Romancistas Essenciais - Alexandre Herculano

Text
Aus der Reihe: Romancistas Essenciais #5
0
Kritiken
Leseprobe
Als gelesen kennzeichnen
Wie Sie das Buch nach dem Kauf lesen
Schriftart:Kleiner AaGrößer Aa

IV

––––––––


DOM BIBAS NÃO ERA BOBO; era o diabo.

Logo veremos porquê.

Convidámos o leitor para escutar a conversação travada entre Gonçalo Mendes, o abade beneditino e o mui reverendo cónego de Lamego, Martim Eicha. Pode ouvi-los agora. Embebidos no seu grave disputar, todos três se esqueceram completamente do lugar onde estavam, e do sarau, que depois do doudejar vívido e alegre ao redor deles esmorecia já e esfriava em paroxismo final. A noite correra sem que de tal dessem tino. Sobre o tumultuar dos passos, sobre o ruído do falar confuso, sobre as toadas dos instrumentos que afrouxam, ouve-se primeiro o vozear retumbante do Lidador; depois as palavras flautadas, escandidas, melifluamente hipócritas do capelão da infanta; e por último as falas brandas, tardas e suaves do beneditino. Esta gradação corresponde ao progresso de silêncio que principia a predominar na sala: é a medida do tédio que leva de vencida o deleite naquele ajuntamento lustroso.

— ... Eis aí - dizia o Lidador voltando-se para Martim Eicha - o que eu havia previsto; eis aí o resultado final do desenfreado orgulho do senhor de Trava, e dessa desgraçada afeição da rainha. Depois do folgar pacífico em jogos de tavolado e saraus oferecem-nos uma festa de sangue.

— Mas quem sabe se essas novas são verdadeiras? - interrompeu o abade, que parecia olhar duvidoso para o honrado cónego de Lamego.

— Sei-o eu! - replicou este com gesto de sobrecenho e de autoridade. - Ouvi-as do escudeiro que as trouxe - acrescentou com sorriso de mistério - disse-mo quem tão bem como ele o sabia, e acerca disso me perguntava: "Pois que faremos, D. Eicha?" É lástima: é na verdade lástima! Não me sofre o ânimo ver assim um moço ambicioso e louco desacatar com armas rebeldes sua mãe, sua senhora. Largo campo à cobiça de honra e domínios, se pretende ganhar nome e poder, se lhe abre em terras de infiéis. Se tem sede de sangue, derrame o sangue dos malditos ismaelitas, moabitas e agarenos. Os campos do Sul aí estão patentes à ambição dos ousados. Que vão devastar as searas dos Mouros, derribar as suas povoações e castelos, incendiar-lhes as mesquitas, onde diariamente se repetem as blasfémias, torpezas e imundícies do abominável Alcorão. Deus há-de puni-lo: o castigo é infalível, mas para isso a espada cristã encontrar-se-á no ar com a espada cristã, e a lança romperá a cervilheira assinalada com a cruz de Jesus Cristo.

O honrado cónego invectivava assim, todas as vezes que lhe caía a talho, contra os sectários de Mafamede, porque os conhecia de perto.

— Mas - acudiu o abade - se o infante traz esse número de cavaleiros e besteiros; se o mui poderoso arcebispo de Braga o favorece tão claramente; se os burgueses da Sé do Porto e os de Coimbra começam a agitar-se, como deixará a rainha de vir a concórdia com seu filho?

— É impossível - interrompeu Martim Eicha. - Ele pretende que o ilustre conde de Trava lhe entregue as honras e préstamos que tem da munificência real, e que saia destes paços. Não contente com isso, pretende também que sua mãe lhe ceda o supremo poder: invoca o exemplo de Afonso Raimundes e o direito de suceder a seu pai, sem se lembrar que jamais Henrique de Borgonha cingiria a coroa de conde se não houvera sido o esposo de uma filha de Afonso o Grande. Que herdou de feito o infante de seu pai? Um nome glorioso; mais nada. Portugal não é herança dos duques de Borgonha, mas dos filhos dos reis da Espanha, e D. Teresa é filha do último deles.

