Hipnose

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© Editora Gato-Bravo 2021

Não é permitida a reprodução total ou parcial deste livro nem o seu registo em sistema informático, transmissão mediante qualquer forma, meio ou suporte, sem autorização prévia e por escrito dos proprietários do registo do copyright.

editor Marcel Lopes

coordenação editorial Paula Cajaty

revisão Margarida Fontes

projecto gráfico Bookxpress

imagem da capa Benjavisa Ruangvaree, in Adobestock

Título

Hipnose: o regresso ao passado

Autora

Maria Inês Rebelo

Impressão

Europress Indústria Gráfica

ISBN 978-989-8938-88-6

e-ISBN 978-989-8938-89-3

1ª edição: Abril, 2021

Depósito legal: 482376/21

GATO BRAVO

rua Veloso Salgado 15A

1600-216 Lisboa, Portugal

tel. [+351] 308 803 682

editoragatobravo@gmail.com

editoragatobravo.pt

Para o meu avô, Francisco Rebelo, que transformou o seu ofício de sapateiro numa verdadeira arte.

Sumário

Agradecimentos

O Consultório de Hipnose na Avenida do Sol

O Mistério de Anne Pauline

A Primeira Sessão de Hipnose

A Ilha Esquecida

5. A Aliança Secreta

6. O Perfume Alquímico

7. A Escola Médica de Salerno

8. Antuérpia - 1520

9. A Tipografia e Paracelso - 1520

10. A Terapia do Magnetismo

11. O Desenlace Final

Carta ao Conselho Nacional de Hipnose

Olhem a natureza que nos cerca e vejam em cada ser planta, pedra,animal-

como que uma parcela de um alfabeto e considerem uma palavra composta deste alfabeto:

encontrarão o homem

Paracelso

Médico, alquimista, físico e astrólogo

(1493-1541)

Esta é uma obra de ficção.

Qualquer semelhança com nomes,

pessoas, factos ou situações

da vida real é mera coincidência.

Agradecimentos1

UMA VIAGEM POSSUI, QUASE SEMPRE, UM ITINERÁRIO. Um livro, da mesma forma, detém quase sempre uma alma. Na minha opinião, não é possível escrever um livro sem alguma experiência de vida e sem as pessoas que nos acompanham durante todo esse percurso.

Por conseguinte, gostaria de deixar aqui uma mensagem de agradecimento à Alexandra Figueiredo, pela sua amizade, constantes sugestões e motivação que me foi dando durante o percurso de redação deste manuscrito. Um agradecimento também ao Lino Galveias, cuja persistência, ao longo de vários meses, permitiu a tradução do livro para inglês, agora disponível numa versão de autoedição.

Quero agradecer ao Carlos o seu apoio constante. Ele, mais do que ninguém, esperou pacientemente para que uma página escrita diariamente, se transformasse, um dia mais tarde, num livro. Aos meus pais e à minha irmã, que fazem parte desta viagem de vida, espero que este manuscrito nos devolva ao passado. O futuro, esse, está ao virar da esquina.

Concentre-se aqui e agora…

A história que está prestes a ler narra a vida de Anne Pauline Roux: no passado, no presente e no futuro.

A vida dela tem um destino traçado; destino esse que apenas se revela quando, um dia, ela toma a importante decisão de iniciar sessões de hipnose com o famoso hipnotizador Marcus Belling. A sua intenção é confrontar os seus medos e as suas ansiedades interiores. A partir deste dia, ela descobre que através da hipnose e da Terapia de Vidas Passadas poderá finalmente compreender o seu inexplicável sentimento de não pertença a “qualquer lugar” e a incapacidade para definir a sua própria identidade. Como ela vem a descobrir, as suas vidas passadas contribuíram para a pessoa que ela é no presente.

Ao longo de nove meses, tempo durante o qual duram as sessões de hipnose com Marcus Belling, Anne Pauline vai descobrir que é detentora de um grande poder, que apenas se manifesta quando ela é induzida em transe hipnótico.

