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A Revolução Portugueza: O 31 de Janeiro (Porto 1891)

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CAPITULO IX
O dr. Alves da Veiga assume a chefia civil do movimento

Comtudo, tornava-se necessario acceitar as adhesões que irrompiam cada vez mais numerosas e inflammadas e canalisal-as, dando-lhes orientação perfeitamente definida. João Chagas e a redacção da Republica Portugueza procuraram entender-se, para tal effeito, com o dr. Alves da Veiga, que ao tempo gosava no Porto da situação d'um chefe de partido e dividiram com elle as responsabilidades da conspiração. Até o momento, os republicanos do Porto tinham-se limitado, na espectativa dos acontecimentos, a agitar a opinião por meio da imprensa e dos clubs; o directorio do partido, presidido por Elias Garcia, procurára iniciar um movimento egualmente de caracter militar e delegára em Basilio Telles o encargo de o secundar na capital do Norte. No emtanto, como de todos os republicanos portuenses o dr. Alves da Veiga era o que dispunha de maior actividade organisadora, foi elle que desde logo assumiu a chefia civil da conspiração, continuando Basilio Telles a operar de concerto com o directorio, extranho em absoluto a esta primeira phase dos acontecimentos. E assim, em setembro de 1890, lançando mãos á obra, o illustre jurisconsulto preparou nas provincias do Norte diversos comités revolucionarios que deviam secundar, no ensejo propicio, a iniciativa do Porto.

Restava encontrar quem reunisse á sua volta, e os estimulasse, os elementos de lucta que se offereciam constantemente á redacção da Republica Portugueza. Lançou-se os olhos sobre a figura gigantesca de Santos Cardoso e o famoso director d'um semanario de combate – que se propunha «pôr as calvas a descoberto» – embora soffrendo d'uma reputação pouco cuidada, appareceu immediatamente como o homem de acção capaz de aggremiar os officiaes inferiores da guarnição do Porto que se entregavam á causa da revolta. E assim succedeu. A casa de Santos Cardoso passou a ser o centro da conspiração dos sargentos. Mas o director da Justiça Portugueza, não contente com isso, quiz ir mais longe. Principiou a dirigir-se a varios officiaes, solicitando a sua adhesão e a corresponder-se com o directorio, de quem recebia communicações e mais tarde lhe conferiu um voto de confiança.

Em 17 de setembro, deu-se no Porto a unica manifestação tumultuosa que precedeu na capital do Norte a revolta de 31 de janeiro. A sua iniciativa partiu d'um grupo de estudantes, entre os quaes se contavam Alberto de Oliveira e Eduardo Arttayette. Começou no café Suisso, na praça de D. Pedro. Pouco antes, tinham sido queimados á porta do estabelecimento varios jornaes do governo – como protesto contra a apresentação do tratado de 20 de agosto – e davam-se vivas á Patria e morras á Inglaterra, quando entrou no café o antigo republicano Felizardo de Lima. Resoou uma enthusiastica salva de palmas, o estudante Ernesto de Vasconcellos fez um discurso caloroso e alguem soltou este grito:

– Para a rua!

Os manifestantes sahiram em massa do estabelecimento e encaminharam-se para a rua dos Clerigos, tendo á frente, entre outros, João Chagas e o dr. Julio de Mattos. O cortejo comprehendia individuos de todas as classes sociaes e atroava os ares com vivas, morras e ruidosas salvas de palmas. Dos Clerigos, os manifestantes foram á Cordoaria. Depois, em frente da Relação, o estudante Eduardo de Sousa fez um discurso e o cortejo encaminhou-se para a rua das Taypas, produzindo novas e estrepitosas demonstrações deante do quartel de caçadores 9. Á porta e ás janellas do quartel appareceram muitas praças agitando os bonnets. Da rua das Taypas, os manifestantes dirigiram-se á rua do Triumpho, entoando a Marselheza e a Portugueza, então muito em voga. Em frente do quartel de infantaria 10 reproduziram-se os applausos ao exercito e o cortejo seguiu para a rua do Pombal, parando junto d'uma das casas d'essa rua a acclamar o dr. Alexandre Braga, pae do illustre causidico do mesmo nome. Alexandre Braga, assomando a uma janella, falou ao povo, affirmando-lhe estar orgulhoso por encontrar nos moradores do Porto a sua altiva e tradiccional energia.