O Lidador sentiu subir-lhe às faces o rubor da cólera ao ouvir estas palavras.

— É falso - exclamou ele - que a alguém devesse o conde de Portugal os senhorios que deixou a Afonso Henriques: a Afonso Henriques, di-lo-ei sem receio! Se o rei leonês lhe disse: "Vai e hasteia o teu pendão de conde nas fronteiras do Ocidente", era que aos seus ouvidos tinham chegado os gemidos dos cavaleiros do conde Raimundo de Galiza, passados à espada pelos Sarracenos junto de Lisboa. Nunca depois disso, acaudelados por ele, voltaram costas aos infiéis os guerreiros da Cruz. Portugal era até aí um país devastado: era quase um deserto, por onde corriam à rédea solta os almogaures mouriscos; hoje os campos estão cultivados, os castelos seguros, os burgos e cidades renascem das suas ruínas. Respeitai as cinzas do nobre conde: respeitai-as ao menos diante de mim, que dele recebi as armas de cavaleiro, e que ainda combati entre os seus homens de armas. Não sei se vos lembrais disso?!

O Lidador talvez aludia à conquista de Lamego. Era acaso uma injúria que ele dirigia ao filho do váli e não uma pergunta. O certo é que Martim Eicha fitou os olhos no tecto, e depois volveu-os lentamente para o chão, como quem oferecia a Deus a afronta e se resignava nela. Gonçalo Mendes prosseguiu:

— Chamais ao infante rebelde contra sua mãe. Não, vos digo eu!, mil vezes não! Por largo tempo o mancebo generoso viveu nestes paços esquecido, desprezado, como um ínfimo homem de armas. O seu nome escrito nas cartas e doações, acima do nome do conde de Trava, era unicamente o que ainda recordava de quem ele era filho. Escárnio cruel na verdade; porque esse que aí se chamava infante de Portugal era obrigado a curvar a cabeça diante do senhor estranho. É a esse que ele vem arrancar o poder, porque o poder está em suas mãos. Credes que aprovo o feito? Não, por certo. Ante os barões e ricos-homens, na cúria, devera requerer seu direito. Mas perdeu-o acaso porque, esgotado o sofrimento com o excesso da opressão, respondeu à violência com o brado de guerra? Os senhores e infanções portugueses não o crêem. Se o cressem não o teriam escutado: não o seguiriam aqueles que ora o seguem.

O bom do capelão não se deu por vencido e com inflexível tenacidade replicou:

— A rainha D. Teresa domina em Portugal; o conde de Trava é um conde, um rico-homem, um alcaide; mais nada. Os barões portugueses juraram-lhe lealdade a ela, e é contra ela que se rebelam. Dizei-me vós, senhor cavaleiro, de quem tendes vossas honras, coutos e préstamos? De quem, como vós, os têm eles?

— A rainha é a viúva do conde Henrique. Não queirais obrigar-me a dizer-vos o que acerca dela tumultua nesta alma. Basta que responda à vossa pergunta. As honras que possuo herdei-as de meus avós; os préstamos ganhei-os à lança e à espada: foi preço de sangue o que dei por eles. Preito e lealdade? Ricos-homens de Portugal guardam-no a quem lhes guarda seus foros. Têm estes sido guardados? Sabemo-lo nós: sabe-o Deus. Ele será o nosso juiz.

— O juízo de Deus - tornou Martim Eicha com mal disfarçada raiva - profere-se em repto e combate, segundo foro dos bem-nascidos de Espanha. Porque não ides com os acostados que pelejam debaixo do vosso pendão, e vivem da vossa caldeira, ajuntar-vos com o infante? Afirmo-vos que entre ele e a filha de Afonso de Leão há repto e haverá combate. Tereis aí o juízo de Deus.

