Os bastidores da verdade

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Os bastidores da verdade
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© Editora Gato-Bravo, 2020

Não é permitida a reprodução total ou parcial deste livro nem o seu registo em sistema informático, transmissão mediante qualquer forma, meio ou suporte, sem autorização prévia e por escrito dos proprietários do registo do copyright.

editor Marcel Lopes

coordenação editorial Paula Cajaty

revisão e adaptação Hanny Saraiva

projecto gráfico 54 Design

imagem da capa Shutterstock

Título

Os bastidores da verdade

Autor

Tobias G. Alte

isbn 978-989-8938-63-3

e-isbn 978-989-8938-64-0

1a edição: Junho, 2020

Depósito Legal: 471247/20

gato·bravo

rua Veloso Salgado, 15 A

1600-216 Lisboa, Portugal

tel. [+351] 308 803 682

editoragatobravo@gmail.com

editoragatobravo.pt

À minha mulher Rosa Farate

Sumário

Prefácio

Apresentação do autor

Prólogo

I. Quotidianos

II. Retalhos de Vidas

III. Vidas em retalhos

IV. Enigma

V. Desenlace

Epílogo

Prefácio

Sempre fomos fascinados pelos bastidores. Pelo que existe por detrás do espectáculo em que colectivamente participamos, seja ele no palco do teatro ou no palco da vida. Pela engrenagem que faz mover a máquina, a história por detrás da história. Essa ideia de bastidores – o local onde tudo se prepara, onde o espectáculo se forma – é a ideia de um local proibido, onde o truque se desconstrói, onde o mágico revela a essência do seu acto.

Por nos serem vedados, há esse desejo, quase voyeurístico, de saber o que acontece lá, nesse lugar escondido, por detrás das cortinas – de saber a origem do que aconteceu. É por isso que o título – “Os bastidores da verdade” – dificilmente poderia ser mais representativo do que nos é proposto nas páginas deste livro: descobrir a verdade através da análise do que se esconde na construção dela mesma. “Os bastidores da verdade” é, acima de tudo, uma história sobre a verdade: a verdade do que aconteceu, mas também a verdade do que somos, a verdade do que pensamos, sentimos, sonhamos.

É essa a proposta cativante, ambiciosa, de Tobias G. Alte – entrar nos bastidores da mente, compreender o que acontece atrás das cortinas do pensamento dizível – entrar no espelho, para, do outro lado, descobrir que a nossa mente é o segredo, tão bem guardado dentro de nós.

Escolher o policial como veículo para essa proposta não é por acaso: não há nada mais semiótico que o policial, porque o espectador é convidado a participar na descoberta, porque cada elemento é uma pista, uma possibilidade de decifrar o enigma. Assim, não espanta que Tobias G. Alte tenha escolhido esse género para encontrar a ponte elusiva entre a psicanálise e o thriller. Ao convidar-nos a entrar com ele nessa descoberta, nessa busca de pistas, convida-nos também a encontrar a simbiose entre a investigação de um crime e a investigação psicanalítica - ambas procuram o que acontece nos bastidores.

E, fiel às suas influências, de Rex Stout a Agatha Christie, Tobias G. Alte não se limita a propor-nos o desvendar de um grande mistério - ele também reflete sobre os mistérios dos seus personagens, das suas relações, dos seus segredos, das suas verdades. E, ao fazê-lo, reflete também sobre os nossos mistérios, as nossas verdades. De facto, munido de um entendimento profundo da psique humana, Tobias G. Alte não dá um passo em falso ao desvendar o mistério do que pensamos, ao espreitar para dentro dos nossos bastidores. Talvez seja aí que esta obra mais brilha – em oferecer um olhar para dentro de nós próprios, ao mesmo tempo que nos envolve num enigma, obrigando-nos a virar cada página em busca de respostas. É esse mistério dentro de um mistério que torna “Os bastidores da verdade” um livro ímpar, um livro onde vale a pena procurar pela verdade que mais nos fascina: a nossa.