A manifestação seguiu depois ao campo de Santo Ovidio, parando em varios pontos do percurso para ouvir improvisados oradores. Um d'elles disse:

– O Porto precisa provar que ainda não perdeu o segredo das revoluções.

No campo de Santo Ovidio, as demonstrações patrioticas attingiram o delirio. Alguns officiaes de infantaria 18 vieram até junto da multidão pedir-lhe cordura. A seguir, a manifestação desceu pela rua do Almada e, voltando á Cordoaria, passou pelo quartel da guarda municipal. Immediatamente sahiu d'ali uma força de cavallaria e, carregando sobre a multidão, que se refugiou no jardim, dispersou-a. Alguns individuos responderam á pedrada, houve gritos subversivos e na refrega um estudante ficou ferido nas costas. Reconcentrando-se, os manifestantes desceram á rua dos Clerigos e vieram para a praça de D. Pedro. Ahi, os soldados da guarda municipal, cravando as esporas nos cavallos, carregaram novamente sobre o povo, acutilando-o a torto e a direito, mettendo toda a gente debaixo das patas dos animaes, varrendo não só a praça mas as ruas circumvisinhas e ferindo e prostrando grande numero de pessoas. Os cafés do local foram logo fechados por ordem da policia. Muitos feridos receberam curativo no hospital da Misericordia. No dia immediato, a cidade reentrou no socego habitual; mas todos esses incidentes que acabamos de relatar foram a origem d'uma nova excitação que aggravou «a que já fundamente lavrava e havia de resolver-se no movimento de 31 de janeiro».

Entretanto, os trabalhos para a organisação do complot progrediam a olhos vistos. Os organisadores já contavam com o concurso de varios officiaes e porque alguns d'elles tinham apparecido nas redacções dos jornaes republicanos, decididos, pelo menos na apparencia, a contribuir para a derrocada da monarchia. E se é certo que no momento em que rebentou a revolta, apenas tres d'elles conseguiram justa evidencia, a verdade é que durante o periodo preparatorio da conspiração o numero de officiaes que n'elle intervieram contavam-se por dezenas. Cada corpo da guarnição do Porto, sem exclusão da guarda municipal, dava, pelo menos, um contingente de tres officiaes, cujos nomes circulavam entre os conspiradores e eram quasi do dominio publico. Os mais graduados eram capitães. Por outro lado, nas provincias, onde Alves da Veiga organisara comités civis e militares, estes garantiam-lhe a sua plena adhesão. O commandante d'uma das forças aquarteladas no Porto compromettia-se a adherir ao movimento «caso não recebesse ordem em contrario do quartel general». Santos Cardoso affirmava a todo o momento que o major Graça, da guarda municipal, e que mais tarde havia de desempenhar um papel decisivo na insurreição, mas para a suffocar, estava ao lado dos revoltosos.

Nos quarteis, entre os officiaes, era corrente que se conspirava. As noticias do facto transpiravam dia a dia e invadiam abertamente a opinião. Nos cafés do Porto não se falava n'outra cousa e os agitadores não se occultavam ao solicitar para a causa a adhesão de novos elementos. «Crescia-se em audacia. Todos suppunham e se convenciam que caminhavam realmente para um exito seguro». João Chagas, já na cadeia da Relação, a cumprir a sentença imposta por um delicto de imprensa, escrevia n'um artigo inserto na Republica Portugueza:

«Estou convencido a serio, porque pertenço ao grande numero dos indisciplinados republicanos que querem a Republica – de que uma revolução se fará dentro em breve, a mais nobre, a mais generosa, a mais sympathica de quantas revoluções tem tentado um povo offendido, em nome da sua dignidade e da sua honra.

«Quero-a, desejo-a, promovo-a e d'isso me ufano. Com a minha consciencia vivo na mais perfeita beatitude. Da minha intelligencia faço o uso mais nobre. Estou tranquillo por mim, porque pratico uma boa acção. Como convencional, fiz commigo proprio um pacto que vae desde a liberdade á morte. Ao serviço da minha causa puz todo o meu pensamento, todo o meu sentimento, toda a minha acção. Quero, pois, a Republica por vingança, por odio e por dignidade. Dias virão, cheios de alternativas, dias de orgulho, talvez dias de infortunio – quem sabe?

