não mereciam as penas dum desforço que implicasse o desdouro de seus amos. Provas contra Simão Botelho não podiam aduzi-las. Aquela hora o supunham eles a caminho de Coimbra, ou refugiado em casa de seu pai. Restava-lhes ainda a esperança de que ele tivesse sido ferido, e fosse acabar longe do local em que o tinham assaltado.

 

Enquanto a Teresa, resolveu Albuquerque encerrá-la num convento do Porto, e escolheu Monchique, onde era prioresa uma sua próxima parenta. Escreveu à prelada para lhe preparar aposentos, e ao procurador para negociar as licenças eclesiásticas para a entrada. Todavia, receando o velho algum incidente no espaço de tempo que medeava até se conseguirem as licenças, resolveu não ter consigo Teresa, e solicitou a retenção temporária dela num convento de Viseu.

Acabara Teresa de ler e esconder no seio a resposta de Simão Botelho que a mendiga lhe passara ao escurecer, pendente de uma linha, quando o pai entrou no seu quarto, e a mandou vestir-se. A menina obedeceu, tomando uma capa e um lenço,

— Vista-se como quem é: lembre-se que ainda tem os meus apelidos - disse com severidade o velho.

— Cuidei que não era preciso vestir-me melhor para sair à noite... - disse Teresa.

— E a senhora sabe para onde vai?

— Não sei... meu pai.

— Então vista-se, e não me dê leis.

— Mas, meu pai. atenda-me um momento.

— Diga.

— Se a sua idéia é obrigar-me a casar com meu primo...

— E daí?

— De certo não caso; morro, e morro contente, mas não caso.

— Nem ele a quer. A senhora é indigna de Baltasar Coutinho. Um homem do meu sangue não aceita para esposa uma mulher que fala de noite aos amantes nos quintais. Vista-se depressa, que vai para um convento.

— Prontamente, meu pai. Esse destino lho pedi eu muitas vezes.

— Não quero reflexões. Daqui a pouco apareça-me vestida. Suas primas esperam-na para a acompanharem.

Quando se viu sozinha, Teresa debulhou-se em lágrimas, e quis escrever a Simão. Aquela hora quem lhe levaria a carta? Apelou para o retábulo da Virgem, que ela fizera confidente do seu amor. Pediu-lhe de joelhos que a protegesse, e desse forças a Simão para resistir ao golpe, e guardar-lhe constância através dos trabalhos que sucedessem, Depois vestiu-se, comprimindo contra o seio um embrulho em que levava o tinteiro, o papel e o macete de cartas de Simão. Saiu do seu quarto, relanceando os olhos lacrimosos para o painel da Virgem, e, encontrando o pai, pediu-lhe licença para levar consigo aquela devota imagem.

— Lá irá ter - respondeu ele. - Se tivesse tanta vergonha como devoção, seria mais feliz do que há de ser.

Uma das primas, irmãs de Baltasar, chamou-a de parte. e segredou-lhe:

— Ó menina, estava ainda na tua mão dares remédio à desordem desta casa...

— Qual remédio?! - perguntou Teresa com artificial seriedade.

— Diz a teu pai que não duvidas casar com o mano Baltasar...

— Primo Baltasar não me quer - replicou ela, sorrindo.

— Quem te disse isso, Teresinha?

— Disse-mo meu pai.

— Deixa falar teu pai, está desatinado com o amor que te tem. Queres tu que eu lhe fale.

— Para quê?

— Para se remediar deste modo a desgraça de todos nós.

— Estás a brincar, prima! - redargüiu Teresa. - Eu hei de ser tua cunhada quando não tiver coração. Teu mano tem a certeza de que eu amo outro homem. Queria viver para ele; mas, se quiserem que eu morra por ele, abençoarei' todos os meus algozes. Podes dizer isto ao primo Baltasar e dize-lho antes que te esqueça.

— Então? Vamos! - disse o velho.

— Estou pronta, meu pai.

Abriu-se a portaria do mosteiro. Teresa entrou sem uma lágrima. Beijou a mão de seu pai, que ele não ousou recusar-lhe na presença das freiras. Abraçou suas primas, com semblante de regozijo; e, ao fechar-se a porta, exclamou, com grande espanto das monjas:

— Estou mais livre que nunca. A liberdade do coração é tudo.

As freiras olharam-se entre si, como se ouvissem na palavra "coração" uma heresia, uma blasfêmia proferida na casa do Senhor.

— Que diz a menina?! - perguntou a prioresa, fitando-a por cima dos óculos, e apanhando no lenço de Alcobaça a destilação do esturrinho.

— Disse eu que me sentia aqui muito bem, minha senhora.

— Não diga - minha senhora - atalhou a escrivã.