Através de uma aliança secreta com Josef Salvaterra, colega e rival do famoso hipnotizador, ela decide então usar o seu dom para destruir o sucesso profissional de Belling. Vê-o como responsável pelas suas inexplicáveis ansiedades interiores. Esta é uma decisão que irá pesar na sua consciência.

Mas esta é uma oportunidade única para ela perdoar o passado e, assim, encontrar o caminho da felicidade. A procura pela verdade acerca de si mesma implicará que ela aceite as consequências imprevisíveis das suas escolhas pessoais. Os dilemas irão fazer parte desta sua jornada impelindo-a a tomar decisões corajosas para alcançar o seu maior propósito na vida: a libertação do seu passado.

Peço-lhe agora que respire profundamente e escolha um lugar confortável para relaxar...sinta todo o seu corpo a preparar-se para a viagem que está à sua frente...quando quiser, e se sentir preparado/a, poderá mudar de página....

1. Adaptado para a versão exclusivamente em português, conforme a nova ortografia. O livro foi escrito, originalmente, em português e depois traduzido para inglês (posteriormente, publicado através de um regime de self-publishing). Dado que a versão em inglês foi publicada primeiro, tive necessidade de ajustar os agradecimentos nas duas línguas. De facto, deixa de fazer sentido, na versão em português, as palavras de agradecimento dirigidas a entidades e pessoas que me ajudaram a rever e a adaptar o livro para a língua inglesa.

O Consultório de Hipnose na Avenida do Sol

1

O RELÓGIO MARCAVA EXATAMENTE MEIO-DIA quando Anne Pauline Roux tocou à porta do consultório de Marcus Belling no n.º 27 da famosa Avenida do Sol. Nesta altura estávamos em pleno mês de julho e o dia já tinha amanhecido bastante quente. Uma brisa fresca e diferente soprava no ar. Ao mesmo tempo a cidade fervilhava já no novo movimento de turistas que a invadiam nesta época do ano.

Quando Anne Pauline tocou à campainha, ela sabia bem quem procurava. Marcus Belling tinha-se tornado um conceituado hipnotizador no país há muitos anos, a partir do momento em que começou a aparecer em variados programas de televisão nacionais para falar sobre hipnose. Apesar das muitas aparições públicas, tinham ficado especialmente conhecidas as suas lendárias entrevistas sobre a Terapia de Vidas Passadas e a Regressão. Nestes dias, não era exagerado afirmar que o país parava para ouvir Marcus Belling.

Este era um dia especial para Anne Pauline, e ela sabia-o bem. Há alguns anos que desejava conhecer o famoso hipnotizador, de quem todos falavam, mas a verdade é que ela tinha medo do desconhecido. Por essa razão, antes de marcar a sua consulta na Avenida do Sol, decidiu comprar um livro para tirar o pavor (pensava ela, pelo menos) que sentia quando pensava em ser hipnotizada. Tinha-o comprado há alguns meses e este intitulava-se, com algum “suspense”, “Mistérios da Hipnose”. Neste dia de verão, quase que tinha sido hipnotizada pelas palavras que estavam lá contidas, como se ela própria, de uma forma incontrolável e de forma imprevisível, já tivesse sido arrastada há algum tempo para aquele mundo que totalmente desconhecia. Tentou não pensar mais no assunto, pelo menos quando tocou à campainha do n.º 27 da Avenida do Sol.

Desde que Belling iniciara a sua carreira como hipnotizador que as pessoas tinham adquirido novas ideias e perspetivas acerca da hipnose como método terapêutico alternativo à medicina não holística. Há vinte anos, a hipnose ainda era vista como uma espécie de arte do oculto cujos profissionais e “seguidores” eram banidos do sistema convencional da medicina tradicional, o que hoje já não era uma realidade. Alguns afirmavam com convicção que Marcus Belling tinha sido o precursor desta mudança de mentalidades.

