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A Revolução Portugueza: O 31 de Janeiro (Porto 1891)

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CAPITULO XII
«E as armas que nos foram entregues para defeza das instituições, voltal-as-hemos contra ellas»

Á reunião na casa da rua do Laranjal – casa habitada por um individuo da intimidade de Santos Cardoso – presidiu o alferes de caçadores 9, Simões Trindade, homem da absoluta confiança da classe e que com ella cooperava no movimento da revolta. Mas os sargentos presentes, não se contentando com o subscreverem individualmente a petição enviada de Lisboa, foram mais longe: approvaram a minuta d'um verdadeiro ultimatum, ameaçando o governo com a sedição caso elle não respeitasse a lei no tocante ás promoções. A ameaça continha entre outras esta phrase: «…e as armas que nos foram entregues para defeza das instituições voltal-as-hemos contra ellas».

O sargento-ajudante de infanteria 18 Arthur Ferreira de Castro, que tambem tomara parte na reunião, conseguiu obter copia do documento e entregou-o ao capitão do mesmo regimento Alexandre Sarsfield, que, por sua vez, o passou ao coronel Lencastre de Menezes. Estava denunciado o proposito dos sargentos e não tardou que o ministerio da guerra, tendo conhecimento minucioso do que se discutira na assembléa da rua do Laranjal e de posse de uma lista de officiaes inferiores que a ella tinham assistido, desatasse a transferir quantos se lhe affiguravam suspeitos de republicanismo.

Quer dizer: a traição do sargento-ajudante Arthur Ferreira de Castro não só revelou ao governo a existencia da conspiração como, provocando as immediatas represalias, contribuiu directamente para que os revolucionarios apressassem a sua sahida e a levassem a cabo em condições bastante tumultuarias. «Sem a denuncia do sargento Castro – affirma uma testemunha dos acontecimentos – os sargentos do Porto não se teriam precipitado e a revolta, que se daria um mez ou dois mais tarde, teria tido provavelmente um chefe militar, um estado maior bem mais numeroso, um plano mais intelligente e, seguramente, uma maior e mais vasta repercussão. Não seria, então, uma revolta: seria uma revolução, incendiando pelo menos metade do paiz e á qual era de presumir que a outra metade adherisse, dada a disposição geral dos espiritos para uma transformação politica, que um grande numero reputava indispensavel e que os outros acceitariam sem protesto. Assim, foi um homem, um homem só, obscuro, desconhecido, vindo do anonymato e da treva, que subverteu a obra da redempção do anno de 91, entravando a evolução politica da nação, fazendo parar com seus fracos pulsos a ideia que já se precipitava na gloria de um futuro talvez maravilhoso, mergulhando – quem sabe? – a bella Patria portugueza na desesperação de um incerto destino ou de um outro, porventura, funestamente irremediavel».

Ordenadas as transferencias de sargentos compromettidos no movimento, todos elles foram procurar Santos Cardoso e instaram energicamente para que se não addiasse por mais tempo a sua eclosão. Santos Cardoso entendeu-se com o dr. Alves da Veiga e este, convencendo-se de que não havia maneira de protelar a revolta embora inopportuna, tratou de, em curto espaço, ultimar os preparativos dando certa unidade aos elementos que, fora do Porto, o deviam secundar no momento decisivo. Santos Cardoso ainda tentou um derradeiro esforço junto dos sargentos mais exaltados, mas estes, vendo nas evasivas do director da Justiça Portugueza um receio injustificado, puzeram a questão n'estes termos: «Se no dia 30 de janeiro não resolverem fazer a revolução, sahiremos para a rua á frente dos soldados».

Não havia que hesitar. No dia 30, Santos Cardoso e o dr. Alves da Veiga decidiram o general reformado da arma de engenharia Correia da Silva a tomar a direcção do movimento, mas o general só acceitou o encargo «até ao momento em que algum official superior, em effectivo serviço, apparecesse a assumir o commando das tropas revoltadas ou ainda se os officiaes que se apresentassem á frente d'essas tropas concordassem em que fosse elle o chefe».