— Porque eu - atalhou o Lidador cravando nele os olhos indignados -, homem afeito à vida de batalhas, trabalharei até ao fim, para que irmãos não derramem sangue de irmãos em luta de mãe e de filho; porque eu, o homem que, ao abrir os olhos no mundo, a primeira luz que vi foi o reflexo brilhante de armas polidas, e que espero, ao cerrá-los para sempre, vê-las reluzir no volver derradeiro deles, tomei a meu cargo o vosso mister, o mister dos clérigos letrados da corte, dos homens de paz, dos prudentes, que saudais dia em que lanças cristãs topem em escudos de cristãos; que sorrides à imagem desse dia em que esperais ver satisfeitos ódios e vinganças mesquinhas. Tentarei frustrar o atroz pensamento dos maus, e se o meu tentar sair vão, ao menos a consciência há-de ficar-me tranquila.

O capelão, que sabia qual era o carácter violento de Gonçalo Mendes da Maia, julgou acertado não lhe responder: o abade, porém, que se havia conservado em silêncio durante a disputa, tomou nesse ponto a mão.

— Quanto a mim - disse ele -, não me perdoe o Senhor na hora extrema do passamento, se mentem minhas palavras. Sempre e em toda a parte clamei pela paz, e ainda hoje clamo por ela. Também eu como vós quisera que o infante na cúria dos barões requeresse direito; mas como vós também quisera que não lho negasse a rainha, posto que o demande armado. A tal façanha o incitou o orgulho do conde de Trava, e o generoso e nobre sangue que corre nas veias do nobre mancebo. Com a mão sobre o coração vos juro que me horroriza esta guerra desnatural. Mas como evitá-la? Como ousareis vós tentá-lo; vós, talvez o único rico-homem da corte de Guimarães que ousa ser francamente inimigo do conde de Trava?

— Tentá-lo-ei - replicou o Lidador - como leal cavaleiro. Antes que as novas da vinda de D. Afonso, para acometer sua mãe e seu mortal inimigo, houvessem corrido de boca em boca; antes que os mais íntimos conselheiros do nobre Fernando Peres - dizendo isto Gonçalo Mendes olhava para Martim Eicha - nos pudessem asseverar que o sangue se havia de verter, já eu o sabia: sabia-o porque esses valos alevantados à pressa em volta do burgo; essa couraça que os prende ao castelo; os engenhos postos a ponto nos eirados e torres, me diziam sobejamente que nos ameaçava guerra. Guerra de Sarracenos? Não vêm tão longe as suas arrancadas. Guerra do imperador? Não quebrámos até hoje nosso preito com ele. A causa do temor existia, pois, em Portugal. O infante não há três meses que saiu daqui, e já muitos castelos o receberam por senhor. Vi, soube e calei. Mas a cúria dos barões e ricos-homens da corte está convocada para se ajuntar amanhã. Lá, no meio dos que servem e temem, eu, que não temo nem sirvo, falarei bem alto. Mostrarei à rainha que se perde; que D. Afonso tem por si filhos de algo, bispos, burgueses e vilões de beetrias. Direi ao conde: "Nobre conde de Galiza, é necessário ceder ao infante de Portugal." Então, se não for escutado...

 

— Então?... - interrompeu Martim Eicha.

— Então aceitarei vossos conselhos. No campo do infante ainda cabem dez tendas para mais cem homens de armas, besteiros e fundibulários; ainda lá se pode soltar mais um pendão ao vento assolador das batalhas.

O abade ia de novo falar, pensando talvez como abrandaria a cólera que se acumulava no gesto carregado do Lidador. Mas uma risada que restrugiu por cima das cabeças dos três lhas fez involuntariamente erguer. A fronte de Gonçalo Mendes desenrugou-se repentinamente. Quase ao mesmo tempo ele e o abade soltaram uma gargalhada. Só Martim Eicha não ria.

Tinha razão sobeja.