«É todo um mundo a fazer! É toda uma sociedade a reformar! Vivemos sobre lama. Os pés enterram-se-nos no solo. Quanto esforço, quanto trabalho, quanta coragem para consolidar o chão que nos foge!.. Pois bem! Batidos, vencidos, eu, nós, os meus companheiros de combate, recomeçaremos em qualquer ponto onde estejamos, aqui ou na terra estrangeira, dando o nosso sacrificio pessoal, entregando a nossa felicidade, a nossa vida á causa da patria e da liberdade. A opinião e a historia condemnarão os que prevaricarem e, se algum de nós os julgar um dia, dirá inexoravelmente como Manoel falando do rei de França: «Um traidor de menos, não é um homem de menos».

As idéas de revolta inflamavam todos os corações. «Os estudantes das escolas do paiz que já se tinham offerecido ao governo para constituir um batalhão voluntario que fosse á Africa combater os inglezes e se tinham visto recusados, entravam resolutamente no vasto campo da rebellião. A mocidade academica de Coimbra, posta em contacto com os revolucionarios do Porto, aprestava-se a tomar parte na lucta em vesperas de travar-se. O grupo revolucionario academico – sessenta e tantos estudantes – organisara-se secretamente e reunia-se para exercicios de espingarda Kropatschek com o concurso dos sargentos de infantaria 23. Formavam-se novos clubs republicanos. Nos logares os mais publicos exhibiam-se opiniões revolucionarias. De toda a parte affluiam exhortações e incitamentos em telegrammas e em bilhetes postaes. Todos pediam que o movimento se iniciasse quanto antes. A impaciencia era flagrante e, mal contida, expressava-se nos menores actos dos conspiradores.

 

Alves da Veiga, tomando o pulso á agitação, ponderando os trabalhos até então realisados e reconhecendo que o movimento necessitava á sua frente d'um chefe militar prestigioso, abalançou-se a procurar esse official e conseguiu a promessa formal do general Sebastião Calheiros, então residente em Vianna do Castello. Resolvido o problema, obtida assim uma direcção certamente efficaz no instante da revolta, aquelle official poz-se a caminho de Lisboa, decidido a arranjar collaboradores, que o auxiliassem em semelhante empreza. O contacto do general Calheiros com varios dos elementos republicanos residentes na capital do paiz prejudicou o bom andamento das cousas revolucionarias… É tempo de descrever aos leitores, como esse facto, e outros que se lhe seguiram, entravaram o movimento, tirando-lhe ao mesmo passo o caracter d'uma acção conjuncta da democracia portugueza.

CAPITULO X
O Directorio recusa a sancção official á revolta

No mez de setembro de 1890, quando a redacção da Republica Portugueza já concentrava um numero bastante regular de sargentos conspiradores, o partido republicano soffreu uma dissidencia profunda. D'um lado ficou Elias Garcia, congregando á sua volta toda a parte conservadora do partido; do outro surgiu o tenente de caçadores Homem Christo, com todos os radicaes. «O conflicto devia ter solução no congresso annunciado para janeiro de 1891 e no qual os dois grupos travariam a batalha decisiva». Apesar da dissidencia, porém, os republicanos do Porto continuaram a entender-se com Elias Garcia, pois que este, como já tivemos ensejo de referir, tambem trabalhava na organisação d'um movimento de caracter militar e o seu delegado na capital do Norte, Basilio Telles, prestava rasoavel concurso á actividade de Alves da Veiga. Santos Cardoso, por seu lado, entrara na intimidade d'outros vultos em evidencia como Bernardino Pinheiro e Theophilo Braga.

Em dezembro, Homem Christo, que não via com bons olhos a chefatura de Elias Garcia e o contrariava em tudo que parecesse dimanar da sua resolução pessoal, procurou-o e fez-lhe sentir a inconveniencia do Directorio secundar a sargentada do Porto. «A revolta de sargentos, dizia elle a Elias Garcia, se vingar, vae ser funesta á disciplina do exercito; mas não vinga, porque lhe falta o elemento intelligente e de cohesão». Depois, logo a seguir, convidado por Jacintho Nunes, foi ao Porto «estudar a situação». No Porto, Homem Christo procurou Alves da Veiga e Rodrigues de Freitas, mas não lhes poude falar. Jacintho Nunes propoz-lhe então uma conversa com Santos Cardoso. Homem Christo recusou, porque odiava fundamente o director da Justiça Portugueza, mas depois consentiu em procural-o, para averiguar até que ponto eram authenticos os trabalhos revolucionarios. O encontro d'esses dois homens é assim relatado por João Chagas, que foi quem apresentou Homem Christo e Jacintho Nunes a Santos Cardoso:

«A entrevista não teve o menor effeito na obra que estava em via de realisar-se e passal-a-hiamos em claro se o facto de termos assistido a ella não nos permittisse formular uma impressão exacta da situação reciproca dos dois homens – Santos Cardoso e Homem Christo – n'esse curioso lance, mais tarde exposto e discutido nos tribunaes e na imprensa. Homem Christo entrou em casa de Santos Cardoso munido de todas as prevenções que o indispunham contra o director da Justiça Portugueza. Por seu turno, Santos Cardoso recebeu-o como a um inimigo.

«A memoria não nos soccorre de forma a podermos reproduzir, dez annos volvidos, os termos exactos d'essa conferencia; mas a impressão que nos deixou e que subsiste no nosso espirito é de que foi um acto sobre o qual pesou uma profunda e mal contida irritação. Santos Cardoso, com o seu ar fanfarrão de desafio e Homem Christo, com o seu duro e implacavel desdem, estavam destinados a não entender-se. E foi o que succedeu.

«Como o director da Justiça Portugueza, pallido, mas affectando serenidade, a cofiar largamente a sua vasta pera, entrasse de enumerar com aparato aquellas forças de todas as proveniencias, que já reputava solidamente ao serviço da revolução, Homem Christo entrou, por seu turno, de dar evidentes mostras de impaciencia, menos talvez porque estivesse ali o homem que elle detestava, senão porque n'esse homem detestado via o paisano a mover soldados, que de todo o tempo irritou o espirito dos militares profissionaes. Não era realmente irritante que aquelle adventicio, alheio a todo o saber e a todos os interesses militares, se permittisse a impertinencia de dar sentenças a um militar de profissão, sobre o que fossem regimentos, batalhões, companhias, officiaes, soldados, parecendo ter a pretenção de usurpar com o seu desplante a soberania dos chefes militares n'esse movimento feito por sargentos que elle já parecia commandar?

«Na sua cegueira, embriagado com o que suppunha já a sua obra e com o proprio ruido das suas palavras, Santos Cardoso não comprehendia até que ponto se tornava antipathico ao seu interlocutor. E proseguia inexgotavelmente, enunciando regimentos, guarnições, nomes de officiaes… Friamente, como quem se vinga, Homem Christo impoz á sua total ignorancia uma sabbatina cruel, reduziu-o a confessar-se em erro, em equivoco, em mentira. Santos Cardoso embrulhava-se, mettia os pés pelas mãos, já se agitava na sua cadeira, como procurando romper. É certo que, finda essa penosa entrevista, Homem Christo o tivesse maltratado, atirando-lhe ao rosto o epitheto de imbecil? Não o recordamos e não cremos que essa palavra tivesse sido pronunciada em termos d'elle a ouvir. Os dois homens despediram-se mesmo com cortezia. O que recordamos com precisão é que, já na rua, Homem Christo disse: «Vou ali falar com alguns rapazes» e que, poucas horas depois, como tornassemos a encontral-o, accrescentou: «Isto não está tão mau como eu pensava».

D'ahi a alguns dias, como houvesse no Porto apprehensões sobre o valor do apoio que o Directorio dispensava ao movimento, João Chagas foi incumbido de ir a Lisboa falar a Elias Garcia. Encontrou-o no Hotel Atlantico, mas o chefe republicano, cauteloso e previdente, não quiz desde logo sujeitar-se á conversa sobre tão melindroso assumpto e, rasgando em duas metades um cartão de visita, entregou-lhe uma d'ellas dizendo:

– Ás 8 horas, alguem lhe apparecerá com a outra metade d'este cartão. É pessoa de confiança. Pode seguil-a.

Ás 8, com effeito, um emissario discreto conduzia João Chagas ao Directorio, que estava reunido em casa de Bernardino Pinheiro e, uma vez junto d'esse democrata, de Elias Garcia, Theophilo Braga e Sousa Brandão, o director da Republica Portugueza constatou que nenhum d'esses homens hostilisava o movimento. Pelo contrario. A uma pergunta directa de João Chagas, o Directorio respondeu que trabalhava para secundar a revolta do Porto. E no fim, apoz animada conversa, ficou assente que o general Sousa Brandão iria pessoalmente ao Norte inteirar-se, de visu, da situação – o que fez, na realidade, encontrando-se ali com os mais importantes elementos da conjura.