— Pedro Farate, argumentista e cineasta

Apresentação do autor

Tobias Micael Guina Alte é o alter-ego literário de um médico e psicanalista pela sexta década da vida que decidiu dar alento a um “bichinho” escrevinhador intuído, como é mais ou menos da “praxe”, por alturas da adolescência, mas remetido à prateleira das ilusões úteis ao longo da (esforçada) adultícia.

No trabalho, depois do encontro com a investigação empírica, descobriu namoro enlaçado com a psicanálise, paixão de juventude. No amor, depois de namoros episódicos e acasalamentos desenlaçados, com dois conúbios à mistura, concretizou, finalmente, enlace marital amoroso e bem-aventurado, já há algum tempo pressentido, com escritora inspirada e poetisa talentosa, que influenciou tacitamente esta aventura.

Um filho legítimo que busca terçar talentos artísticos nos alvores da (mui resistida) adultícia e um enteado empenhado e disciplinado na ambição de ter sucesso. Também uma gata coquete de recente coabitação.

Família dispersa e amizades poucas, mas boas. Ego bem-doseado e libido bem-temperada, Tobias G. Alte, que ora se apresenta, inicia-se na escrita ficcional, na qual espera ter saída semelhante à do seu ego, sobretudo na escrita psicanalítica. E, talvez, quem sabe, passar de “candidato” a “iniciado” e de “iniciado” a “titular”?

Prólogo

Tratar vidas em desalinho é grande aforro com laivos de desaforo. Passeiam-se vielas esconsas, calcorreiam-se ruelas estreitas, percorrem-se avenidas, descobrem-se miradouros, tentam evitar-se becos sem saída. Viajam-se lugares desconhecidos em terra familiar e lugares familiares por terra desconhecida…

O mundo é, ao mesmo tempo, inóspito e anfitrião, o tempo é frio e habitado de calor, os dias alternam entre percursos corriqueiros por encontros inesperados e trajectos aventureiros por encontros adiados. As alegrias e as tristezas são o tempero de um alimento existencial que se banqueteia à entrada de portas sem saída e à volta de ancoradouros de chegada por saída. Alinham-se jeitos e trejeitos de dor e descoberta, receios de amor e certezas de desafecto, entre arremedos de esperança e impulsos de desalento, à beira da desistência. Propõem-se afazeres, arranjam-se temperanças e negoceiam-se ganhos e perdas em “lutos” de amores transviados e desesperanças de sonhos irrealizados.. Em cada dia espera-se a noite e a cada noite antecipa-se o dia… é sempre assim, a noite anterior e o dia seguinte. E o tempo é longo, à beira do desencanto, e curto, sempre muito curto, à espreita de um alento que desperte o desejo e inspire a alma. É um aqui-não-vai e ali-já-vem de curso contínuo e percurso variante em direcção (invariante) a destino incerto. Só a pouco e pouco se divisam figuras em fundo e se alumiam existências sombreadas em poses brumosas.

É um tempo infindável de desafios, alertas, sustos e relentos em que se entretecem esquecimentos e lembranças, sonhos e fadigas, cansaços e mudanças. Sim, os protestos de mudança… sempre renovados, depois adiados ou perdidos nas andanças de um tempo que flui sem sossego, às vezes por espaços esconsos que a esperança não visita e em que a vida pouco se detém. Momentos de chegada e de partida, de encontro e desencontros, de cafés, infusões, néctares e libações, entre copos, entre corpos, entre vidas. Amizades sem fulgor, namoros sem amor, inimizades sem causa ou razão, amores “em saldo” e sexo sem viço, ideias sem fluxo e ideais em refluxo. Percepções, emoções, sensações, impressões e dúvidas… muitas dúvidas sem pensamento que as sustentem da verdade certeira que poderia, enfim, solvê-las. E no fim, sempre provisório, o recomeço de um novo dia de amores e de desamores, de esperanças e de temores, de sonhos e de dissabores.