No calor da disputa, nenhum dos três reparara em Dom Bibas, que se acercara da coluna junto da qual conversavam. O bobo aplicara por algum tempo o ouvido às palavras violentas do Lidador; mas o burburinho dos passos e do falar contínuo, dos sons retumbantes dos instrumentos naquela imensidão da sala o não deixavam perceber senão algumas vozes soltas que muito lhe excitavam a curiosidade. Rodeando o feixe de colunelos, que, segundo o gosto árabe, unidos só pela base e pelo cimo formavam a coluna ou pilastra em que vinham repousar os artesões do tecto, trepara manso e manso firmando-se nos lavores da pedra, e se assentara sobre as grandes folhas de lódão entressachadas de figuras extravagantes de centauros, harpias, demónios e górgonas, em que o arquitecto mostrara ceder às influências da arte normanda, que começava a expulsar a arquitectura sarracena dos edifícios de Espanha. Visto naquela altura, assentado no capitel, com os braços lançados sobre os pescoços de duas figuras horrendas, em que se assegurava, Dom Bibas pareceria também uma criação desvairada da mente do escultor, se, fitando os olhos brilhantes no reverendo cónego e fazendo-lhe uma visagem truanesca, não começasse a cantarolar com um acompanhamento de risadas estrondosas:

Quem me dera o meu infante

Nestes seus paços reais

Doravante! Tr a-lirá,

Ah, ah, ah! Ovençais

Do galego

Só i vejo a cada instante!

Arrenego, Dom Garcia

Desses teus aragoneses,

E também dos portugueses

Que te fazem companhia!

Capelão, Canzarrão,

Ao, ão, ão! Tr a -lir á,

Ah, ah, ah!

Vou fazer de um mouro ao filho

Um famoso arremedilho,

Mui de ver,

Em que a ti te hei-de meter,

Meu rapado, Descarado,

A comer

Um presunto

Com seu unto,

Apesar de São Mafoma,

E do velho lá de Roma

Que te toma

Por um santo,

O que és tanto

Quanto o demo que te leve

Como deve!

Tra lirá,

Ah, ah, ah!

Dom Bibas fez uma segunda visagem ao reverendo Martim Eicha, rodeou o capitel, e desceu rapidamente por entre os colunelos. Daí a pouco a sua voz esganiçada ouvia-se no outro extremo da sala de armas.

O inesperado da jogralidade do bufão tinha feito desatar a rir o Lidador e o abade. Não assim o honrado cónego de Lamego, a quem as alusões insolentes espalhadas naquela trova satírica haviam mortificado ao vivo. A cólera fugira da alma do cavaleiro; mas fora reconcentrar-se na do sacerdote. Nunca Dom Bibas ousara tanto: o fogo da revolta lavrava já no espírito de um vil bobo! O bom do capelão agarrou-se a este pensamento para cerrar os ouvidos à voz da consciência que lhe dizia terem batido no alvo os motejos cruéis do chocarreiro. Assim, com meneios entre hipócritas e altivos, afastou-se dos dois sem os saudar, e desapareceu no meio da turba dos cavaleiros, jurando pela pele a Dom Bibas, e prometendo relatar ao conde de Trava, nessa mesma noite se pudesse, todas as circunstâncias daquela conversação.

A hora, porém, a que o sarau devia acabar soou. A bela infanta estremeceu ao ouvi-la bater na campa da torre albarrã. Sentiu alargar-se a mão de ferro que lhe apertava o coração; a íntima agonia, que a política do conde lhe obrigava a velar sob o aspecto mentido do contentamento, poderia afinal dilatar-se na soledade em torrentes de lágrimas. Encostada ao braço de Fernando Peres, e seguida das suas donzelas, D. Teresa atravessou os aposentos imediatos e recolheu-se à sua câmara. Os ricos-homens e filhos de algo começaram a sair, e pouco a pouco a sala ficou deserta. Apenas um cavaleiro com os braços cruzados e encostado a uma das colunas imediatas ao estrado das donzelas, imóvel, e com os olhos cravados na colgadura da porta por onde D. Teresa saíra, parecia entregue a profunda meditação. Uma voz veio tirá-lo daquele torpor: era a de Dom Bibas, que, repotreado na cadeira da rainha, olhava para ele fito, e lhe salmeava em tom soturno, pela solfa do canto gregoriano, bastas injúrias:

Fora, parvo aragonês.

Dom bulrão.

Tlão, tlão, tlão!

Vai tratar de teus amores

No Aragão.

Tlão, tlão, tlão!

As donzelas portuguesas

Lindas são.