Contudo, Belling não estava sozinho no palco público. Um outro hipnotizador igualmente conhecido, embora não tão carismático e mediático, tinha chamado a atenção da imprensa e das pessoas: chamava-se Josef Salvaterra. Salvaterra, tal como Belling, era um catalisador da atenção do público em torno do seu trabalho relacionado com a hipnose. Os dois já não podiam viver um sem o outro. Neste sentido também, a disputa entre ambos era permanentemente alimentada por jornais e revistas diversas, algumas de natureza satírica que exploravam a dualidade de carismas e as suas personalidades opostas. Marcus Belling e Josef Salvaterra eram muito diferentes um do outro, e mesmo os pacientes que recebiam nos seus consultórios, diferiam na forma de encarar a hipnose. Belling, por exemplo, costumava atrair muitos homens e mulheres que, fascinados pelo seu carisma, o procuravam com o objetivo de melhorar as suas vidas através das suas técnicas de hipnose. Os seus pacientes provinham de classes sociais diferentes e possuíam, por vezes, antagónicas convicções políticas e religiosas. Para além disso, existiam muitas famílias que recorriam aos seus conhecimentos de terapias aplicadas a crianças para resolver problemas de ansiedades e medos típicos da infância. Nesse aspeto, Marcus Belling despendia com grande prazer o seu tempo juntamente com os pequenos pacientes, talvez porque a sua carreira enquanto hipnotizador começara na pediatria dos hospitais onde se desencadeou o uso da hipnose para facilitar o diagnóstico de certas doenças.

 

Marcus Belling iniciara-se como hipnotizador no campo da hipnose clínica há quinze anos quando ainda pouco se falava em hipnose e muito menos da sua aplicação em ambiente hospitalar. Tudo começara, na realidade, quando Belling participou numa experiência conjunta com outros hipnotizadores pertencentes ao Conselho Nacional de Hipnose onde foi testado o uso da hipnose em crianças com epilepsia. Nessa altura, Marcus Belling teve a oportunidade de induzir o estado hipnótico nessas mesmas crianças criando assim um estado de alerta de consciência: posteriormente, procedeu-se à análise das mudanças no cérebro no padrão das ondas cerebrais. O cérebro foi então monitorizado por um aparelho de exame de imagens. Daqui, foi possível concluir que os sintomas apresentados por algumas destas crianças correspondiam de facto a sintomas típicos de outras doenças, o que permitiu concluir que estas não sofriam de epilepsia. Pela primeira vez, foi possível comprovar que a hipnose constituía um método fundamental que ajudava no diagnóstico clínico, mostrando ser essencial para que se pudesse aplicar o tratamento mais acertado. Como todos os especialistas, Belling sabia que o erro no diagnóstico prolongava o sofrimento dos pacientes.

Não seria exagerado afirmar que a larga experiência de Marcus Belling no campo da hipnose clínica foi decisiva no sedimento das suas convicções. Inconformado com o panorama atual da sua profissão, ele percebeu rapidamente que os jovens hipnotizadores não mostravam agora interesse em especializar-se nesta área, especialmente porque eram colocados em contacto direto com a dor humana. Todos fugiam do sofrimento alheio. Esta era uma dor tanto do corpo como da alma. Mas como Belling bem sabia, todo o conhecimento adquirido com a experiência constituía a base de formação de qualquer bom hipnotizador. Dentro dele, resistia a aceitação da filosofia “mercantilista” que era imposta ao exercício daquela profissão; por essa mesma razão, ele defendia que o uso mais frequente da hipnose clínica poderia aliviar a pressão que tinha recaído nos hipnotizadores para obter lucros rápidos e constantes com as suas sessões. Como ele bem sabia, parecia hoje mais importante gerar receitas avultadas com a hipnose do que usá-la nos meios hospitalares e desenvolver as suas técnicas com os doentes. Por isso, o famoso hipnotizador sentia que faltava uma investigação aprofundada acerca do uso futuro da hipnose nos hospitais, e que os jovens hipnotizadores estavam poucos interessados nesta vertente.