O princípio é fim e o fim é princípio num escoar dos dias inacessível aos destinos singulares dos seres que povoam a vida das cidades e as esquadrinham incansavelmente em hábitos de crepúsculo e fôlegos de vontade ausente… dia a dia, noite a noite, por entre sombras à espreita da luz, por dentro da vida ao alcance da morte … sempre!

I. Quotidianos

Tráficos de pouca vida, com morte à esquina

O dia amanheceu cinzento e abafado, quase lúgubre. Como se o céu tivesse coberto de tegumento pardo a paleta de cores estivais e as silhuetas fugazes que se vão encurtando e alongando, dobrando e desdobrando, sob o manto metálico opressivo de um dia pesado, tivessem perdido a tonicidade vivificante típica de uma manhã soalheira. E depois é o ar quente e húmido, quase irrespirável, da tarde interminável deste dia agoirento que cobre o corpo suado de Bruno de um manto gorduroso perlado de gotículas de um líquido seboso e repelente. Ainda em casa, vagamente debruçado sobre a janela aberta do seu quarto, segue indiferente o movimento molecular em baixo, subsumido pela sensação de “aperto” emocional que lhe tolhe o peito.

 

Tentou ligar à Soraia, amiga e confidente incontornável na sua vida, e a única a conhecer o seu desejo secreto de advir mulher, tão pouco se sente identificado à pertença masculina do seu corpo franzino e bem torneado de jovem adulto de tez glabra e hábito corpóreo andrógino. Debalde, não conseguiu obter resposta. E era tão importante poder falar com ela. Só ela sabe o que é sentir ao quotidiano uma identidade sexual em falsete, e só com ela consegue partilhar o sonho, ainda secreto, de libertar-se das formas glandulares e órgãos genitais que tolhem a sua verdadeira natureza.

Sobretudo agora, que está tão inquieto, era importante poder ouvir a sua voz serena e escutar a sua fala sensata e apaziguadora. E depois é esta sensação de supliciante dúvida que lhe percorre todo o corpo e arrasa a alma desde ontem à noite. Está cada vez mais desassossegado a cada momento que passa. Não conseguiu mesmo “pregar olho” toda a noite na tentativa vã de contactar o querido amigo Jorge, secretamente amado pelo desejo sexual feminino que o corpo masculino aprisionante traveste em pulsão homossexual inebriante. Só Soraia conhece essa paixão amorosa “proibida”, da qual pressente que o amigo Jorge esteja alheado, embora acolha a sua amizade amorosa com gratidão e, a espaços, com expressões físicas de afecto que tanto o gratificam. E que, em contrapartida, tanto o fazem sofrer.

É por ele que está inquieto, sabendo-o atombado a consumos tóxicos e enredado em práticas de traficância menor, na condição subserviente de heroinodependente sem fulcro ou saída. Conheceu Jorge, vulgo Jota, há alguns anos no cabeleireiro unissexo onde, ao tempo, exercitava dotes de aprendiz enxaguando e massajando os tufos de cabelo de clientes homens e mulheres para artes de corte, penteado, brushing, coloração ou outras técnicas de tratamento capilar.

Ao tempo tinha concluído um curso de formação profissional especializada, depois de um percurso escolar irregular até aos 18 anos, mal supervisionado pelo tios maternos, mais a tia que o tio, alcoólatra e homem de temperamento violento e mente rasa, que o acolheram após a deserção dos pais para outras paragens de si desconhecidas, tinha ele, ao que parece, acabado de completar o primeiro ano de vida. Criado sem afecto, estilo ou circunstância parental pela tia, e pela sombra do tio, desenvolveu um estilo tímido e evitante na interacção com os pares desde a escola primária. Um comportamento que se acentuou quando, pelos alvores da puberdade, começou a sentir que não “encaixava” entre os rapazes, preferia as raparigas e os seus segredos, jogos, explorações sexuais e brincadeiras.

Cada vez mais mal à l’aise nas características sexuais masculinas do seu corpo, desertava da companhia dos rapazes e começou a ser alvo de chacota, com humilhações físicas e obscenidades à mistura. Alheado pela ignorância dos docentes, abusado pela negação dos funcionários escolares, Bruno deixou a escola. Só dois anos volvidos saiu do esconderijo imposto pelo seu erro genético e o reconverteu em anonimato clandestino num curso profissional de cabeleireiro.