D'ahi a uma hora, effectuou-se uma reunião em casa d'uns parentes do general, na rua de Malmerendas, reunião para que foram convocados todos os officiaes adherentes e os individuos da classe civil destinados á execução do plano revolucionario. Á mesma hora realisava-se n'uma casa da rua da Alegria uma reunião de cerca de setenta sargentos e estes, receiando que o general Correia da Silva opinasse pelo addiamento da revolta, foram á rua de Malmerendas demovel-o d'esse proposito.

O general ouviu-os e, por fim, concordou-se em que o movimento rebentaria na madrugada. Faltava discutir o plano revolucionario. Para isso marcou-se nova reunião, ás 10 da noite, na rua de Santa Catharina. Talvez n'ella comparecesse maior numero de officiaes, visto que nem todos os compromettidos tinham recebido o respectivo aviso e a primeira reunião na rua de Malmerendas caracterisara-se pela falta de muitos d'esses elementos.

«Para aproveitar o tempo que decorria até se realisar essa reunião, entendera o general, bem como o dr. Alves da Veiga, que fossem procurados alguns officiaes de superior graduação, convidando-os a comparecer em casa d'um conhecido negociante do Porto. Esses officiaes eram o coronel, o tenente-coronel e um major de caçadores 9, que se recusaram a acceder ao convite. Lembrou-se, em vista da recusa d'estes, o nome d'outro official, que, sem ter uma graduação superior, era comtudo muito estimado entre os seus camaradas e gosava de um notavel prestigio entre os seus subordinados. Este alvitre, porém, não foi aceito; por consequencia, o general Correia da Silva ficaria, até ulterior resolução e dependendo isso das circumstancias occorrentes, com o commando em chefe das tropas revolucionarias».

Ás 10 da noite, na reunião da rua de Santa Catharina compareceram apenas o general, o dr. Alves da Veiga, Santos Cardoso, diversos civis, alguns sargentos, o capitão Leitão e um alferes da guarda fiscal. Os outros officiaes compromettidos não compareceram, ou, melhor, não foram convidados a comparecer. Durante alguns instantes, o general e o capitão Leitão discutiram o plano revolucionario. O primeiro entendia que as tropas deviam concentrar-se na praça da Batalha e tomar desde logo posse do quartel general, do governo civil e do telegrapho, cujos edificios estão reunidos n'aquelle local. O capitão Leitão desejava que a concentração se fizesse no campo de Santo Ovidio e contrariava a indicação do general, porque, dizia, os revolucionarios necessitavam antes de tudo vencer uma difficuldade: a da sahida do quartel do regimento de infantaria 18. A respectiva officialidade, quasi toda residindo dentro do edificio, fôra, decerto prevenida, do proposito dos sargentos pela denuncia do traidor Castro e trataria de oppôr-se a que elles sublevassem as praças. Por conseguinte, só com a presença dos outros corpos nas immediações do quartel é que infantaria 18 poderia, quebrando os laços da disciplina, cooperar na insurreição. Quanto ao quartel general, os revoltosos contavam que o sargento commandante da guarda o submetteria sem difficuldade.

O general Correia da Silva insistiu mais do que uma vez na superioridade do seu plano estrategico, mas Santos Cardoso, collocando-se ao lado do capitão Leitão, fez vingar a ideia de se effectuar a concentração das tropas no campo de Santo Ovidio. Assentou-se tambem em que alguns dos civis presentes procederiam á detenção das auctoridades governamentaes, mas com a condição de não exercerem sobre ellas a menor violencia, salvo se isso se tornasse absolutamente indispensavel ao bom exito da causa. Do mesmo modo se deveria proceder para com os officiaes que se não solidarisassem desde logo com o movimento. Por ultimo: o general Correia da Silva só seria chamado ao campo de Santo Ovidio, se depois das tropas ali concentradas não apparecessem a commandal-as officiaes d'uma certa graduação.