Gradualmente, da fusão de todas estas experiências profissionais, o popular Belling acabaria igualmente por ficar conhecido pelo facto de ter desenvolvido terapias familiares que ajudariam as famílias a superar conflitos internos. Ele era assim, simultaneamente, hipnotizador e terapeuta com a capacidade de conjugar bem as suas diferentes facetas.

Já Josef Salvaterra, no seu estilo mais antiquado, (e “antiquado” era uma palavra que muitas pessoas usavam quando tentavam descrever as suas técnicas) costumava receber no seu consultório homens e mulheres de meia-idade, normalmente mais conservadores e tradicionalistas que se mostravam avessos à forma de trabalho de Marcus Belling. Salvaterra sabia que alguns dos seus clientes apenas o procuravam porque já não conseguiam lidar com o excessivo mediatismo de Belling e, por essa razão, para fazerem valer a sua posição, procuravam um hipnotizador diferente. Nestes casos, o carisma de Marcus Belling tornara-se incomodativo. Desta forma, os respetivos pacientes (Salvaterra preferia chamá-los de “clientes”) dos dois hipnotizadores pareciam pertencer a claques distintas que por vezes se envolviam em conflitos. Mas tudo isto já fazia parte da rotina de Belling e de Salvaterra que praticavam a hipnose há mais de vinte anos.

Ao longo desses anos, o grande público mostrara igualmente interesse em conhecer as filiações políticas e ideológicas dos dois hipnotizadores; de forma pouco habitual, as pessoas consideravam que aqueles dois homens, embora não tivessem qualquer experiência política, dariam certamente bons políticos. O público inflamava-se com os seus discursos e surgiam adeptos, de um lado e do outro, que ora defendiam Belling, ora Salvaterra. Para uns, o primeiro daria um bom Ministro da Assistência Social, enquanto ao segundo já lhe tinha sido destinada, por votação popular, a pasta do Ministério do Trabalho. Os meios de comunicação tentavam neste ponto simplificar as suas divergências. Sucintamente, Belling era mais de direita e Salvaterra mostrava ter mais empatia com ideologias de esquerda. Era assim que as pessoas e também a imprensa os tinha “ideologicamente” dividido para uma mais fácil compreensão das suas antíteses pessoais e políticas. Marcus Belling tentava ignorar estas descrições, mas o mesmo não se passava com Josef Salvaterra que se preocupava muito com as suas descrições políticas. Apesar das diferenças, os dois hipnotizadores recusavam-se em participar na luta política, de certa forma porque consideravam que isso não seria benéfico para as suas carreiras. Apesar disso, lá no fundo, sem confessar, Salvaterra tinha neste campo há alguns anos, mais ambições do que Belling. Apenas se mantivera afastado da política para não destoar, no essencial, da postura do adversário. A verdade é que Josef Salvaterra tinha receio de trilhar um caminho demasiado diferente da do seu concorrente.

Marcus Belling e Josef Salvaterra limitavam, assim, as suas zonas de influência. Embora nem sempre de forma consciente, os dois hipnotizadores tentavam manter posturas idênticas perante o público e os meios de comunicação. Assim, apesar de possuírem personalidades muito distintas entre si, os dois tentavam não divergir no que era parecia ser fundamental: as suas convicções pessoais, políticas e ideológicas. Acharam por bem, não aprofundar as suas notórias divergências pessoais e profissionais, de modo que existia uma espécie de “acordo de cavalheiros”, que se traduzia em ações, e não em palavras. Talvez por causa disso, estava montado há muitos anos um esquema logístico de “espionagem” de ambas as partes que tinha como propósito conhecer todos os seus movimentos. No entanto, sem que Belling ou Salvaterra pudessem prever, todo o seu esquema de trabalho será colocado em causa com o aparecimento de Anne Pauline. Esta jovem mulher, também sem saber, irá alterar todas as circunstâncias pessoais e profissionais que estavam, há mais de vinte anos, sedimentadas em torno dos dois hipnotizadores.