Para esta tirada salvífica teve o socorro providencial de Soraia, a sua princesa improvável, vizinha de casa e de infortúnio familiar que dele se aproximou tocada pelo isolamento triste de um efebo gentil de traços finos, silhueta graciosa e rosto angelical. É o estágio profissional num cabeleiro unissexo da moda que suaviza a repressão envergonhada de uma sexualidade inviável, desviada para as sensações prazerosas do contacto discretamente sensual com os cabelos e o couro cabeludo de homens e de mulheres abandonados às carícias de uma lavagem tépida e antiestressante, na qual Bruno foi exercitando os dotes de massagista acariciante e dedicado em fazer sentir as emoções da cútis sob os seus dedos ágeis, finos e serpenteantes.

É por essa altura que conhece Jorge, que rapidamente tratará pelo diminutivo ternurento Jota, um dos primeiros clientes, depois cliente assíduo, amigo confidente e rapidamente íntimo. Não tem, nunca teve, ilusões quanto à sexualidade do seu bem-amado amigo, que com ele confidencia sobre as amigas e pretendentes a namorada, fantasiando Bruno, muitas vezes e com uma sensorialidade estonteante, “estar” dentro delas, alienando-lhes o corpo feminino ao seu desejo sexual dúplice. Sonha mesmo algumas vezes, entre a rêverie alucinante e a fantasia onírica, que se tornou mulher, imagina-se vividamente com corpo, genitais e entranhas de mulher em passe a ser corporeamente envolvida, sugada com languidez e penetrada pelo sexo forte e vigoroso de Jota.

Quando desperta desta rêverie, fica por alguns momentos inebriado em estado de alucinação sensível que prolonga até que a falta lhe venha recordar que tudo não passa de uma fantasia onírica. Mas hoje o cenário interno de Bruno é muito diferente, para pior. Sente-se sufocado pelo espaço exíguo de paredes nuas, tecto baixo e janelas baças levemente entreabertas por onde perpassa o odor pesado da humidade espessa e irrespirável de um tempo que não flui, como se imobilizado pela tragédia que a alma pressente que está para acontecer. É um pressentimento que o invade desde manhãzinha cedo, de facto desde alta madrugada quando acordou estremunhado e em sobressalto de uma noite insone.

Onde está Jota? O que lhe aconteceu desta vez? Será que voltou a recair no consumo de heroína, para além do “crack” que nunca deixou de fumar desde o início do tratamento de substituição pela Metadona que (não) cumpre? No passado sempre que recaía falava consigo em primeiro mão, confidenciava, pedia-lhe apoio, fazia juras mentirosas, inventava obstáculos inexistentes, mas nunca deixava de o procurar em primeira mão. O que se passa desta vez, angustia-se?! Será que está enredado com algum traficante “peixe graúdo” e em ameaça de vida, ele que tem servido de “correio” e “dealer”/consumidor para gente de vida esconsa e carácter por igual?! Será que teve uma overdose como aquela que sofreu há um ano e de que quase nem se chegou a aperceber (lembra-se que foi dar com ele na urgência hospitalar, avisado por um prosélito “benemerente” que o acompanhava e lhe roubou dinheiro, resto da dose e telemóvel)?

À medida que o tempo passa, agita-se cada vez mais… sente o impulso quase irreprimível de se deslocar ao “mercado” das drogas, de remergulhar naquele “bazar” infra-humano e de, mais uma vez, o resgatar daquela parafernália mortífera, das “malhas” de uma morte anunciada ao “rendez-vous”. Mas hesita, não consegue perceber bem o que se está a passar com ele. Será o pressentimento de um perigo maior que a vida?