Dissolvida a reunião, o dr. Alves da Veiga e outros conjurados encaminharam-se para a loja maçonica o Gremio Independencia, d'onde deviam lançar as ordens necessarias para a execução do plano pouco antes delineado. A essa hora, no Porto, a noticia de que dentro em pouco rebentaria a revolta já se divulgara o bastante para que a maioria da população a não ignorasse. Mostra-o o depoimento do ex-tenente Coelho, consignado no livro que escreveu de collaboração com João Chagas. Vamos transcrevel-o, porque evidencia egualmente a precipitação com que, chegado o momento decisivo, se tocou a reunir nos arraiaes revolucionarios:

«Entrando o tenente Manuel Coelho, por um mero acaso, na noite de 30 no Café Central, que era então um verdadeiro foco de conspiração, veiu a saber que se preparava a revolução para a madrugada immediata de 31 em circumstancias que é conveniente registar. Depois de haver trocado algumas palavras com um seu camarada, tomou assento a uma das mezas do café. D'ahi a pouco acercou-se-lhe o dr. João Novaes, que lhe disse:

« – Já sabes que a revolução se projecta para a madrugada?

« – Não, respondeu-lhe; e até me surprehende muito a noticia, porque o capitão Leitão me viu no quartel e de nada me falou.

« – Pois toda a gente diz isso ahi á bocca cheia. Sabem-n'o todos, até mesmo a policia.

« – Não sei de nada, e quer-me parecer que, se a noticia tivesse algum fundamento, certamente eu teria sido procurado.

« – Tens razão, com effeito, replicou o dr. João Novaes; mas corre o boato com tal insistencia que me parece que elle tem fundamento. Mas eu vou já sabel-o; vou falar ao dr. Alves da Veiga.

«O dr. João Novaes sahiu. Pouco depois entravam no Café Central o tenente da cavallaria 6 Vaz Monteiro, destacado no Porto, e o tenente Margarido de cavallaria da guarda municipal. Aquelle veiu immediatamente sentar-se junto de Manuel Coelho, acercando-se de ambos este ultimo, que, logo depois de cumprimentar, disse:

« – Então sabes o que para ahi corre?.. Diz-se que n'esta madrugada se vae fazer uma revolução republicana.

 

« – Não ouvi ainda falar de tal.

«E a rir replicou:

« – Ah! que tu tambem estás compromettido!

« – Não, não sei de nada, podes crêr…

«E explicou que, se sabia a noticia, era por causa do impedido d'um official de infantaria 18 que o dissera no quartel a outras praças d'aquelle regimento. Passados momentos, entrava de novo o dr. João Novaes, que aproveitou o ensejo para dizer que, com effeito, estava plenamente confirmado o boato e que o dr. Alves da Veiga lhe affirmara que a revolução se iniciaria ás 3 horas da manhã, com a sahida dos corpos revoltados. Entretanto, iam conversando Manoel Coelho e os tenentes Vaz Monteiro e Margarido, em assumpto differente d'aquelle que primeiro abordaram.

«Eram já dez e meia da noite e os freguezes do café começavam a rarear. Preparava-se Manuel Coelho para sahir, quando notou que, do guarda-vento envidraçado do café, um individuo, que apenas havia entrevisto, uma por outra vez, falar com o capitão Leitão, lhe fazia signal de querer transmittir-lhe qualquer communicação. Approximou-se d'esse individuo, que lhe disse:

« – O sr. capitão Leitão manda-me aqui para dizer a V. que deseja falar-lhe.

« – A mim? Sabe quem sou?

« – É o sr. tenente Coelho, não é verdade?

« – Com effeito. E onde está o sr. capitão Leitão?

« – No Gremio Independencia. Se o consente, acompanho-o.

«Seguiram os dois. As ruas estavam inundadas e a chuva persistente fazia caminhar rapidamente. Emfim, chegaram á rua Fernandes Thomaz, esquina da rua de Santa Catharina, tendo atravessado por uma das ruas lateraes do mercado do Bolhão. Subiram a longa escadaria do edificio onde estava installado o Gremio Independencia e penetraram n'uma sala do segundo andar, onde estava reunido um grande numero de individuos. Eram os irmãos d'esse gremio, que tinham sido convocados pelo dr. Alves da Veiga, com o fim de encobrir a concorrencia áquella casa, de outras pessoas estranhas á associação.