Para as pessoas tornava-se igualmente necessário conhecer o passado de Marcus Belling e de Josef Salvaterra.

Marcus Belling nascera numa família de classe média. Era filho de um médico que não sabia o que era a hipnose, antes de Belling a começar a exercer. O pai, Elias Belling fora um “médico da terra”, ou seja, um dos poucos que decidira praticar a sua profissão fora das grandes cidades para poder ajudar a população que não dispunha de cuidados médicos e possibilidades económicas para recorrer a um médico fora da sua aldeia. Os “médicos da terra” eram, por isso, também chamados de “médicos nómadas” e há sessenta anos não existiam muitos. Anos mais tarde, o pai de Belling acabaria por ser reconhecido por uma Comissão Clínica Nacional como um dos mais competentes médicos do seu país. No entanto, quando Marcus Belling começou a exercer hipnose, o seu pai passou a viver permanentemente angustiado com as polémicas em redor do filho.

No início da carreira, a postura de Belling em se assumir como um hipnotizador de referência nacional parecia entrar em conflito com o passado da família, mais ligado à medicina tradicional. Como ele bem sabia, nesta época, para a maioria das pessoas, a medicina convencional representava a única forma de terapia e de cura para o mais variado tipo de enfermidades. Depois, com o progressivo mediatismo de Marcus Belling, a classe clínica do país tornou-se uma opositora às teorias que estavam a ser difundidas acerca do efeito terapêutico da hipnose. Deste modo, existiram várias tentativas de descredibilizar o trabalho do famoso hipnotizador e, por essa razão, o pai de Belling fora aconselhado a manter-se afastado destas mesmas polémicas. Por tudo isto, Elias Belling decidira retirar-se da medicina tradicional mais cedo do que o previsto, apesar de uma carreira de sucesso reconhecida a nível nacional. De forma inevitável, a sua carreira acabaria por exercer uma influência dominante no filho que, ainda com receio de se assumir como hipnotizador, começou primeiro por concluir o curso em medicina.

Já Josef Salvaterra tinha um passado muito diferente do de Marcus Belling. Salvaterra era órfão. A própria palavra era proibida de ser usada no seu discurso diário. Nas diversas entrevistas, raramente o hipnotizador abordava este assunto. Muitos não sabiam, mas ele fora criado com um tio, irmão do seu pai, que possuindo uma pequena fortuna, lhe pagou os estudos que lhe iriam permitir seguir uma estável carreira profissional. Ao contrário de Belling, Salvaterra nunca teve contacto com a medicina, nem mesmo durante a sua formação como hipnotizador. Para alguns, o curso de medicina era como que um alicerce fundamental na área da hipnose, razão pela qual consideravam que a falta deste elemento estruturante na vida profissional de Salvaterra, constituía um obstáculo para que se pudesse tornar um melhor profissional do que Marcus Belling.

Conhecemos agora o passado de Belling e de Salvaterra, mas pouco sabemos ainda acerca do de Anne Pauline. A primeira vez que a jovem conheceu Marcus Belling, foi neste dia de verão, quando tocou à campainha do seu consultório, situado na Avenida do Sol. Até este mesmo dia de julho, ela apenas o conhecia através da televisão e os dois nunca se tinham encontrado pessoalmente. Todavia, isto era o que julgavam, pois na verdade eles nunca se tinham conhecido nesta vida. Deste modo, torna-se importante falar um pouco mais acerca da misteriosa Anne Pauline Roux, uma jovem mulher de vinte e cincos anos, de grandes olhos verdes brilhantes e de longos cabelos pretos. O seu rosto era oval e às vezes usava óculos que, destacando os seus olhos claros, lhe devolviam uma profundidade estranha e misteriosa à sua própria personalidade. Também ela tinha um passado, tal como os dois hipnotizadores.