Tenta, de novo, ligar à (sua) princesa, mas ela continua a não atender. Decide então ligar à Gigi (diminutivo de Georgina, uma amiga “colorida” que coteja Jota em encontros e desencontros a meio-caminho da “curte” sexual e da “trip” extasiante). Dedilha o número e o click de resposta não se faz esperar, “Olá Gi, tou pr’aqui muito preocupado… sabes alguma coisa do Jota? Tenho medo que esteja em apuros!”. Diz isto de “rajada” para o hiato silencioso de uma ouvidora potencial e fica à espera de retorno verbal no vazio ruidoso de um tempo suspenso. Resposta que não se faz esperar. Uma voz roufenha de timbre morno e entoação sonolenta, sugerindo displicência, anuncia um, “Oi, Bruna, não sei… não o vejo há dois dias, teve pr’aqui e depois bazou, desenfiou-se, acho que foi ter com o Locas e a Bimbi pro esquema do costume, umas cenas de ganza, um caneco… sei lá!” – interrompe-se por um momento, funga, pigarreia e conclui “Olha uma ganda patranha é o que ele é!! Já não quero saber mais dele, que baze pro diabo kus carregue… Tchau, querida e não te chateeis muito com ele, que não merece!” e desliga, deixando Bruno ainda mais afligido.

E depois é Soraia a sua querida princesa-protectora que não atende. O tempo escorre lentamente, parece quase imóvel, e Bruno calcorreia agitado pela saleta da casa, entre janela e parede, parede e mesa, mesa e aparador pindérico fronteiro à porta que dá para o corredor estreito e claustrofóbico. O suor perla-lhe a testa e escorre pelas têmporas inundando-lhe o pescoço e o peito. A camiseta encharcada e pegajosa cola-se ao corpo, as pernas tremem e o equilíbrio postural é precário. Quase cambaleia, respira com dificuldade, sorve o ar ambiente pesado e húmido, o corpo mole e desengonçado obedece mal às ordens do cérebro. Sente a cabeça vazia, uma dor latejante e surda atordoa-o, alastra-se às têmporas e não o larga. Sente que perdeu a noção do tempo, está “encarcerado” no cubículo opressivo e exíguo em que habita precariamente desde que os tios, por morte, lho deixaram em legado involuntário, há cerca de três anos. Altura em que finalmente (não) conheceu os pais, surpresa chocante, mais uma, azoada numa aparição fugaz de dois seres estranhos e decrépitos que quase não recorda, já que ao ouvir um “És tu, filho?!” soletrado por uma mulher arqueada de rosto encovado e desdentada (é o que se lembra), fugiu de casa sem destino, fechando a porta à chave na saída precipitada, e se internou no labirinto de ruelas e quelhos do bairro social insalubre que calcorreou embuçado e incógnito até se perder nas ruas da cidade grande, em que vagueou até à noite acabando acolhido, na madrugada seguinte, na casa de Xina, que Sol, a sua princesa Soraia, tinha cooptado para vir em seu socorro.

À medida que recorda tudo isto, uma penumbra de tristeza ensombra-lhe o rosto e quase lhe cega a visão, momentaneamente. Sente-se esvair e tem de sentar-se para não cair. O telemóvel toca e reconhece o toque de Locas. Atende de pronto, e ouve uma voz nervosa, rouca e afligida dizer-lhe, “B, és tu?! Olha tá tudo “down”, o Jota anda pelo “shopping” e pediu-me pra te dizer que vai à loja do “surf”” e desligou, tão subitamente como ligou.

Bruno percebe a comunicação encriptada que confirma as piores suspeitas, exala um suspiro angustiado e lacrimeja enquanto balanceia a cabeça de um lado para o outro num movimento incessante como se quisesse ficar entontecido, como se tentasse atordoar a dor que sente. Mas que não o larga, é uma dor da alma, um pressentimento sombrio, lúgubre, que lhe atulha a alma. Tenta de novo entrar em contacto com Jota, digita o número duas vezes, três vezes, mas do outro lado ninguém atende, só uma voz divertida em gravação sorridente, “Hello, é o Jota, tou “out”, deixem mensagem “in”. Ok? Tchau”. Que saudades desses tempos em que saía com ele, ia aos bares, a algumas festas, chegaram mesmo a ir de férias para o Algarve com alguns amigos e amigas o ano passado e foi uma semana tão “curtida”.