Tlão, tlão, tlão!

E por isso haver quer uma

Dom bulrão.

Tlão, tlão, tlão! ADulce é bela donzela;

Mas flor d'aleli Não é para ti. Kirieleison.

Kirieleison.

Requiem ceternam dona eis

Et lux luceat eis.

O cavaleiro pôs-se a ouvi-lo sorrindo; mas aqueles derradeiros fragmentos das preces pelos extintos, entoados lugubremente e reboando no aposento sonoro, assemelhavam-se-lhe aos ecos das orações por finado repercutidas por abóbada de igreja em trintário cerrado. Sentiu correr-lhe os membros um calefrio - não de temor, porque não o conhecia o seu coração; mas de terror - desse religioso terror que na crédula Idade Média, às vezes, e por mil motivos vãos, vergava os ânimos mais esforçados. Era singular o efeito que nele produzia a voz roufenha de Dom Bibas; mas é certo que essa voz despertava na sua alma lembranças de morte e uma indizível tristeza. Revoou-lhe então lá dentro o pensamento de que no cantar do truão havia o que quer que fosse fatídico, e no seu olhar brilhante o que quer que fosse diabólico. Sentia baterem-lhe com força as artérias frontais, e sussurrar-lhe nos ouvidos um zumbido intolerável. Esqueceu-se de quem era o homem que assim se assentara na cadeira real, para dali lhe repartir as últimas injúrias que naquela noite distribuíra com mão larga. A imaginação lhe transformou o gesto jovial do bobo no aspecto tétrico de um enliçador, e o seu cantarolar ridículo nos acentos sinistros de uma velha estriga. Esta espécie de delírio em que havia caído Garcia Bermudes - era ele o cavaleiro - o obrigou a sair precipitadamente da vasta e já mal alumiada sala, e a descer ao pátio interior, sem olhar para trás, sem encarar o bobo, cujo canto soturno findou numa destas gargalhadas, que não parecem vir da alma, e que contristam, porque, naquele que as solta, revelam alienação mental.

Garcia Bermudes parou: o pátio estava deserto: um cavalariço estirado a um canto dormia profundamente, com as rédeas da mula possante enfiadas no braço. O frescor da noite e a serenidade do céu cintilante de estrelas acalmaram o ânimo agitado do cavaleiro; mas o pulso batia-lhe violento e febril. O extravagante pesadelo de homem acordado, que tivera, não procedera do bobo: procedera do lance doloroso por que pouco antes passara. No meio do sarau, na ebriedade da festa, ele ousara finalmente o que até aí não havia ousado. Tudo quanto uma paixão sincera tinha veemente, enérgico, tempestuoso, tudo dissera a Dulce: esse amor, que com tanta arte ela soubera conter nos limites de mistério, deixara de o ser. Mas aquela alma, que parecia tão meiga, tão branda, tão fácil a todos os contentamentos, a todos os afectos, achou-a ele indomável e esquiva a tanto amor. Esta repulsa esmagara o coração de Garcia Bermudes e a sua imaginação delirou. O raio fulminara o cedro: que muito era que ele balouçasse pendido?

O cavalariço despertou, gemendo, a um rijo pontapé do cavaleiro. Este montou de salto na mula, cravando-lhe os acicates no ventre, galgou pelo portal da torre albarrã, e, correndo ao longo da couraça, sem saber como, achou-se à porta da sua pousada, no bairro coutado e honrado do burgo. No meio de desesperação profunda, uma luz ténue lhe bruxuleava na alma. Dulce prometera explicar-lhe o motivo por que refucava tanto amor. Esta revelação seria feita no dia imediato. A hora aprazada fora a do pôr do Sol; o lugar, a galilé contígua à sala de armas, que dava sobre os adarves

do norte, e que a esse tempo devia estar erma. Era uma noite e um dia eternos, que tinha de viver entretanto; mas a esperança mais débil arrosta com a eternidade, e bem que frouxamente o cavaleiro esperava ainda, posto que não ousasse dizê-lo a si mesmo, e talvez nem sequer o cresse.