– Cada um de nós tem um passado. Todos os passados são importantes para que possamos ser capazes de definir a nossa própria identidade. – disse-lhe uma vez o pai.

– E se eu não conhecer o meu passado? O que é que me acontece? – perguntou a curiosa Anne Pauline quando tinha apenas dez anos.

– Nesse caso, não saberás quem és. – respondeu-lhe o pai.

– Isso parece assustador. – respondeu a menina.

Este diálogo com o pai iria sempre manter-se uma viva recordação na mente de Anne Pauline. Foi a partir deste dia que a jovem rapariga prometeu a si mesma, que iria descobrir o seu passado. Ela tinha medo de não saber quem era e, por isso, partiu numa busca incessante por si mesma.

O passado de Anne Pauline estava ligado ao mar. Era sempre lá que regressava quando as suas angústias interiores não lhe permitiam ver nenhum caminho claro à sua frente. Uma boa razão para isso é que o pai fora pescador a vida toda. A mãe era uma incansável atadora de redes, uma profissão em vias de desaparecimento e que sendo executada por uma mulher, tornava ainda mais particular a sua situação. Ela era uma excelente atadora de redes e na comunidade piscatória comentava-se inclusivamente que ela era a melhor atadora do país. Ela organizava e cozia tão bem que o marido dizia frequentemente que era por causa dela que lhe calhavam mais peixes nas redes. Por outro lado, comentava-se igualmente que o pai de Anne Pauline era um excelente pescador. Alguma coisa nele, que devia ser a intuição, lhe dizia onde devia lançar a rede e por norma encontrava mais peixe do que os seus colegas de profissão. Raramente se enganava. Quando ele decidia lançar as redes numa certa zona do mar, costumava pescar grandes quantidades de todo o tipo de peixes, o que no final do mês significava ter ao seu dispor um orçamento mais avultado.

 

A família, por sua vez, era proprietária de um barco de pesca (como todas as famílias da comunidade) chamado “Argo”. A embarcação já tinha pertencido aos avós de Anne, também eles pescadores. Tendo sido deixado em terra firme durante muitos anos, este começou a degradar-se rapidamente. Após a sua restauração, o pai de Anne Pauline decidira dar-lhe o nome de Argo, o que gerou alguma polémica entre as pessoas que diziam que o nome se devia a um filho ilegítimo que ele tivera de uma rapariga que, um dia, aparecera naquela localidade e que desaparecera poucos meses depois sem deixar rasto. Várias vezes os dois foram vistos juntos, mas ninguém podia confirmar uma possível relação. Depois deste acontecimento, o Argo voltou ao mar no seu esplendor. O belo barco estava pintado em cores de arco-íris: de um lado estava desenhado um peixe onde se podia ler a palavra Icthus e do outro, para quem prestasse atenção, estava uma serpente que segurava a sua própria cauda e onde se podia ler, desta vez, a palavra Ouroboros. Ninguém sabia ao certo o que isto poderia significar. O pai de Anne Pauline era considerado inteligente, apesar de não ter estudos e, talvez por isso, algumas pessoas tinham receio de lhe dirigir a palavra. Existia nele uma espécie de reverência, que todos respeitavam, e que raramente colocavam em causa. Por essa mesma razão, nunca ninguém o confrontou com a história do filho ilegítimo e com o significado das estranhas mensagens que ele parecia evocar na sua embarcação. Nem mesmo a própria filha.