Em principios de janeiro reuniu em Lisboa o congresso do partido e os amigos de Homem Christo triumpharam dos de Elias Garcia. O novo Directorio, dias depois de eleito, fez circular pelo paiz um vigoroso manifesto em que parecia dar alento aos revolucionarios, apontando-lhes como unico caminho a seguir, perante o descalabro da monarchia, a execução immediata do plano da conjura. «No estado actual da crise portugueza – dizia uma passagem do manifesto, que era acompanhado d'um novo programma partidario – só existe uma solução nacional, pratica e salvadora: a proclamação da Republica. Só assim acabarão os interesses egoistas que nos perturbam e vendem, só assim apparecerá uma geração nova capaz de civismo e de sacrificios pela Patria». Mas, quasi a seguir, o Directorio mostrou-se como que cheio de remorsos por haver expendido doutrina tão francamente revolucionaria e, dedicando-se a entravar os progressos, já inilludiveis, da conspiração do Porto, fez publicar em 25 de janeiro uma circular em que dizia sem disfarce:

«Prevenimos os nossos correligionarios para que abandonem ao seu isolamento egoista qualquer grupo perturbador que anteponha á magestade dos principios o fetichismo de personalidades e aos interesses da propaganda as vantagens dos lucros economicos».

E concluia:

«Aproveitamos este ensejo para lembrar ás dignas commissões a necessidade de se proceder aos trabalhos do recenseamento eleitoral; e, ao mesmo tempo, que todas as combinações importantes para a vida do Partido serão communicadas e estabelecidas por um enviado especial do Directorio, evitando assim as intervenções discricionarias de individualidades sem mandato, que enfraquecem toda a auctoridade».

A circular visava, como se comprehende, a tirar aos conspiradores do Porto «qualquer sombra de auctoridade official». E para que não restasse duvidas sobre a sua significação, no dia 27, os Debates publicavam um artigo de Homem Christo, intitulado Uma prevenção, em que se attribuia ao movimento o caracter d'uma pavorosa urdida pelo governo e se exclamava:

«Acautelem-se, pois, os republicanos com essas manobras. Revoluções fazem-se. Não se dizem, nem se apregoam. Quando se dizem e quando se apregoam, ou é desconchavo que faz rir, ou armadilha lançada aos ingenuos e simples do mundo. E como ha muito ingenuo e muito simples, sempre é preciso cuidado com taes armadilhas e artes de tratantes. Cautela, pois».

Homem Christo vingava-se de Santos Cardoso e outras personalidades implicadas no movimento, mas que lhe eram antipathicas, aggredindo-as por essa forma indirecta e pretendendo furar as probabilidades de exito que, porventura, caracterisassem o projecto de revolta. Antepunha á questão do partido uma questão de mero odio pessoal. E a esta sacrificava tudo, indo até á denuncia publica e formal do que se tramava na capital do Norte.

CAPITULO XI
A crise ministerial dos «vinte e sete dias»

Retrogrademos um pouco até á apresentação ao parlamento do tratado anglo-luso. Este documento, tendo sido publicado no Diario do Governo em fins de agosto de 1890, levantara, como já dissémos n'outro ponto, enorme grita de hostilidade. Os jornaes da opposição classificaram-n'o acto continuo de: «certidão de obito passada por um diplomata funebre a uma nação narcotisada por dois seculos de jesuitismo e de inquisição e esterilisada por pouco mais de meio seculo d'um constitucionalismo dissolvente e desmoralisador». Pela essencia do tratado, Portugal não podia alienar os seus territorios africanos sem previo consentimento da Inglaterra.

As associações mais importantes da capital pronunciaram-se altivamente contra a ratificação de semelhante «hypotheca feita á Grã-Bretanha». Convocaram-se comicios em diversas cidades do paiz, houve mesmo um no Porto presidido pelo africanista Alvaro de Castellões, em que os oradores, alguns monarchicos, tonitruaram contra o negociador do tratado, o sr. Barjona de Freitas; de modo que no dia em que o ministro Hintze Ribeiro se aprestou a ler o respectivo texto á camara dos deputados, a esquerda parlamentar acolheu as suas primeiras palavras com uma enorme pateada. A esta manifestação da esquerda corresponderam ligeiras manifestações das galerias e a maioria rompeu em invectivas contra a opposição, despedindo-lhe phrases como estas:

– Fóra pulhas!..