Daí a pouco tudo parecia dormir no castelo e no burgo. Não era assim: neste velava Garcia Bermudes; naquele o conde Fernando de Trava, a bela infanta e Dulce. Eram quatro agonias, tremendas todas; mas todas elas diferentes.

A variedade é o que mais ama na vida o coração humano. A Providência não se esqueceu de conceder-lhe em grau infinito a variedade na dor.

V

––––––––


O CÉU ORIENTAL COMEÇAVA a dourar-se com os primeiros raios de sol que surgiam na vermelhidão da madrugada. Alumiando com serena e ainda frouxa claridade o burgo assentado na baixa, iam reflectir-se trémulos no orvalho pendurado nas folhinhas da relva pelas veigas circunvizinhas; e batendo de soslaio nas muralhas e torres do castelo tingiam as pedras alvas e lisas de cor pálida. Era um alvorecer de manhã de estio no Minho, tão suave, tão poético e pinturesco, que talvez por isso aí colocaram os antigos pagãos o Letes, esse rio cujas águas faziam esquecer as penas e os deleites da vida. Esta virtude, porém, do clima, este deleite que se encontra no aspecto daquelas lindas paisagens, no murmurar dos arroios perenes, nas sombras dos arvoredos frondentes e na risonha verdura dos prados, não tinha podido fazer esquecer ao conde de Trava os riscos da sua situação. Atormentado pelos receios do desfecho da luta em que lhe era forçoso entrar, tinha-se revolvido toda a noite no seu leito, sem poder dormir, ora arrependendo-se de haver tratado tão duramente o moço Afonso Henriques, ora fervendo-lhe na alma desejos de vingança atroz contra o mancebo e contra os barões de Portugal, que sucessivamente se declaravam pelo bando do infante. A ideia de se ver cercado em Guimarães por aquele mesmo a quem meses antes fazia esgotar até às fezes o cálix da humilhação acendia-lhe o orgulho e a cólera a ponto indizível. Então punha-se a calcular as probabilidades de uma batalha cam-pal. Tinha consigo mil lanças entre cavaleiros de Galiza e de Aragão: muitos ricos-homens de Portugal parecia conservarem-se fiéis, não a ele, mas a D. Teresa; e os borgonheses, companheiros do conde Henrique, educados nas ideias da absoluta lealdade, e investidos pela maior parte em tenências de terras e em alcaidarias de castelos, davam-lhe toda a certeza de que não abandonariam aquela de quem as tinham recebido.

Com estes elementos diversos ele podia ir em arrancada contra a hoste de D. Afonso, superior talvez em peonagem e besteiros, mas assaz inferior à sua em homens de armas. Se, porém, os barões portugueses que ainda se não haviam declarado contra a rainha a abandonassem, a vitória não seria tão fácil de obter: e posto que o conde tentasse minguar o valor e perícia dos cavaleiros de aquém-Minho para se esforçar a si próprio, a lembrança de que um tal acontecimento seria possível era, entre todas as que o assaltavam, a mais importuna, e a que principalmente não o deixara repousar durante as curtas horas de uma noite de Junho, a qual para ele fora uma das mais longas da sua vida.

Assim, apenas a luz duvidosa da aurora raiava no oriente, já a ponte levadiça do Castelo de Guimarães descia à voz impaciente de Fernando Peres, montado no seu ginete andaluz. Os atalaias viram-no sumir entre a casaria do burgo, e daí a pouco tornar a aparecer além dos valos alevantados à roda da povoação. Acompanhava-o já outro cavaleiro, cujas feições a escassa luz da madrugada não deixava bem divisar, mas que alguns dos esculcas apostavam ser Garcia Bermudes, o íntimo amigo do conde; o único homem que sabia moderar o seu carácter violento e altivo e que parecia senhor de todos os segredos daquela alma dissimulada e ambiciosa. Fosse quem fosse o cavaleiro, o conde rodeou com ele os valos e, passando perto outra vez do castelo, os dois se embrenharam numa selva profunda, que se estendia a pouca distância deste para a parte do norte.