Durante a infância, Anne Pauline tivera muitas oportunidades de viajar com o pai, sentados os dois no Argo, olhando o horizonte. Ao final do dia, alguns cardumes de peixe assomavam à superfície da água como numa última tentativa de ver o pôr-do-sol, também eles admirados com a beleza do mundo. Ao fundo, muitas vezes, apareciam então as gaivotas, esbeltas e curiosas, atraídas pelos peixes que faziam do mar a sua varanda particular para ver o sol uma última vez. Também durante estas viagens, Anne Pauline questionava-se se teria mesmo um irmão ou seriam histórias, uma forma de as pessoas saciarem a sua curiosidade por novidades escandalosas? Por medo, nunca chegou a confrontar o pai com essa história.

O mar oferecia a Anne Pauline uma dádiva preciosa e que raramente lhe era permitido viver: a paz e tranquilidade interiores. Algo a perseguia. Era algo tão grande que ela tinha dificuldade em o compreender. Na realidade, desde criança que se lembrava de sonhar com imagens estranhas que lhe causavam angústia durante a noite e que não conseguia explicar. Frequentemente existiam momentos de inquietude e de tristeza que aparentemente não tinham explicação, pois apesar da pobreza, ela tivera uma infância feliz; pelo menos assim o poderia afirmar com convicção, quando se lembrava das suas viagens com o pai sentada na embarcação da família. A verdade, é que algo não a deixava viver.

Ninguém sabia, mas na realidade ela tinha uma vida de dia e outra à noite. Jamais ela comentou isto com os pais, que teriam dificuldade em a compreender, dado que a maior preocupação deles era trazer sustento para casa. De facto, quando a principal preocupação é sobreviver todos os dias, tudo o resto à volta parece desaparecer. Nada é mais importante do que sobreviver ao dia seguinte. Talvez por isso, os pais de Anne Pauline não soubessem o que se passava com o passado da filha: este era um passado que teimava em evidenciar-se sempre que podia. Durante muitas noites, uma voz de homem muito nítida costumava perguntar-lhe de forma incessante:

– Qual é o teu verdadeiro nome?

– Conheces bem o teu passado?

– És honesta?

– Queres o bem dos outros?

– Tens valores?

– Se um dia chegares a conhecer um lugar secreto, serás capaz de guardar segredo? Sabes guardar segredos?

A voz daquele homem vinha de um mundo que ela não conhecia. As perguntas eram sempre as mesmas e aos poucos, ela começou a duvidar da sua própria identidade. Ao longe, ela conseguia ver o rosto de alguém que abanava com a cabeça: não, ela não era honesta, era o que ele pretendia dizer. Como convencê-lo do contrário? Como é que ele a poderia conhecer tão bem ao ponto de a fazer duvidar de si mesma? E se ela teria outros nomes? Porque é que ela teria outros nomes? As perguntas começavam-lhe a assaltar a mente e nunca mais a abandonaram. Até ao dia, em que ela já não sabia quem era, apesar da promessa que tinha feito ao pai.

No dia em que Anne Pauline deixou de poder cumprir a sua promessa com o seu pai, de nunca esquecer o seu passado, de onde vinha, já nem as viagens de barco no mar lhe traziam a felicidade e a tranquilidade que ela necessitava. O “Argo” passou a ficar atracado mais vezes, e mesmo as gaivotas começaram a sentir a falta da jovem, que agora só via o horizonte na praia, desejando saber quem era aquele homem que lhe falava à noite, colocando-lhe tantas questões. Muitas vezes ao longe, a força das marés deixava visível uma faixa de terra, que elevando-se das águas, formava uma pequena ilha, onde todos os pássaros das redondezas procuravam o seu petisco do dia. Era uma ilha isolada, apenas feita de areia, onde reinavam os sons da natureza. Por isso, Anne Pauline chamava-lhe a “Ilha dos Pássaros”.