— Como hei de dizer?

— Diga: "nossa madre prioresa".

— Pois sim, nossa madre prioresa, disse eu que me sentia aqui muito bem.

— Mas quem vem para estas casas de Deus não vem para se sentir bem - tornou a nossa madre prioresa.

— Não?! - disse Teresa com sincera admiração.

— Quem para aqui vem, menina, há de mortificar o espírito, e deixar lá fora as paixões mundanas. Ora pois! Aqui está a nossa madre mestra de noviças, a quem compete encaminhá-la e dirigi-la.

Teresa não redargüiu: fez um gesto de respeito à mestra de noviças, e seguiu o caminho que a prelada lhe ia indicando.

A nossa madre entrou nos seus aposentos, e disse a Teresa que era sua hóspeda enquanto ali estivesse; e ajuntou que não sabia se seu pai escolheria aquele convento ou outro.

— Que importa que seja um ou outro? - disse Teresa.

— É conforme. Seu pai pode querer que a menina professe em ordem rica das bentas ou bernardas.

— Professe! - exclamou Teresa. - Eu não quero ser freira aqui, nem noutra parte.

— A senhora há de ser o que seu pai quiser que seja.

— Freira?! A isso não pode ninguém obrigar-me! -recalcitrou Teresa.

— Isso assim é - retorquiu a prioresa - mas, como a menina tem de noviciado um ano, sobra-lhe tempo para se habituar a esta vida, e verá que não há vida mais descansada para o corpo, nem mais saudável para a alma.

— Mas a nossa madre - tornou Teresa, sorrindo, como se a ironia lhe fosse habitual - já disse que a estas casas ninguém vem para se sentir bem...

— É um modo de falar, menina. Todos temos as nossas mortificações e obrigações de coro e de serviços para que nem sempre o espírito está bem disposto. Ora vês aí. Mas, em comparação do que lá vai pelo mundo, o convento é um paraíso. Aqui não há paixões, nem cuidados que tirem o sono, nem a vontade de comer, bendito seja o Senhor! Vive-mos umas com as outras como Deus com os anjos. O que uma quer querem todas. Más línguas é coisa que a menina não há de achar aqui, nem intriguistas, nem murmurações de soalheiro. Enfim, Deus fará o que for servido. Eu vou à cozinha buscar a ceia da menina, e já volto. Aqui a deixo com a senhora madre organista, que é uma pomba, e com a nossa mestra de noviças, que sabe dizer melhor que eu o que é a virtude nestas santas casas.

Apenas a prioresa voltou as costas, disse a organista à mestra de noviças:

— Que impostora!

— E que estúpida! - acudiu a outra. - A menina não se fie nesta trapalhona, e veja se seu pai lhe dá outra companhia enquanto cá estiver, que a prioresa é a maior intriguista do convento. Depois que fez sessenta anos, fala das paixões do mundo como quem as conhece por dentro e por fora. Enquanto foi nova, era a freira que mais escândalos dava na casa; depois de velha era a mais ridícula porque ainda queria amar e ser amada; agora, que está decrépita, anda sempre este mostrengo a fazer missões e a curar indigestões.

Teresa, apesar da sua dor, não pôde reprimir uma risada, lembrando-se da vida de Deus com os anjos que as esposas do Senhor ali viviam, no dizer da madre prioresa.

Pouco depois, entrou a prelada com a ceia, e saíram as duas freiras.

— Que lhe pareceram as duas religiosas que ficaram com a menina? - disse ela a Teresa.

— Pareceram-me muito bem.

A velha distendeu os beiços matizados de meandros de esturrinho líquido, e regougou:

— Hum!... Está feito, está feito!... Ainda não são das piores; mas, se fossem melhores, não se perdia nada... Ora vamos a isto, menina; aqui tem duas pernas de galinha e um caldo que o podem comer os anjos.

— Eu não como nada, minha senhora - disse Teresa.

— Ora essa! Não come nada?! Há de comer; sem comer ninguém resiste. Paixões... que as leve o porco-sujo!... As mulheres é que ficam logradas, e eles não têm que perder!... Que eu, cá de mim, até ao presente, Deus louvado, não sei o que sejam paixões; mas quem tem cinqüenta e cinco anos de convento, tem muita experiência do que vê penar às outras doidivanas. E, para não ir mais longe, estas duas que daqui saíram têm pagado bem o seu tributo à asneira, Deus me perdoe, se peco. A organista tem já os seus quarenta bons, e ainda vai ao locutório derreter-se em finezas; a outra, apesar de ser mestra de noviças, à falta doutra que quisesse sê-lo, se eu lhe não andasse com o olho em cima, estragava-me as raparigas.