Como isso tudo parece agora tão distante. Respira fundo como se procurasse ganhar fôlego, dirige-se à kitchenette, bebe um copo de água e asperge a água da torneira sobre a cara e o cabelo. Passa o rosto por um toalhete que está em cima do lava-loiças e decide meter-se ao caminho. Sai de casa e dirige-se para o “shopping”, nickname da zona de um bairro social próximo em que funciona o mercado farmoquímico das “street drugs” extasiantes, anestesiantes, inebriantes e quejandos, aptas a porem “high”, “down”, “weird”, “chapado”, “mocado”, conforme a língua e a gíria de referência, os clientes-usuários. É um lugar a que detesta ir, causa-lhe repugnância, não tem nada a ver com aquela “ganga” e sempre se chateou com Jota por causa daquela “cena” asquerosa, decrépita e sórdida de seres alucinados, “speedados”, alienados de si e em fuga, sempre em fuga, para um lugar vago indefinido, uma fuga apalermada e estonteante de alguma coisa que deixaram de perceber há muito, tão transtornados e decrépitos de corpo e de alma estão, ou para aí caminham.

Assoberbado por estes pensamentos, quase não se dá conta de que passaram mais de quinze minutos e já entrou na penumbra da ruela esconsa e labiríntica que vai desaguar no larguinho, beco sem saída, em que se encontra a “loja de surf” (surfar só nas drogas pensa Bruno de si para si). A porta está entreaberta e de dentro exala uma mistela de cheiros que lhe é familiar, às narinas que não à mucosa nasal, uma mistela entre o exótico e o nauseabundo a meio caminho da lixeira, da urgência hospitalar, da loja de especiarias ou do banho turco com infusões de plantas exóticas. Fica quase entontecido por esta impressão inalante anacrónica, mas tem-se firme de pé.

À ombreira da porta, na projecção de uma réstia de luminosidade parda do exterior para o interior soturno e obscuro de um corredor lúgubre, que parece conduzir à saleta de nenhures, divisa um vulto indiferente sentado e que parece alheado na tarefa de preparar um “caldo” para injectar nas veias, ou nalgum buraco do braço ou do sangradouro ainda disponível. Pelo chão, em montículos sujos, dispersos e mal-cheirosos, uma miríade de caricas, seringas, panos rasgados, algodões ensanguentados, frasquinhos vazios, compressas conspurcadas e fedorentas. É uma visão terrorífica que lhe inflama a vista naquele pardieiro anónimo de objectos à mistura com seres esquecidos de viver.

 

Com a cabeça num vórtice e sustendo a custo a respiração, lança para dentro daquele depósito de restos humanos de vidas desperdiçadas um “Jota, estás aí?” e espera um momento. Sentindo a voz, a força e a vontade a esvaírem-se, já arrependido de ter ido ali, tenta berrar molemente, “Jota, sou eu, é o Bruno à tua procura”, mas de dentro daquela lura insalubre, nem eco nem resposta ao seu apelo. Quando decide recuar, sair dali e voltar à casa, sente uma mão forte e rude apertar-lhe o ombro esquerdo, vira-se para trás e dá de caras com o rosto quadrado, de olhar metálico e expressão sinistra de Jerónimo, nome ou alcunha de um traficante para quem Jota fez alguns serviços ocasionais como “capeador”, com a droga como paga.

Com um meio-sorriso mau e zombeteiro, os dentes cariados e o hálito nauseabundo, invectiva Bruno, “Que fazes aqui, larilas de merda?! À cata do teu fofinho? Baza daqui antes que te acerte o passo, xô bicheza daqui para fora!” diz isto enquanto o empurra e pontapeia com força. Bruno sente uma dor aguda nas nádegas, cambaleia um pouco, tropeça, quase cai, e começa a correr em direcção ao descampado.