 

O cavaleiro era de feito o valido de Fernando Peres. A amizade dos dois se travara e crescera na Palestina. Garcia salvara o conde em certo recontro no qual o filho de Pedro Froilaz, a pé e coberto de feridas, mal se defendia já com um troço de espada partida, da multidão dos sarracenos, que o cercavam. Desde então, companheiros de perigos e deleites, nunca mais se haviam separado. Era uma destas fraternidades de armas de que os tempos bárbaros nos oferecem tantos exemplos, porque ainda então existia a individualidade do homem de guerra, hoje completamente anulada pelo valor fictício a que chamamos disciplina.

Ao passar pelo burgo, o conde avistara o cavaleiro, de cujos olhos também fugira nessa noite o sono, posto que por bem diverso motivo. Pela primeira vez Fernando Peres de Trava desejou esconder ao seu amigo os pensamentos que lhe vagueavam no espírito. Todos eles se resolviam num sentimento único - o temor. Envergonhava-se de si mesmo, e não ousava confessar a fraqueza do seu coração àquele cujas faces nunca vira demudadas no meio dos maiores riscos. Procurando dar ao semblante carregado uma expressão de alegria, bradou de longe ao cavaleiro, que, embebido em cismar profundo, nem sequer sentira o tropear do ginete:

— Madrugador sois, Garcia Bermudes. Já vejo que ainda vos lembram as alvoradas de ultramar.

Garcia sofreou a mula de corpo em que ia montado, e volveu para trás os olhos. No seu gesto estava impressa a mais profunda melancolia.

O conde esporeou o ginete até emparelhar com o cavaleiro, e estendeu a mão para ele. Garcia Bermudes apertou-a na sua, e Fernando Peres sentiu que esta estava trémula e febril.

— À fé que mal te foi a noite passada: a tua mão é ardente; tens no rosto pintado o padecimento.

— Verdade é, nobre conde - respondeu tristemente o cavaleiro -; duas noites semelhantes à que passei, e estes cabelos estarão brancos, e este braço vergará como o de um velho ao sopesar a lança.

— Mas porque assim padecendo te diriges para a campina, húmida com o rocio da noite, quando talvez pudesses repousar agora no sono da madrugada?

— É porque busco o ar e a luz do céu como um refrigério; é porque sinto cá dentro um fogo que me devora, e preciso de respirar livre na solidão.

O conde viu duas lágrimas bailarem sob as pálpebras do cavaleiro. Parou espantado. Era inaudito, monstruoso, impossível o que via. Nunca a dor de feridas, a sede nos desertos, a fome nos castelos sitiados, e até a morte de amigos queridos no campo de batalha lhas haviam arrancado. Ocorreu-lhe então um pensamento súbito, porque Fernando Peres era hábil em conhecer os afectos humanos. Parou, e, cravando a vista de lince no rosto de Garcia Bermudes, disse-lhe no tom firme e positivo de quem descobrira um segredo:

— Garcia, tu és infeliz pelo amor!

O cavaleiro corou levemente e, com a voz afogada, respondeu:

— É verdade!

O conde sabia que ele amava Dulce: toda a corte o sabia. Fernando Peres folgava com a ideia de prender por laços mais fortes que os da amizade aquele esforçado homem de guerra à fortuna de D. Teresa e à sua. Dulce seria disso um penhor, e a afeição particular que ela mostrava ao cavaleiro persuadira o conde e a infanta de que os seus intentos e desejos seriam brevemente cumpridos. A tristeza de Garcia, a que não achava outra razão possível depois de um sarau a que tinham assistido tantos cavaleiros mancebos e gentis-homens, lhe fez crer que entre os dois amantes se alevantara alguma destas procelas com que o suão mirrador do ciúme costuma entenebrecer às vezes o céu risonho desta quadra da vida tão bela e tão passageira. A resposta de Garcia o confirmou nesta ideia.

— Dulce traiu-te, pois? - prosseguiu o conde sem tirar dele os olhos.

— Não - replicou o cavaleiro -, porque nunca fui amado por ela!