«Á volta do bilhar, jogando, andavam dois homens, um dos quaes era o capitão Leitão, trajando á paisana: grosso jaquetão de pelles, calça clara unida á perna e chapéo desabado. No nariz, a sua luneta de vidros escuros, que elle usava, mais que por outro motivo, pela necessidade de occultar a fixidez do olho direito immobilisado, quasi completamente, pela paralysia dos musculos da face. Muito embaraçado, olhou em redor e disse:

« – O dr. Alves da Veiga está lá em baixo; vamos falar-lhe.

«Depôz o taco e desceram ao primeiro andar. N'um pequeno gabinete interior, cuja forma se approximava do symbolico triangulo, encontravam-se, cada um sentado á sua meza, Santos Cardoso e o dr. Alves da Veiga. Em pé, e como esperando ordens, estava um homem ainda novo, pequeno bigode, quasi um buço sombreando-lhe o labio, grandes olhos vivos que pareciam prestes a sahir das orbitas, estatura menos que meã, largos hombros, busto amplo, poisando em pernas robustas; era Annibal Cunha, então cabo de infantaria 18, estudante da Escola Polytechnica. O dr. Alves da Veiga estava com um lapis pondo signaes em frente dos nomes registados no Almanach Commercial e designados sob a rubrica — Regimento de infantaria n.º 10.

« – É certo, perguntou Manuel Coelho, o que por ahi corre, da projectada revolução para esta madrugada?

«Sim, era certo; não tinha podido ser de outro modo. Santos Cardoso, do lado, affirmou com superioridade:

« – Estou a fazer os avisos.

«Com effeito, em cartões de visita, com o seu nome, escrevia — pede a V. para comparecer ás 3 da madrugada no campo da Regeneração. E mettia depois esses cartões em envelopes nos quaes escrevia o nome d'um official, entregando-os a Annibal Cunha.

«O tenente Manuel Coelho retirou-se preoccupado. As circumstancias não eram de natureza a fazer-lhe acreditar n'um triumpho. Todavia, era forçoso acceitar os factos como elles se apresentavam. Era tarde para discutir e inopportuno desobedecer».

Emquanto no Gremio Independencia se passava isto que acabamos de transcrever, varios republicanos em destaque, reunidos n'um gabinete do Café Suisso, preparavam o manifesto que desde o inicio da revolta seria lançado: Aos camaradas do Norte e Sul de Portugal; aos cidadãos do Porto; aos cidadãos portuguezes! Esse manifesto, composto e impresso na typographia da Republica Portugueza– e cujos exemplares foram destruidos ao ser um facto a derrota dos insurrectos – principiava assim:

«A força militar do Porto acaba de dar por findo o reinado do sr. D. Carlos de Bragança. Proclamou a Republica. Não se trata d'uma simples, d'uma transitoria revolta. Foi uma revolução que se fez».

Expunha a seguir, a traços largos, a situação do paiz, situação aviltante, deshonrosa, receiante. Era um documento em que cada um dos convivas d'essa historica ceia no Café Suisso puzera a sua «nota pessoal, philosophica, ou anedoctica» e que surgira dos commentarios calorosos, apaixonados, sobre o resultado do movimento que não tardaria a rebentar.

Mas, emquanto os conspiradores davam a ultima demão aos preparativos da revolta, as auctoridades civis e militares tomavam conhecimento d'uma parte do plano concebido e concertavam os meios de o inutilisar. Ás 7 da noite de 30, um amigo do governador civil, Joaquim Taibner de Moraes, tendo ouvido a dois sargentos que infantaria 18 se insurreccionaria na madrugada de 31 «por causa da transferencia d'um sargento ajudante», foi avisal-o do caso e aquella auctoridade dirigiu-se immediatamente ao quartel do Carmo, a prevenir o commandante da guarda municipal.