– Isso é indecente!.. é de canalhas!

A opposição recrudesceu na gritaria e o tumulto generalisou-se. Serpa Pinto, que era deputado governamental por Lisboa, subindo a uma coxia, interveiu, clamando com intimativa:

– Nem mais uma palavra aqui, nem mais um pio!

– O que? O que diz? perguntou-lhe o padre Alfredo Brandão.

Serpa Pinto replicou:

– Nem mais um pio, sou eu que o digo.

O reverendo agarrou então o heroe pelas orelhas, sujeitando-o nos seus dedos de ferro e a desordem tomou por momentos proporções inenarraveis. Restabelecida a calma, o tratado foi enviado ás commissões incumbidas de lhe dar parecer. Naufragara decisivamente por effeito do tumulto parlamentar.

Ao cahir da tarde, esse tumulto repercutiu-se, sangrento, nas ruas de Lisboa. O povo, que se agglomerara durante o dia no largo das Côrtes, encaminhou-se ao terminar a sessão para os lados da Esperança. A policia quiz dispersal-o e effectuou uma prisão que foi mal recebida pela grande massa. Tanto bastou para que os guardas cahissem á cutilada sobre os populares, travando-se lucta renhida, pois a multidão resistiu corajosamente á ferocidade dos janizaros. A policia, por fim, refugiou-se na esquadra de S. Bento, em frente das grades do largo das Côrtes e d'ali disparou os revolvers sobre o povo, ferindo alguns individuos e matando o operario fundidor Carlos Franco (Antonio Pardal). O cadaver do infeliz foi transportado á casa mortuaria da Misericordia e o povo acompanhou-o em cortejo dorido, convidando toda a gente que encontrava no percurso a descobrir-se ante o «martyr sacrificado ás iras governamentaes».

 

No dia seguinte declarava-se a crise ministerial. Por espaço de vinte e sete dias, a corôa recorreu a todos os expedientes afim de constituir o novo gabinete. Pretendia-se que o momento era azado para experimentar os politicos que não pertenciam á rotação constitucional. De Roma veiu a toda a pressa o sr. Martens Ferrão, mas nada conseguiu fazer. A situação era grave, confessavam-n'o os proprios jornaes monarchicos. «Estamos á mercê d'um movimento popular, que pode rebentar d'um instante para outro e porque a irritação publica augmenta a olhos vistos». Chegou-se a aventar a subida ao poder d'um ministerio de concentração, de que fizessem parte representantes do partido republicano. A propria imprensa democratica quasi que intimava os seus adeptos a tomarem conta das pastas vagas. No estrangeiro a Republica Portugueza annunciava-se para breve como um facto previsto, indiscutivel.

A 18 de setembro repetiram-se os conflictos populares. Apoz um incidente motivado pela policia, no largo de Camões, de dois garotitos inoffensivos, uma força da guarda municipal parou em frente do Café Martinho, onde abancavam estudantes, jornalistas, militares, deputados, gente, emfim de todas as classes, e sem previo aviso desfechou sobre aquella mole desarmada, causando um mixto de panico e de colerico assombro nas victimas de semelhante surpreza. Depois, a mesma força andou em correrias selvagens pela avenida da Liberdade e arterias proximas, espancando quem encontrava desprevenido. Quer dizer: apesar de demissionario o gabinete regenerador, os serventuarios do regimen recorriam ao emprego da brutalidade e da selvageria para aterrorisar o povo e impedir o mais ligeiro gesto de censura ao regimen.

Por fim, a crise ministerial foi resolvida com a constituição d'um gabinete extra-partidario da chefia do general João Chrysostomo e em que eram ministros: da guerra, o presidente do conselho; do reino, Antonio Candido; da justiça, Sá Brandão; da fazenda, Mello Gouveia; da marinha, Antonio Ennes; das obras publicas, Thomaz Ribeiro; dos estrangeiros, Barbosa du Bocage. Mas esta solução dada pela corôa á situação politica do momento não logrou aquietar os animos e as primeiras providencias decretadas pelo novo governo nada mais conseguiram do que intensificar os odios que o throno já concitára á sua volta, e no paiz inteiro.