Estas palavras eram uma fria e morta expressão, como para representar paixões violentas o é sempre a linguagem dos homens; e todavia no acento com que haviam sido proferidas revelava-se bem o martírio atroz do orgulho ofendido e do amor desprezado que ralava o coração de Garcia.

— Nunca!? - interrompeu Fernando Peres. - Cria eu contrário: tinha talvez razão para o crer. Se, porém, não é Dulce a dama dos teus afectos, ousarei eu perguntar a Garcia Bermudes o nome da sua amada e a causa do seu padecer?

No tom destas palavras havia o que quer que era de ironia e mot ej o.

— Conde de Trava - replicou o cavaleiro -, só disse que jamais fui amado por Dulce: não que eu não a amava. Nunca o encobri a ninguém, e vós sabeis que muitos segredos meus, que todos ignoram, nunca de vós os escondi.

O modo sentido e de amarga repreensão com que Garcia respondera fizeram conhecer a Fernando Peres que a ferida aberta naquele coração era dolorosa e profunda. Então, estendendo de novo para ele o braço, disse-lhe sorrindo:

— Vamos: falemos sério e perdoa o meu gracejar. Se amas Dulce, ela será tua. Cóleras de amantes passam como a nuvem varrida do norte; e que não fosse assim, seria eu o tufão que a afugentasse. Sabes que Dulce é a filha adoptiva da rainha. Será tua esposa a um aceno do conde de Trava; e não é o conde de Trava o teu mais verdadeiro amigo? Oh, abre-me o teu coração!

E apertava entre as suas a mão do cavaleiro.

Garcia Bermudes alevantou para ele os olhos húmidos e tristes. Por algum tempo ficou em silêncio, e por fim exclamou:

— Não sabes o mal que me fizeste; não sabes o bem que ora me fazes! Sufocava-me o peso da minha agonia: deixá-la, enfim, dilatar-se!

Então, seguindo por meio da selva, narrou ao conde tudo o que se passara na véspera, e a larga história do seu desditoso amor, que o mundo cria retribuído e feliz. Aquela narração eloquente, como a paixão lha ensinava, chegou a comover o ânimo de Fernando Peres, que, distraído a princípio, escutara pacientemente essa larga confidência, com o único intuito de tornar mais íntimos pela gratidão os laços que prendiam à sua sorte um homem, de cujo esforço tanto carecia na dificultosa situação em que se achava.

E assim, apenas Garcia cessara de falar, o conde bradou - e desta vez as suas palavras vinham da alma:

— Cavaleiro, Dulce será tua mulher: juro-o pelas cinzas de meu pai!

Era o mais grave juramento de Fernando Peres. Poucas vezes o ouvira Garcia Bermudes jurar pelas cinzas de Pedro Froilaz.

— Dulce - prosseguiu o conde - é órfã e nobre: por foro de Portugal à sua mãe adoptiva, senhora dos préstamos de que ela é herdeira, pertence escolher aquele que há-de desposá-la. Tu serás o escolhido, e sê-lo-ás talvez hoje mesmo. Afirma-to o conde de Trava.

O cavaleiro ficou por largo espaço pensativo. Reflexões encontradas tumultuavam no seu espírito. Nestas eras civilizadas em que a ideia do amor é mais pura nos corações que o compreendem, nenhum ânimo generoso deixaria de recusar com horror esse meio violento de satisfazer seus desejos. Naqueles rudes tempos, porém, a generosidade e a delicadeza dos afectos morais era mais um instinto confuso que uma doutrina definida, gravada na alma pela educação e pelas crenças sociais. Era por isso que Garcia hesitava entre o íntimo aconselhar de uma nobre consciência e o cego desejo de paixão ardente. A tenuíssima esperança que ainda lhe restava fez triunfar, enfim, a sua natural generosidade.

— Não - disse ele -, não quero dever à obediência o que só quisera merecer pelo amor.

— Que importa? - interrompeu Fernando Peres. - Deixa, Garcia, aos trovadores essas afeições que se pagam de submissão e suspiros. Juramento feito pelas cinzas de meu pai nunca deixei de cumpri-lo. Poderia agora fazê-lo?