À medida que Anne Pauline ia crescendo, este sentimento foi-se intensificando até se tornar intolerável ao ponto de necessitar de procurar ajuda. Depois de muitos anos sem acreditar nos efeitos terapêuticos da hipnose, decidira finalmente procurar o famoso e carismático Marcus Belling. Ela não fugia às estatísticas. Também ela não conseguia resistir ao charme e ao encanto natural de Belling. Nem nunca pensara em Josef Salvaterra, quando decidira procurar na hipnose um tratamento para as suas inexplicáveis angústias. Ainda assim, ao contrário do que se passava com muitas pacientes de Belling, Anne Pauline não pretendia recorrer à hipnose para conhecer um amor do passado ou eventualmente saber se tinha sido uma figura histórica de destaque. Alguma coisa dentro dela lhe dizia que as suas emoções estavam relacionadas com experiências de diferentes vidas no passado que continuavam a enviar-lhe mensagens subliminares (mesmo que só através dos sonhos). O passado tinha então esta forma brutal de comunicar com ela como se durante todo aquele tempo lhe estivesse a impor a necessidade de regressar a um determinado local para rever os mesmos acontecimentos. O passado exigia-lhe agora que ela olhasse para o mundo à sua volta, de forma diferente.

Mas como poderia o passado estar a comunicar com ela? E como poderia ter ela a certeza de que um passado desconhecido tentava agora chegar até ela? Os sonhos de vidas passadas pareciam invadir as suas noites, ano após ano. Sem o conseguir impedir, ela ouvia a mesma voz familiar daquele homem que lhe continuava a colocar um conjunto de perguntas, que não pareciam ter sido escolhidas de forma aleatória:

– Quem és tu?

– Conheces a verdadeira história do Argo e do teu pai?

– Tens as tuas convicções, ou perdeste os valores?

– És capaz de viajar até ao passado? Queres descobrir o que existe lá?

– És uma pessoa respeitosa?

– Serias capaz de acreditar em algo que não és capaz de ver?

Este mesmo homem aparecia na sombra destes sonhos a abanar a cabeça. Não, ela não era uma pessoa respeitosa. Era necessário ela viajar até ao passado, mas como poderia fazer isso? E o que existiria no passado para ela descobrir? Cada vez se tornava mais claro que ela deveria ir até lá, mas tal como o homem lhe tinha perguntado, ela não sabia se era capaz de acreditar em algo que não pudesse ver. E se ela tivesse perdido os valores? Afinal, quem era ela? A este propósito, vendo-a tão pensativa, o pai disse-lhe uma vez:

– Hoje em dia as pessoas têm cada vez mais dificuldade em acreditar em algo que não vejam. Gostava que contigo fosse diferente. É importante acreditares na tua intuição e nas tuas convicções. Nada disso se vê, mas tudo isso se sente.

Aquele homem que lhe apareceu durante todas as noites durante a sua vida e juventude, fê-la duvidar de si mesma. Estranhamente, quando ele perguntava pelo seu passado, ele colocava em causa a sua honra e a sua dignidade. A jovem Anne Pauline não compreendia a atitude daquele homem, cujo rosto nunca se mostrava. Afinal, quem seria ele?

2

Um dia, ele colocou-lhe uma pergunta diferente de todas as outras: «Imagina que possuías a capacidade de voltar ao teu passado. De certeza que não olharias para os mesmos acontecimentos da mesma forma. Terias um olhar diferente». Perante o desafio, Anne Pauline refletiu um pouco no que tinha acabado de ouvir e percebeu que seria antes de mais fisiologicamente impossível retornar ao passado. O ser humano não tem maneira de alterar o tempo. No entanto, existia uma possibilidade de o fazer. Talvez a única. Através da Regressão de Vidas Passadas. Desta forma, no momento de procurar um especialista em Terapia de Vidas Passadas, Anne Pauline conhecia bem a antiga disputa que existia há vinte anos entre Marcus Belling e Josef Salvaterra. Mas ela era alheia a tudo isso. Ela precisava de ajuda.