A conferencia foi rapida. N'ella ficou assente que o commandante da guarda concentraria, sem grande apparato, toda a força de que pudesse dispôr e que mandaria vigiar de perto os outros quarteis militares dados como suspeitos. Combinado isto, o governador civil e o commisario da policia procuraram o commandante interino da divisão – o general Scarnichia marchara pouco antes para Lisboa – e esse commandante foi, em pessoa, ao quartel de infantaria 18, onde, em face das suas ordens, todos os officiaes passaram a exercer a maior vigilancia nas respectivas companhias, «aguardando o que de anormal se preparava».

Por outras palavras: á meia noite de 30, as auctoridades civis e militares do Porto sabiam perfeitamente o que estava planeado e repousavam descançadas, suppondo ter providenciado de modo a impedir qualquer tentativa de sedição. Comtudo é curioso registar que essas providencias se haviam limitado á policia civil, á guarda municipal e ao regimento de infantaria 18 e que aos commandantes de infantaria 10 e caçadores 9 nada fôra communicado ou transmittido que lhes revelasse officialmente o proposito dos revolucionarios.

CAPITULO XIII
Vinte annos apoz a derrota…

A manhã do dia 30 surgira nevoenta, tristonha, açoitada pelo vento agreste do inverno. D'ahi até a noite alta, a chuva cahiu a espaços inundando a cidade e afastando das ruas do Porto a massa de transeuntes. João Chagas, encurralado na cadeia da Relação, recebera á tarde a visita de Alves da Veiga, que sombrio e preoccupado lhe dissera, falando do movimento prestes a rebentar:

– Vae ser desastroso…

– Evite.

– É tarde…

Ao começo da noite, os soldados de guarda á cadeia e que estavam no segredo da conspiração foram despedir-se de João Chagas:

– Vimos dizer-lhe adeus… até logo.

– Até logo.

Que se passou depois? Fala o brilhante jornalista, confiando ao auctor d'esta narrativa as suas impressões da madrugada tragica:

«Já decorreram vinte annos sobre a derrota… Na vespera á noite, assim que a treva obscureceu o ambiente, começaram para mim horas inquietas e perturbadas. Sabia que a insurreição devia rebentar ás tres da madrugada. Tirei o relogio do bolso. Eram oito horas. Distrahi-me em coisas futeis, bebi café e fumei como um desesperado. Ainda, como distracção e talvez para surprehender mais facilmente o primeiro rumor d'essa arrancada decidida contra a monarchia, abri a janella. A noite, humida, afogava a cidade. Houve um instante, já quando se approximava a hora marcada para o rebentar do movimento, que suppuz aperceber o barulho de carros á desfilada…

«Ás duas e meia, gelado pelo frio, comprehendi que se fazia um silencio magestoso, o silencio do somno pesado. Mas d'ahi a pouco levantou-se um clamor enorme e distingui gritos, brados, vivas, vozes confusas, retinir d'armas. Depois, uns minutos de treguas, minutos terriveis de anciedade e, perto de mim, o passo cadenciado d'uma força militar… Eu, que não resava, fiz in mente uma grande e ferverosa prece por elles. A força não tardou a desapparecer e voltou a agitar-me a persuasão de que tudo recahira em tranquilidade absoluta. Os minutos escoaram-se dolorosissimos, augmentando a minha impaciencia, aguçando a minha ignorancia do que occorria. Cheguei a ter a impressão de que essa guarda-avançada dos insurrectos se submettia completamente e que a mesma noite que a vira nascer a veria sepultar. Horrivel e febril essa hesitação do meu espirito, sem outro horizonte que uma neblina glacial, torturante e a galhofa das sentinellas que vigiavam o meu carcere.