Corre num passo trôpego indeciso e assustado. No caminho da fuga cruza vultos sombrios e agitados, personagens vagas e incertas que passam fugazmente e se internam rapidamente em becos, vielas imundas, entradas clandestinas e travessas esconsas de paredes sujas encimadas por lampadários partidos. Como se procurassem refúgio de uma fuga sem saída. Sente-se perdido no meio de um labirinto tóxico, mortífero, e a angústia acentua-se, sufoca-lhe o peito e atordoa-lhe os sentidos. Lágrimas de medo e de dor rolam-lhe pela face. Respira com dificuldade. Enquanto corre em ziguezague confuso ouve, ao longe, o ruído abafado de carros que passam, param e arrancam, motoretas que se aproximam e afastam a todo o gás, guinchos, berros, gritos e altercações da turbamulta mais acima.

A luminosidade vai-se esvaindo rapidamente até dar lugar a um anoitecer de mau augúrio. O peito sobressaltado, o olhar baço e as têmporas latejantes diluem-lhe a percepção da penumbra ambiente e não se dá conta de que é perseguido por dois vultos que se aproximam de si rapidamente. De súbito, sente um encontrão seco e violento que o derruba. Cai de borco no chão, estatelando com dor a cara no empedrado irregular do caminho. Tenta virar-se para ver quem o atacou, mas sente o impacto atordoante de um soco que esmaga o nariz e faz sangrar os dentes. Sente a saliva ensanguentada a jorrar da boca dorida. Estendido no chão, sente o impacto violento dos pontapés desferidos à queima-roupa, primeiro no dorso, uma, duas vezes, depois nas virilhas, uma dor aguda lancinante que o faz dobrar com um gemido seco.

Continuam os pontapés nas coxas, nas pernas, no braço esquerdo. Não consegue levantar-se nem fazer gesto algum, os braços e as pernas paralisadas, o corpo convulsionante em dor infindável. Tenta berrar um grito ensanguentado, mas sente que lhe tapam a boca com um pano. Um ruído ensurdecedor, incompreensível, submerge-lhe os sentidos, ouve confusamente uma algazarra de vozes ébrias, roufenhas, asquerosas que berram por cima de si “panilas de merda, metes nojo” enquanto continuam a pontapeá-lo sem cessar.

Indefeso e paralisado pela dor que lhe alaga o corpo, ensanguentado e insensível de tão massacrado e à beira de perder os sentidos, sente uma pancada metálica na nuca. Uma sensação de agonia sobrevém-lhe ao esvair dos sentidos e um clarão incandescente invade a mente com a imagem intensa e deslumbrante de si em figura de mulher de traços finos, busto delgado e firme, rosto róseo de tez loura e feições imaculadas enlaçada por um homem formoso e resplandecente, com a estatura e os traços faciais de Jorge, depois uma luz branca encadeante que se desvanece a pouco e pouco até à escuridão total.

Na resteva ensanguentada daquele lugar anónimo com cheiro à morte, uma voz soturna clama um “Epá, vambora, toca a bazar daqui acho que o fuinha pifou, limpámos o gajo à séria, andor daqui pra fora” que já não ouve, bem como o ruído de passos apressados a desertarem aquele lugar lúgubre e vazio de vida. Um telemóvel caído a alguns metros do corpo inerme, já sem vida, vibra sem parar e no visor quebrado o nome “Princesa” brilha na escuridão.

Vida e (sem) sonho

A esta hora o shopping ainda não está muito cheio. Só mais para a noite começa a abarrotar. A clientela na loja é pouca, algumas mulheres, homens menos, e uma ou outro adolescente que espraia o olhar curioso pelas peças de roupa ou acessórios mais inovadores, mais ousados ou mais “na onda” (que isso do à la mode já foi “chão que deu uvas”, como sói dizer-se).