Iniciaram-se perseguições á imprensa e, para dar satisfação ás reclamações inglezas sobre a rejeição do tratado de 20 de agosto, approvou-se um modus-vivendi, pelo qual Portugal concedia á Grã-Bretanha a liberdade de navegação no Chire e no Zambeze. Pela mesma época fundou-se a chamada Liga Liberal, partido em que preponderou o sr. Augusto Fuschini e que teve uma aura de sympathia, dadas as suas apparencias revolucionarias. Falhou quasi a seguir, porque não passava, afinal, d'uma liga de concentração de interesses conservadores. No emtanto, a agitação popular ia crescendo, crescendo sempre, a conspiração do Porto alargava mais e mais a importancia e o numero de adhesões e nos fins de dezembro de 1890 já se perguntava sem disfarce e em voz alta quando rebentava a revolta. A mocidade das escolas fremia de impaciencia e de indignação. Guerra Junqueiro publicara o seu Finis Patriæ e as estrophes da bella poesia resoavam a todos os ouvidos como notas vibrantes d'um canto guerreiro.

Em certa altura, Alves da Veiga apresentou-se em Lisboa e, ás advertencias do novo Directorio, que lhe fez sentir a inopportunidade do movimento em plena preparação effervescente, respondeu que da melhor vontade se esforçaria por addial-o, mas que tal empreza não era facil, porque a excitação dos elementos militares portuenses não admittia delongas. E, a comprovar-lhe a affirmativa, deu-se um facto que marcou por assim dizer a data da revolução, apressando-a, ou melhor, precipitando-a. Referimo-nos a uma reunião de sargentos da guarnição do Norte, effectuada a 24 de janeiro de 1891, n'uma casa da rua do Laranjal. Essa reunião foi provocada por um acto do ministro da guerra, que descontentou sobremaneira a classe. Os sargentos vinham desde muito reclamando, por intermedio do seu orgão especial, contra a forma de promoção; e as suas reclamações assumiram feição mais aggressiva, quando a ordem do exercito publicada em 17 de janeiro de 1891 inseriu a promoção ao posto de alferes de trez aspirantes, – promoção contraria á lei, visto que por ella deviam beneficiar dois aspirantes e um 1.º sargento.

O orgão da classe transpareceu logo esse descontentamento e um grupo de sargentos da guarnição do Porto divulgou um protesto em que se dizia com toda a clareza:

«Camaradas!

«Nós temos sido a pella de brinquedo dos governos nos ultimos tempos e o nosso bom nome clama com energia para que termine este ultrage. Ha pouco era um ministerio que, tendo-nos constantemente illudido com a promessa de augmento de vencimento, só quando foi invadido pelo terror da agonia é que se lembrou de que nós podiamos ser seu sustentaculo, e por isso tentou corromper-nos, sacudindo nas nossas faces as migalhas da toalha do orçamento. Agora é um gabinete presidido por um general, que nós ingenuamente consideravamos nosso protector, nosso amigo solicito e desvelado, que, tendo-nos promettido a escala de promoção por antiguidade do curso, se curva ante as exigencias de uma aggremiação politica em que militam muitos officiaes da arma scientifica, respondendo com despreso á nossa ardente… e jubilosa expectativa.

«Unamo-nos todos: que haja uma só voz, um só pensamento, uma só vontade! Só assim nos poderemos vingar impondo a nossa força e fazendo prevalecer os nossos direitos contra a perfidia dos nossos amigos. Desviemos os olhos d'este monturo pestilento, que exhala miasmas que nos asphyxiam e volvamol-os para a alvorada que desponta no horisonte social… Tomemos as armas nas mãos, e com fé e enthusiasmo saudemos o futuro, que elle minorará a nossa sorte ingrata.»

Ao mesmo passo, tres sargentos-ajudantes da guarnição de Lisboa redigiam e faziam imprimir a minuta d'uma petição que enviaram a todos os corpos de infantaria e caçadores, a fim de ser assignada individualmente pelos 1.os sargentos d'esses corpos e remettida ao parlamento. A petição solicitava que a promoção continuasse a ser regulada na razão de um terço das vacaturas que occorressem no posto de alferes.

Recebido no Porto esse documento, os sargentos da guarnição apressaram-se a reunir para o apreciar.