«A fadiga e a commoção prostraram-me. Exhausto, renunciei a saber, a indagar, a prescrutar. Tombei no leito, fechei os olhos e dormi. Quando despertei, era manhã clara. A nevoa dissipara-se e a cidade surgia cheia de luz. Corri á janella. O socego parecia completo. O dia annunciava-se lindo, calmo. Mas não tardou que um homem de quem me não lembro o nome, entrando na cella, me communicasse que a revolução estava na rua, e, seguindo-o e enfiando a cabeça por umas grades de ferro, presenciei effectivamente um dos episodios do combate. O movimento estava realmente no seu auge. A fuzilaria crescia de minuto para minuto. Convencido do triumpho, preparei-me para a sahida da cadeia… Não tardariam decerto a vir-me buscar.

«O resto é por demais sabido. Ao começo da tarde, a bandeira revolucionaria, que até então tremulara no edificio da Camara, desappareceu com o estrondear do canhão. Esse trapo, que era a minha esperança, sumira-se após um tiroteio pavoroso, encarniçado. Ao declinar do dia, tive a sensação da derrota. Sobre a cidade cahia verdadeira mortalha. Tornei de novo a estender-me no leito, dormi doze horas sem interrupção e, quando despertei, reconheci-me excellentes disposições para affrontar a tempestade que ia desencadear-se, impiedosamente, sobre a minha cabeça…»

Vejamos o que á mesma hora succedia em Coimbra, onde, como em Santarem e outras cidades do paiz, a organisação revolucionaria portuense contava um auxilio efficaz.

Resolvido que a sedição se iniciaria ás 3 da madrugada de 31, Alves da Veiga mandou a Coimbra Ricardo Severo com o encargo de communicar a Silvestre Falcão: «que estivessem todos a postos, mas que só sahissem em armas quando recebessem um telegramma em cifra, isto para evitar impulsos temerarios.» Ricardo Severo desempenhou-se cabalmente da missão e ás 10 da noite reuniam cerca de setenta rapazes na casa dos Arcos do Jardim, onde moravam, alem de Silvestre Falcão, Augusto Barreto, Guilherme Franqueira e Fernando Brederode.

Em primeiro logar, a assembleia nomeou um comité dirigente, que ficou constituido por Silvestre Falcão, Pires de Carvalho, Augusto Barreto, Barbosa de Andrade e Antonio José d'Almeida. Depois, Malva do Valle foi alugar o telegrapho, para se conservar até de manhã por conta do comité e operou-se a juncção do elemento academico com os outros revolucionarios de Coimbra, combinando-se por ultimo o seguinte:

Logo que Silvestre Falcão recebesse na Alta o telegramma cifrado de Alves da Veiga, dez ou doze estudantes desceriam a ladeira do Pio até á parte posterior do quartel de infantaria 23, onde receberiam as armas e as munições destinadas a armar os conspiradores. Em seguida todos elles atravessariam a cidade, descendo pelo Quebra-Costas e a rua Visconde da Luz até o quartel. Ahi bastaria uma manifestação ao regimento, que, á voz dos sargentos revoltados, viria para a rua em sedição. Removidos todos os obstaculos que, porventura, se apresentassem á execução do plano, os conspiradores iriam depôr a sua obra nas mãos de José Falcão, que, informado de tudo, horas antes, puzera o seu esforço ao serviço da Republica.

Um dos estudantes ainda lembrou a conveniencia de se destacarem grupos armados para junto das residencias dos officiaes do 23, a fim de lhes embargarem o passo, caso pretendessem sahir em direcção ao quartel, mas Silvestre Falcão ponderou que isso era perigoso e podia provocar uma série de assassinios e a assembleia revolucionaria decidiu «caminhar temerariamente, lançando o exito da empreza aos azares da guerra».

 

Até á manhã clara, os estudantes conservaram-se reunidos na Alta esperando o telegramma do dr. Alves da Veiga. Mas o telegramma não chegou e assim que todos elles adquiriram a convicção de que o movimento do Porto fôra mal succedido, dispersaram desalentados, ainda que dispostos, no intimo, a renovar mais tarde a audaciosa tentativa.

E muitos d'elles a renovaram com effeito. As datas de 28 de janeiro e 4 e 5 de outubro, trouxeram á evidencia uma boa porção dos nomes dos academicos conspiradores de 1891.