Soraia pensa em tudo isto divertida enquanto discorre o intelecto sobre a aula de ontem na faculdade. Trabalha naquela loja há cerca de meio ano como forma de ajudar os pais a custearem o curso de arquitectura, agora no quarto ano. Tem consciência de que é uma boa aluna, até porque está a fazer aquilo de que gosta. Nem poderia ser de outra forma, concedem próximos e amigos que conhecem melhor a sua personalidade. Não, Soraia não tem nem o estilo nem a disposição para abdicar daquilo em que acredita. Traço de carácter que já era detectado em petiza. Como se lembra bem dos amuos altaneiros sempre que a mãe procurava impor-lhe alguma tarefa doméstica a mais do que o rol habitual (já o rol de afazeres domésticos era bem difícil de suportar, sobretudo em comparação com a irmã, mais nova que ela dois anos, essa sim uma princesa com séquito parental devotado).

Depois aquele nome que lhe caiu em sorte de uma princesa iraniana mal-sucedida (tal como o seu consorte Xá, uns anos depois), que passou à posteridade dos fait-divers supérfluos e corriqueiros como a princesa dos olhos tristes. Que ideia mais bacoca, que nome próprio mais ao estilo de revista cor-de-rosa (dessas que a sua mãe e a madrinha e tia materna a tempo inteiro tanto gostam de folhear avidamente). Ainda por cima não a nomearam com prenome alternativo, já para não falar do patrónimo Gazua!

Resta-lhe um Simões de permeio, acrescento materno de pouco préstimo para o seu amor-próprio! Não encontra alternativa ao malfadado Soraia (ainda por cima sem y e sem diminutivo que a safe) e sonha, por isso, em emigrar para cultura distante e de mais alento e impor-se artisticamente sob um pseudónimo mais à medida do seu (maltratado) narcisismo. Está imersa nestes pensamentos quando ouve um “Menina, por favor” ao canto mais à esquerda do open space expositivo da loja (“esta malfadada ilógica espacial da arquitectura pin-up à moda” arrazoa de si para si) e dirige-se a uma matrona cinquentona de nariz arrebitado e silhueta avantajada “coroada” com um regaço mamário opulento, que lhe dirige em tom de estudado desdém um “Ah, é você?! Precisava que me trouxesse uma camisolinha daquelas em cor-de-laranja suave, têm muito mais piada do que as cor-de-rosa”.

Soraia “engole em seco” a sua irritação e alinhava um “Vou ver se temos alguma dessa cor lá dentro” enquanto se retira para as traseiras da loja disposta a não encontrar a peça de vestuário infantil altaneiramente solicitada pela empachada cliente matutina. Espera um ou dois minutos no exíguo nécessaire da loja (que espaço de arrecadação mais inútil e mal desenhado, alvitra de si para si, momentaneamente regozijada com o seu esprit critique estético-arquitectural) e reentra na “boca de cena” alinhavando um “Desculpe, mas não temos nenhuma camisolinha cor-de-laranja em armazém, quer que ligue à outra loja da nossa cadeia e peça que enviem para cá?”.

A putativa cliente lança-lhe um olhar de empolado desdém, vira costas em atitude de (estudada) deselegância e sai de cena sem se dignar, sequer, articular sentença. Tanto melhor, aduz Soraia de si para si, já não tem de se desdobrar em solicitudes e “salamaleques” que lhe foram impingidos na semana de “formação” (?!!) a que teve de submeter-se para ficar com o lugar em vaga, um part-time esforçado com fins-de-semana a tempo completo por parca recompensa remunerativa. Que remédio tem de contribuir para reduzir o impacto de propinas e outras despesas académicas no mitigado orçamento familiar. Está absorta nestas reflexões quando sente vibrar o telemóvel. Identifica “Mana” no visor, sorri e prepara-se para “espalhar” um pouco o aborrecimento deste final da manhã de domingo “chato” e “modorrento”. Saúda com um “Olá Xina, como está a minha querida “manita” de coração?” e ouve do outro lado do fio um “Tudo jóia minha linda… imaginei que estivesses a precisar de alento para “gramar” a “pastilha” dessa lojeca… eu também estou pr'aqui sem nada pra fazer, o Jonas foi surfar com uns amigos, e já sabes como é, fico sempre de fora dessas combinações… que chatice estares aí “presa” nesse emprego da “treta”… podíamos curtir uma saidita as duas”.